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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Neste dia mais alegre do novembro deste ano, a luz animando os campos que daqui avisto já nos aconchega mais - corpo e alma que, dizia S. Tomás de Aquino, fazem uma só pessoa - do que a cinza monótona que nos vinha pintando o ar em Outono chuvoso e sombrio. Hoje, como em dia de festa, das minhas janelas descubro manchas claras de luz, quinhões de amarelo e verde pálido ali, e outros, acolá, já da cor de fogo que nos anuncia lareiras e a mim recorda passeios antigos em longínquas paragens, desde o upper-state New York ao Kyomizudera, em Kyoto, quando as árvores outonais (como os momiji) bacantemente nos oferecem ramos com chamas de oiro e vinho. Menos melancólico, volto à leitura abandonada de vários jornais empilhados; reparo em duas entrevistas que, talvez por terem sido feitas a duas pessoas heterodoxas, eu emparelhei no meu ruminante pensarsentir. Duma delas tiro para aqui apenas duas declarações, ambas curtas, mas incisivas: à pergunta Acha que os portugueses têm sentimento de superioridade?  -  Vasco Pulido Valente responde Têm! Com certeza que sim!; e à Como é que vê a direita portuguesa hoje? - contesta: A direita portuguesa hoje não existe. Existem pessoas de direita, não existe direita. [Cf. Público de 21 de outubro]. Da outra, respigo uma resposta mais longa, de Romain Gary a Jacques Chancel, em junho de 1975, no programa da France Inter intitulado Radioscopies, uma espécie de confessionário mediático e laico para escritores, artistas, filósofos, etc., que eu costumava ouvir quando morava em Paris e Bruxelas. As Éditions du sous-sol publicam agora uma antologia escrita dessas conversas. À pergunta Você parece ter muito interesse pelo tema mulheres, que, em sua opinião, não são suficientemente consideradas. Mesmo na hora presente, em que tanto se fala nelas... Resposta: Mesmo sem nos metermos pelo domínio do feminismo propriamente dito, há uma assustadora ausência de feminilidade na nossa civilização. Não quero entrar por propósitos religiosos, até porque sou incréu, mas se olharmos para a palavra de Cristo, ela é essencialmente feminina. A voz de Cristo era uma voz de mulher, pelo menos no sentido tradicional desse termo. Ternura, piedade, amor, bondade, perdão. Mas essas virtudes estão totalmente ausentes de dois mil anos da nossa civilização. Além da igualdade homens-mulheres, que é evidente, é necessária uma transformação dos valores ditos «masculinos» em valores femininos. É por isso que não compreendo os movimentos feministas que se reclamam duma espécie de masculinidade, em partes iguais com os homens. Deviam, pelo contrário, entrincheirar-se cada vez mais, e elaborar valores femininos para com eles fecundar a nossa civilização. Mas talvez seja uma visão demasiado idealista das coisas...

 

   Como sabes, Princesa de mim, também vivo de sonhos e gosto de utopias. E as utopias que alimento sustentam este meu fado de estar dentro e além do mundo, insatisfeito no insatisfatório. Sentir-me em busca de um consolador eterno feminino é mais do que desejar a doçura da condição regressada de ser "maternado" (que, aliás, inspira o sentimento japonês do amae, essa saudade do leito materno): é procurar a mulher como futuro do homem (evocando Aragon), aspirar ao amor da criação inicial, como condição e estrela da vida... Nada há de machista nisto, uma mulher também poderá falar do homem como seu futuro, sem feminismo. Refiro-me ao livro, recentemente publicado, da autoapelidada intelectual católica de esquerda, escritora e jornalista, chefe da redação de Témoignage Chrétien, Christine Pedotti de seu nome. Com o sugestivo título de Jésus, l´homme qui préférait les femmes, retrata - cito a autora - um homem vertical, sábio, pregando a boa nova; descobri-o debruçado, atento, à escuta. Via-o seguro do que dizia, sage e severo, enunciando afirmações poderosas; espantava-me achá-lo perturbado, emocionado, admirativo, mas sabendo também brincar com humor, cheio de piada e de prontas respostas... E a mulher que sou, lenta e seguramente, deixava seduzir-se pelo trintão galileu. Dei-me conta de que, até então, tinha "amado" Jesus projetando sobre ele uma falsa imagem ; via-o com os olhos dos homens que me tinham precedido ao longo dos séculos. Ao fim dessa primeira experiência, soube que era preciso voltar aos textos evangélicos, de modo a prestar particular atenção ao que se passa entre Jesus e as mulheres.

 

   A primeira descoberta da sua nova leitura dos evangelhos, segundo a própria Christinne Pedotti, surge pelo seguinte trecho do de São Lucas (13, 10-17), aqui na tradução de Frederico Lourenço: Jesus estava a ensinar numa das sinagogas. E eis uma mulher com um espírito de cansaço havia dezoito anos; andava curvada e não conseguia endireitar-se completamente. Vendo-a, Jesus chamou-a e disse-lhe: «Mulher, foste liberta do teu cansaço.» E impôs-lhe as mãos. No mesmo instante, ela endireitou-se e começou a dar glória a Deus. Reagindo, o chefe da sinagoga, indignado por ver que Jesus fazia uma cura ao sábado, disse à multidão: «Seis dias há durante os quais se deve trabalhar. Pois nesses dias vinde para serdes curados - e não em dia de sábado.» O Senhor, respondendo-lhe, disse: «Hipócritas, não solta cada um de vós, ao sábado, o seu boi ou o seu burro da manjedoura e o leva a beber? E esta mulher, sendo filha de Abraão, presa por Satanás há dezoito anos, não deveria ser libertada dessa prisão a um sábado?» Dizendo isto, envergonhavam-se todos os seus adversários e a multidão alegrava-se com todas as maravilhas que ele realizava.

 

   O comentário da escritora francesa vai pertinentemente revelar a singularidade deste passo da Boa Nova: A maior parte dos comentários falam da relação de Jesus com o sábado e, portanto, com a Lei. E ninguém repara no nome que Jesus dá a esta mulher: «Filha de Abraão». Ora, ao investigar um pouco mais, descubro que nunca tal expressão antes foi empregada em todo o texto bíblico. Até ali, só havia «FILHOS» de Abraão. Só os homens pareciam abrangidos pela promessa feita ao patriarca, só eles recebiam na própria carne a circuncisão como sinal de aliança. Ora Jesus faz dessa mulher endireitada uma filha de Abraão. Faz parte da aliança em nome próprio e não como filha de seu pai ou esposa de seu marido. Como é possível que ninguém tenha jamais reparado nisso?

 

   E eu, que tampouco me dera conta de tão revelador pormenor, devo reconhecer o sentido e a razão do remate daquele comentário de uma cristã atenta: É a própria personalidade de Jesus que surge sob novo dia. A par e passo da leitura, torna-se claro que nunca Jesus remete as mulheres a papéis reservados ao seu sexo. As mulheres não são virgens, nem mãe, nem esposa por «natureza». Antes pelo contrário, elas são discípulas, parceiras de conversa, por vezes profetas, nunca submissas nem silenciosas. Talvez fossem precisos olhos de mulher para o descobrir. Mas era também necessário que esse olhar fosse o de uma mulher que beneficiara de várias décadas de combates das mulheres pela liberdade e a emancipação.

 

   Historicamente, sem dúvida, tratou-se, tem-se tratado, de uma luta pela emancipação. E hoje ainda, um pouco por todo o mundo e muito em certas zonas dele, há ainda muito a fazer pela libertação das mulheres, sujeitas a jugos absurdos. Mas, sempre focado na busca da essência das coisas em cada um de nós, prefiro chamar-lhe reconhecimento. Não só no sentido de regressarmos ao conhecimento fundamental da nossa unidade ontológica - até no sentido claudeliano de connaissance= co-naissance ou "nascimento com" - mas como atualidade de nos vermos num espelho.

 

   [Há dias, lendo diagonalmente uma entrevista dada pelo superior nacional de uma congregação religiosa, deparo com uma tremenda justificação do facto de limpezas, arrumos e demais serviços domésticos das residências dos seus numerários masculinos serem funções atribuídas a numerárias femininas, por Deus ter dado às mulheres a graça e o dom de tratar da casa... Só me ocorreu, na altura, enviar ao senhor padre superior um lembrete daquele passo do evangelho em que Jesus responde a Marta que, ocupada em lides domésticas, lhe pede para admoestar Maria que, quieta e silente, o escuta ensinar : "Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada"...

 

   Sempre defendi, e defendo, que a distinção social entre homem e mulher é eminentemente cultural: no seu tempo e no seu modo, cada cultura atribui, na sua circunstância, estatutos femininos e masculinos, define e estatui valores próprios a cada sexo e género. Assim, só aceito que a voz de Cristo, enquanto expressão de "ternura, piedade, amor, bondade, perdão" (diz R. Gary) seja uma voz feminina, no "sentido tradicional desse termo". Masculino ou feminino, o nosso ser é originalmente humano, o próprio Eros é o amor em busca da união inicial (lembra-te de L´érotisme do Georges Bataille).

 

   Até a narrativa bíblica do Génesis consagra tal união ontológica em ambos os relatos da criação do ser humano: num, o segundo, mais imaginativo, diz que Deus adormeceu o homem para lhe retirar uma costela da qual fez a mulher; no outro, o primeiro, mais assertivo, limita-se a afirmar que Deus criou o ser humano, criou-o homem e mulher. Naquele, o ser humano resulta da argila que recebe um sopro de Deus, que lhe dá vida própria, muito embora o retire da mesma terra. No primeiro relato, todavia, o ser humano, na unidade inicial do casal, é o ser vivo criado à semelhança e imagem de Deus. Indivisivelmente: Deus criou o humano à sua imagem / à imagem de Deus o criou / homem e mulher os criou... E, neste presente contexto, ao evocar a Bíblia, não o faço invocando um texto religioso. Apenas recordo que, milénios atrás, já prosa de humanos registava essa consciência da unidade ontológica dos géneros.

 

   Sobre o alegado sentimento de superioridade (machista ou não) do português comum e da inexistência de uma direita política em Portugal - que Vasco Pulido Valente referia - falaremos em próxima carta.

 

    Até lá, Princesa.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira