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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

De 26 de novembro a 2 de dezembro de 2018.

 

Em boa hora, a Universidade da Beira Interior decidiu promover um Colóquio em torno da obra de Miguel Real. Foi uma excelente oportunidade para a realização de uma reflexão e um diálogo aprofundados em torno da obra de um dos mais persistentes e fecundos ensaístas e críticos no panorama português.

 

 

ENSAÍSTA ATENTO
Se refiro o ensaísta, não esqueço o romancista, com provas dadas e justos prémios alcançados, porém sendo um cultor da língua e um fino leitor e autor do romance, notamos (e essa é uma qualidade incontestável) que nunca deixa de pensar a cultura e a identidade, como realidades complexas que não podem passar despercebidas. Ora é a perspetiva do ensaísta que ocupará as linhas que se seguem. E as recentes iniciativas levadas a cabo, aquando do centenário do Padre Manuel Antunes, permitiram um reencontro com as reflexões de Miguel Real, até porque o autor do indispensável Repensar Portugal apontou muitas vezes no sentido de compreender a cultura portuguesa não em termos fechados ou retrospetivos, mas em termos integradores de uma complexidade, incompatível como estereótipos ou simplificações. O humanismo universalista é tudo menos uma marca redutora ou providencialista. Aliás, quando hoje lemos o Padre António Vieira da Clavis Prophetarum, tendo em consideração as mais recentes investigações nesse domínio, percebemos que as ideias de povo eleito ou de uma vocação imperial caem por terra – abrindo caminho ao reconhecimento da dignidade humana como património comum e como objetivo a partilhar pela humanidade… E Miguel Real nos vários registos da sua escrita e da sua reflexão tem procurado demarcar-se da tentação de uma certa predestinação de um povo ou de uma existência… Deste modo, a leitura marcadamente crítica sobre a mediocridade nacional insere-se na tradição das correntes de pensamento que desde tempos imemoriais olham a nossa realidade numa perspetiva crítica, com a preocupação de assegurar uma séria articulação de esforços, capaz de negar o fatalismo do atraso e de criar condições para podermos viver uma melhor defesa do bem comum. Fala-se do escárnio e maldizer, do picaresco, do não nos levarmos demasiado a sério, mas também do querer viver ao ritmo do mundo civilizado – os elementos são vários e as personagens da nossa cultura apresentam-se com características contraditórias, o que as leva a não se eximirem ao sentido fortemente crítico, que não deve ser confundido com puro negativismo.

 

HUMANISMO UNIVERSALISTA
António José Saraiva falava do “estar-se onde não se está”, o que leva os portugueses a serem religiosos e heréticos; ortodoxos, mas heterodoxos; emigrantes mas não colonizadores (por força da miscigenação); aventureiros, mas radicados (como na Diáspora); pobres mas generosos; e atrasados, mas crentes num destino (messianismo). De Gil Vicente a António José da Silva, de Garrett a Camilo e Eça de Queiroz encontramos a exigência crítica como contraponto à indiferença ou ao conformismo. E que é o país de suicidas de Unamuno, que hoje já não seria assim entendido, senão a manifestação séria de um inconformismo, que apenas visa combater a passividade e a irrelevância? A abrir “Portugal – Ser e Representação” Miguel Real cita, sintomaticamente, o Padre Manuel Antunes: “Reencontrar o antigo, por vezes mesmo o mais antigo para criar algo de novo (…). A nossa história multissecular de Povo independente é feita de espaços de continuidade e de espaços de rutura, de períodos de deterioração e de períodos de recuperação, de anos de sonolência e de momentos de crítico despertar, de estados de descrença e de instantes largos de esperança quase tão ampla como o universo”… Uma história antiga, com raízes culturais múltiplas, as alternâncias entre continuidade e recusa, entre altos e baixos (numa ciclotimia de euforia e pessimismo) e o encontro entre vontade e destino – tudo se soma, numa Ibéria em que a nossa “maritimidade” se contrapõe à “continentalidade” de Espanha, projetando nos dois símbolos contrapostos – Fernão Mendes Pinto, como personagem múltipla no mundo, e D. Quixote, como imaginação e sonho. A multiplicidade da aventura da Peregrinação sublima-se na vontade do povo que Herculano encontra como explicação da independência e da unidade. O Brasil é a imagem grandiosa da frente marítima europeia de Portugal, enquanto as Espanhas projetam-se na América em múltiplos países, em razão das autonomias metropolitanas…

 

A DEMANDA DE PORTUGAL
A Portugal, segundo Eduardo Lourenço, faltou mentalidade europeia desde a segunda metade do século XVI. E o que nos ensinou Antero? A não nos escondermos no nosso passado (o Messias de Portugal é o seu próprio passado). O sebastianismo, além de prova póstuma da nacionalidade, é uma alucinação mental delirante, sentimentalmente verdadeira e racionalmente falsa (segundo Miguel Real). “Como nó central do imaginário português, o mito sebastianista sintetizou os quatro complexos culturais recorrentemente sofridos pelos portugueses: o complexo de Viriato ou viriatino, o complexo de Padre António Vieira ou vieirino; o complexo do Marquês de Pombal ou pombalino e o complexo canibalista, vinculado à inveja individual e à intolerância coletiva. Assim, ainda que de origem histórica profundamente negativa, o sebastianismo constitui igualmente uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os a acreditarem dever ser o futuro melhor do que o presente, mesmo para que tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do País se apodera como uma coutada sua e emigrar como o fazem hoje” (o autor escrevia em 2013 na Nova Teoria do Sebastianismo). Aqui se encontra como que uma síntese, que explica, afinal, a severa crítica, em que Miguel Real aprofunda a exigência de termos de fazer mais do que meramente nos adaptarmos e que está bem presente no universo romanesco do autor... Como José Mattoso ou Eduardo Lourenço têm dito, não somos nem melhores nem piores que outros – somos um país médio, com responsabilidades e oportunidades significativas, mas na senda de Herculano tudo depende do que formos capazes de fazer. Um messianismo larvar, a sombra sebástica, a tensão permanente das contradições do nosso código genético, o uso crítico dos nossos mitos para os podermos superar em emancipação – tudo isto constitui pano de fundo do nosso ser… Esta a base para a célebre “psicanálise mítica do destino português”, publicada em primeira mão na revista “Raiz e Utopia”. Miguel Real não é, porém, catalogável. Nós somos realmente uma mistura de fatores contraditórios. E neste ponto, não podemos deixar de recordar a importância que Matias Aires (1705-1763) teve no pensamento do nosso autor. Para o filósofo luso-brasileiro, a verdadeira felicidade não é a ilusória: do poder, da riqueza e da fama; é, sim, a “da aproximação incessante à verdade, exigindo o desmascaramento da vaidade individual e social, findando no estado interior de serenidade de quem sabe (…) que tudo é vaidade”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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