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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Henry Van de Velde - empatia e abstração.

 

'Just as the urge to empathy as a pre-assumption of aesthetic experience finds its gratification in the beauty of the organic, so the urge to abstraction finds its beauty in the life-denying inorganic in the crystalline or, in general terms, in all abstract law and necessity.', W. Worringer

 

Henry Van de Velde (1863-1937) acreditava que qualquer manifestação artística deveria servir a sociedade, de modo a conseguir transformá-la para melhor. Van de Velde só começou a trabalhar como arquiteto e designer em 1895, quando projetou a sua casa em Uccle, perto de Bruxelas. 

 

Lê-se no livro 'História Crítica da Arquitectura Moderna' de Kenneth Frampton, que com este projeto, Van de Velde pretendia fundir definitivamente todas as artes - além de desenhar a casa, todos os móveis e todos acessórios (como por exemplo o serviço de talheres) concebeu também todos os vestidos para a sua mulher. Van de Velde acreditava que somente o projeto de uma casa familiar era o veículo social básico a partir do qual os valores da sociedade poderiam ser gradualmente modificados. Acreditava igualmente na primazia da forma construída sobre o conteúdo programático. 

 

Van de Velde lutava por uma arte bela e total - através da qual se eliminavam as fronteiras com o artesanato. E para conseguir afirmar um determinado ideal de beleza nos seus projetos, Van de Velde, desenhava todo e qualquer aspeto do ambiente a contruir.

 

Tal como William Morris, Van de Velde tentava conciliar os seus ideais socialistas com a produção dos objetos por si concebidos -adequando a forma do objeto a um modo de fazer mais sustentável.

 

'Ugliness corrupts not only the eyes, but also the heart and mind.', Van de Velde

 

Frampton afirma que Van de Velde interessava-se por um desejo de forma (que combinava empatia, vitalidade e abstração), assim como por um desejo de projeção do sujeito no objeto criado. Porém empenhava-se em entender que a tendência inata de toda a arquitetura é abstrata. 

 

Van de Velde mantinha a distinção entre ornamentação e ornamento. Argumentava que a ornamentação não tinha qualquer relação com o objeto e que o ornamento ao poder ser estrutural, tinha a capacidade de se integrar totalmente no objeto. Frampton diz ainda que 'a definição de ornamento funcional era inseparável da importância que Van de Velde atribuía à linha gestual artesã enquanto traço antropomórfico necessário da criação humana.' 

 

'Line borrows the strength of its energy from the one who has trace it.', Van de Velde

 

Em 1903, a viagem à Grécia e ao Médio Oriente trouxe o gosto pela forma despojada e cúbica e Van de Velde tentou a partir de então criar uma forma orgânica pura, através de gestos essenciais e talvez até mesmo universais - enquanto professor da Escola de Artes e Ofícios do Grão-Ducado de Weimar (que mais tarde se viria a transformar na Bauhaus) de facto começou a questionar a prerrogativa do artista em determinar a forma dos objetos de modo tão pessoal. O Teatro da Exposição Werkbund de Colónia, em 1914, foi o culminar de toda a sua obra antes da Grande Guerra, onde se consegue claramente identificar uma vontade única do arquiteto em procurar dominar uma forma limpa e expressiva, completamente nova.

 

Ana Ruepp

AS MARAVILHAS DE PORTUGAL

 

1. Evidentemente, fico contente e aplaudo o equilíbrio do défice, a descida do desemprego, alguma subida concretamente dos salários e pensões mais debilitados, o elogio estrangeiro ao desempenho do país em domínios económico-financeiros... Significa isto a minha completa sintonia com a aparente euforia nacional? Infelizmente, não.

 

2. E não sintonizo porquê? As razões são múltiplas e não posso elencá-las todas. Ficam aí algumas, um pouco desajeitadamente e correndo o risco de transgredir o preceito do “ne sutor ultra crepidam” (o sapateiro não deve ir além da sandália).

 

2.1. Mesmo do ponto de vista económico-financeiro, desconfio da afirmação de que chegou o fim da austeridade. Porquê? Vejo, por exemplo, o preço dos combustíveis, a carga de impostos e taxas e mais taxas, não sem sublinhar que os impostos indirectos são os mais injustos, porque cegos, atingindo tanto os ricos como os remediados ou os pura e simplesmente pobres... E, quanto ao futuro, receio o abalo que acontecerá com a subida dos juros e se alguma crise internacional chegar (já se sabe do abrandamento do crescimento económico da União Europeia no próximo ano)... Há uma almofada suficientemente sólida de suporte? De qualquer forma, a dívida toda (pública, das empresas, das famílias...) está em 700 mil milhões de euros (será que li bem?). E os portugueses não poupam, porque se criou a percepção de que tudo está sob controlo, e desculpam-se também com o facto de não valer a pena ou até ser prejudicial, ao pensar no que os Bancos cobram e, depois, as pessoas ainda se lembram de que vários Bancos faliram e, até agora, não aconteceu nada, excepto que os contribuintes vão ter de continuar a pagar... O turismo permanecerá com a força do presente? Que investimentos se tem feito? Que planos para tempos de crise? O crescimento da economia tem derivado sobretudo da procura interna, e os portugueses até se endividam para consumos dispensáveis e viagens. E não sofrem de eleitoralismo algumas medidas, cedendo às exigências das várias funções do Estado, dentro do fascínio causado pela tal percepção de que a situação económico-financeira está como nunca? E as famosas cativações?... E quem pensa no tsunami demográfico?

 

2.2. Incomoda-me sumamente a falta de racionalidade no país. Exemplos simples. Como foi possível chegar à situação inacreditável da CP, sem comboios?! E o aeroporto de Lisboa? Diz-se, e é verdade, que os portugueses trabalham mais horas do que os alemães. Mas o problema não é esse, o problema é a produtividade. Perto de onde vivo, há uma pequena estrada de muito movimento que esteve com o trânsito atrapalhado durante meses, porque tiveram de esburacá-la várias vezes, para meter mais isto ou aquilo; com racionalidade, far-se-ia tudo de uma só vez. Na minha terra, arranjaram a estrada no ano passado e já está cheia de buracos. Aliás, até nas auto-estradas há buracos, que eu nunca vi, por exemplo, na Alemanha, onde as intempéries de frio e neve são mais duras. Julgo que a situação também tem a ver com o seguinte: na mentalidade alemã, o que é bom para a Alemanha os alemães consideram-no bom para eles, mesmo individualmente considerados; no caso dos portugueses, não há a ideia de que o que é bom para Portugal é bom para cada um, e, por isso, cada um procura arranjar-se como pode, e aí está a corrupção: por exemplo, um milímetro de alcatrão a menos em milhares de quilómetros de estrada é muito dinheiro... E “desvia-se” dinheiro descaradamente em muitos lados: veja-se, mais uma vez a título de exemplo, o que aconteceu em Pedrógão, não se sabendo ainda muito bem para onde foi o dinheiro da generosidade dos portugueses, para não citar outras aldrabices. E há promessas e mais promessas para isto e para aquilo, quase para todos, e o problema, depois, é cumpri-las. Fica-se à espera de Godot... Onde está a honra?

 

2.3. E há o laxismo no cumprimento da lei. Está lá bem escrito, com imagem e tudo, que é proibido passear com o cão, mas lá andam os donos com os cães a produzir, para gáudio deles, doses maciças de cocó, que não limpam. E ai de quem ousasse chamar a atenção! Também é proibido andar de bicicleta, mas elas voam até nos passadiços, para aborrecimento dos peões, que querem andar calmamente, sem ser perturbados. Qual é a percentagem de condutores que dão os respectivos sinais quando mudam de direcção na estrada? Vejo, junto da minha casa, agentes da polícia a passear, fardados, passando ao lado de carros estacionados, apesar do sinal de proibição bem visível... Já estive para dizer-lhes que mandassem retirar o sinal de proibição, pois, se se pode não cumprir ali a lei na presença da polícia, porque é que se há-de cumprir nos outros sítios? Para fomentar o laxismo e, com o tempo, preparar a revolta: programas de televisão absolutamente estúpidos e deletérios e os extremismos confusionistas sobre as chamadas questões fracturantes, as relações entre sexo e género e pessoas e animais... E o exemplo inacreditável de políticos que faltam descaradamente às sessões do Parlamento? E as regalias e privilégios auto-concedidos? Leio que subvenções vitalícias para políticos custam 7,17 milhões de euros e a lista continua em segredo, que extras quase duplicam o salário dos deputados (no ano passado, o Estado terá gasto mais de 3 milhões só a cobrir deslocações feitas – ir e vir para casa ou trabalho político no seu círculo eleitoral), para não falar no caso dos deputados insulares... E, em geral, os portugueses não temos a cultura do trabalho, do dever e do mérito, e instalou-se a mentalidade do encosto ao Estado...

 

2.4. E há alguma falência do que é estruturante.

 

Neste domínio, o que se passa com o caso de Tancos é simplesmente rocambolesco e inacreditável, pois trata-se de algo que tem a ver com a soberania.

 

Quer se queira quer não, quanto à Justiça, para lá de ser lenta e, por isso, pouco eficaz, se se ler e ouvir a opinião pública, constata-se o pior: que foi atingida pelo véu de alguma desconfiança.

 

Quanto à saúde: quem frequenta hospitais fica abismado com as filas intermináveis... Os meios de comunicação social apontam para situações de autêntico caos. Ai dos pobres!

 

A educação: no estado que se sabe. Quanto aos conteúdos, não entendo o constante experimentalismo; será que não é possível estabelecer programas com um mínimo de estabilidade, para ser possível uma correcta avaliação, sem esquecer que a educação pertence à coluna vertebral de um país? Quanto aos professores, gostava de chamar a atenção para a instabilidade em que vivem: há antigos alunos meus da Universidade que andam há anos e anos a saltar de escola em escola, percorrendo o país de norte a sul, o que causa imensa perturbação para eles e para os alunos. Veja-se: nem podem constituir família nem ter filhos, e a desmotivação instala-se e a incompetência aumenta. Não há solução para isto? Quanto ao ensino superior, é preciso combater a estagnação e gostava de dizer que, em vez de se baixar as propinas para todos, era mais razoável atribuir bolsas para os mais frágeis economicamente, mas capazes. Aplaudo que se pense em acabar com elas e em encontrar mais possibilidades para que o maior número possível de jovens possa frequentar o ensino superior. E é necessário apoiar harmonicamente tanto as ciências ditas exactas e as tecnologias como as ciências humanas, pois, sem ética e humanismo, para onde pode levar-nos o progresso técnico?

 

3. Há um conjunto de questões que precisam urgentemente de um consenso mínimo nacional, com duração suficiente para a sua avaliação, referentes à educação, à justiça, à saúde, à segurança social. Para evitar o sobressalto constante.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 17 NOV 2018

AO CORRER DA PENA

 

Miguel Torga, pseudónimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, em homenagem a Miguel de Cervantes, Miguel de Molinos e a Miguel de Unamuno, bem como a um arbusto, de nome torga, que nasce entre as inóspitas pedras da terra onde nasceu, S. Martinho de Anta, em 1907, vindo a falecer em 1995, a 17 de janeiro, em Coimbra onde exerceru a sua profissão na especialidade de otorrinolaringologia.

 

Na sua extensa obra literária dividida entre poesia, teatro e o romance, destaca-se um pessoalíssimo Diário, em prosa e verso, com dezasseis volumes publicados e onde se encontra de tudo: crítica social, polémica, esboços de contos, reflexões de moralista e muito frequentemente textos da mais elevada poesia.

 

É notório, ao lermos a sua obra, que o seu fundamento impregna uma religiosidade ou melhor dizendo uma espiritualidade visto que não se vislumbra uma obrigação inadiável, sentindo-se por alguns momentos uma inspiração fora de qualquer confissão religiosa.

 

A escrita de Miguel Torga poderá dizer-se “se situa nela própria”, excluindo a participação de qualquer Ser Supremo. Todavia, nota-se na realidade, uma capacidade subjetiva para recerber as “impressões e capacidade do sentir”.

 

Na sua espiritualidade observa-se uma postura hierática. O problema fundamental na sua construção literária não é Deus mas o Homem na relação com o “Deus Supremo” onde simultaneamente se cruzam.

 

No seu poema Legado, o homem é um produto da busca escatológica: “O que eu espero, não vem./Mas ficas tu, leitor, encarregado/De receber o sonho./Abre-lhe os braços como se chegasse/O teu pai, do Brasil,/ A tua mãe, do céu,/ O teu melhor amigo, da cadeia./(...)Não lhe perguntes por que tardou tanto/ E não chegou a tempo de me ver./Uns têm a sina de sonhar a vida,/ Outros de a colher.”

 

A espiritualidade em Torga, divide-se entre S. Martinho de Anta (a terra que o criou) e a sua vida. Isto nota-se no poema Prece: (...) “Sou sete palmos de lama:/ Sete palmos de excremento/Da terra mãe que me chama.(...) Senhor, acaba comigo/ Antes do dia marcado.”

 

Nota-se neste, um grito de revolta, de angústia e a sua crença. Miguel Torga procura dentro de si próprio uma liberdade que se prende à terra que confere o poder de lhe conceder os momentos de inspiração. O autor não ignora que a terra se encontra plasmada na sua obra tem o valor maior de que quanto maior é a sua angústia, revolta e inspiração, será sempre maior a liberdade para a qual ele não encontra uma liberdade possível: “Livre não sou, que nem a própria vida/ Mo consente./ Mas a minha aguerrida/ Teimosia/ É quebrar dia a dia/ um grilhão da corrente./ Livre não sou, mas quero a liberdade./ Trago-a dentro de mim como um destino. (...)

 

M.T. sente em Deus um poder absoluto que limita a ação humana e, por isso, ele próprio busca, no mais fundo de si, a liberdade. Pode com algum rigor dizer-se que não acredita na existência  de Deus embora a sinta.

 

Pelo conjunto dos poemas retirados do seu Diário, alerta-nos para a presença de o homem ser um deus absoluto da própria terra, ser a causadora da angústia e teimosia ditando deus para o ser humano uma penitência para a eternidade. Trabalha de forma árdua tentando indireta mas subjetivamente substituir-se a Deus.

 

E que espiritualidade é esta que aproxima Deus dos homens e não os homens a Deus?

 

Carlos Rosa

A VIDA DOS LIVROS

De 19 a 25 de novembro de 2018.

 

Quando lemos “Istanbul – A Tale of Three Cities” de Bettany Hughes (Weidenfeld & Nicolson, 2017) compreendemos como a encruzilhada da História nos permite entender a incerteza e a mudança, a complexidade e as diferenças.

 

PATRIMÓNIO CULTURAL, REALIDADE VIVA
No Ano Europeu do Património Cultural, a atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, constitui um momento especial pela sua entrega a Bettany Hughes, de nacionalidade inglesa, historiadora, autora consagrada e responsável por programas de televisão e de rádio de extraordinária qualidade. Depois de Claudio Magris, Ohran Pamuk, Jordi Savall, Plantu, Eduardo Lourenço e Wim Wenders, o júri deliberou por unanimidade e em coerência com o espírito do Prémio, atribuir o galardão de 2018 a uma mulher que tem, ao longo da sua vida e obra, cultivado a memória histórica como fator de compreensão, de conhecimento e de salvaguarda da diversidade e do respeito mútuo. Entender a heterogeneidade das raízes e das culturas é perceber melhor quem somos, de onde vimos e como nos devemos relacionar com os outros. Helena Vaz da Silva é um exemplo bem presente quando falamos do património e da memória como realidades vivas. Foi notável a sua contribuição não só para o respeito do património cultural, mas também para a defesa dos ideais universalistas do humanismo e da cidadania ativa. O património cultural é uma realidade dinâmica e multifacetada – que abrange o que recebemos das gerações que nos antecederam, mas também a semente da contemporaneidade, de modo a criar valor através do incessante movimento da criatividade humana. Como afirma a Convenção de Faro do Conselho da Europa assinada em Portugal em 2005: “O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo”. É esse valor que desejamos proteger.

 

UM PRÉMIO PARA O FUTURO
Instituído pelo Centro Nacional de Cultura em 2013 em cooperação com a Europa Nostra, a principal organização europeia de defesa do património, que o CNC representa em Portugal, e o Clube Português de Imprensa, o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva distingue contribuições excecionais para a proteção e divulgação do património cultural e dos ideais europeus. Num tempo em que há nuvens negras no horizonte no tocante a uma perspetiva humanista de cooperação humana e social – numa ameaçadora articulação dos riscos das mudanças climáticas, da saúde, da segurança alimentar, de proteção do planeta e dos perigos inerentes à ciber-segurança – torna-se necessário encontrar respostas capazes de articular a coesão social, a sustentabilidade humana e as novas dimensões do conhecimento. Os quatro cavalos que constituem o símbolo da Fundação Calouste Gulbenkian representam os domínios centrais da ação numa sociedade que se deseja mais humana – falamos da arte, da educação, da ciência e da filantropia. Só pela ligação desses meios poderemos garantir que a informação se torna conhecimento e o conhecimento sabedoria, e que as tecnologias se possam tornar instrumentos úteis e emancipadores ao serviço da pessoa humana. Eis por que razão a valorização do Património Cultural pode constituir-se em fator de dignificação humana. Bettany Hughes é uma reconhecida historiadora que dedicou os últimos vinte cinco anos à comunicação do passado. Mas não se trata de uma visão retrospetiva centrada num tempo pretérito, mas sim de uma leitura dinâmica das raízes, da História, do tempo, das culturas, dos encontros e desencontros, numa palavra: da complexidade. A especialidade da História e da Cultura da Antiguidade e da Idade Média da nossa premiada permite-nos perceber melhor os acontecimentos como desafios permanentes para compreender o que permanece e o que muda, o que une e o que diferencia, o que articula e o que complementa.

 

UM PERCURSO NOTÁVEL
Bettany Hughes tem um percurso notável que abrange as Universidades de Oxford, Cambridge, Cornell, Bristol, Maastricht, Utrecht ou Manchester. Devemos ainda recordar a tutoria no Institute of Continuing Education de Cambridge e a investigação no King’s College de Londres bem como a participação no New College of the Humanities. Quando percorremos as suas obras sentimos a noção viva de memória, como em “Helena de Tróia” (2005), mas também em “The Hemlock Cup: Socrates, Athens and the Search for the Good Life (2010), finalista do Writers Guild Award. Permito-me referir os mais de 50 programas de rádio e televisão que produziu e realizou para entidades diferentes como o BBC, Channel 4, Discovery, ou National Geographic. Falamos de programas vistos por mais de 250 milhões de telespectadores em todo o mundo. E é a pedagogia do património cultural que permite compreendermos melhor a cultura, a paideia ou a humanitas, de que falava Cícero. Assim, a História e as Humanidades têm permitido a Bettany Hughes realizar uma verdadeira pedagogia de cidadania e de humanidade, sobretudo no que diz respeito à defesa dos direitos de todos, e em especial das mulheres e à salvaguarda das diferenças e do respeito mútuo. Bizâncio, Constantinopla, Istambul são três referências que nos levam ao estabelecimento de necessárias pontes entre o Oriente e o Ocidente, entre o Imperio Romano do Oriente e os Impérios Orientais. Se Istambul é mais do que uma cidade, mas uma história, indispensável se torna conhecer e compreender essa realidade com ao menos seis mil anos. Trata-se de uma mosaico fantástico de fenícios, genoveses, venezianos, judeus, vikings… E ao invocar este caleidoscópio mágico vem à memória o testemunho de Calouste Gulbenkian, que, em Lisboa, nos últimos anos de vida pedia para usufruir da paisagem da cidade sobre o rio Tejo, uma vez que considerava ser a paisagem que mais se assemelhava à de Istambul de sua infância. Também Ohran Pamuk disse que entre Lisboa e a antiga Constantinopla havia semelhanças extraordinárias. E quanto às raízes históricas, aqui estiveram os fenícios que criaram a cidade, aqui chegaram os celtas desde a Capadócia até à Finisterra peninsular, aqui passaram os vikings e os marinheiros do Mar Norte, resultando a caravela da confluência das experiências do Atlântico e do Mediterrâneo e a navegação pelos astros graças ao astrolábio dos saberes vindos da Ásia trazidos pelas culturas de judeus e árabes. Quantas cidades encontramos no património cultural comum que nos deve mobilizar? Quantas culturas? Quantas pessoas? Bettany Hughes tem-nos ensinado a conhecê-lo, a defendê-lo e a amá-lo!

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Continuo entrevado, aquieto-me no estaleiro cá de casa. Sempre me vou aliviando a escutar, de olhos mansamente cerrados, várias interpretações das sonatas de Mozart para violino e piano. Recorro com alguma frequência a esta forma de comunhão: o compositor é o mesmo, as pautas têm as mesmas linhas com as mesmas frases musicais, mas... mas, todavia, cada intérprete tem o seu jeito de percutir o teclado do piano ou de passar o arco pelas cordas vibráteis do violino... Tal como escolhe as suas cadências, e tem momentos diferentemente inspiradores de tempos e alongamentos... O músico e, assim também, o poeta e o prosador, sentem as notas e as palavras, pensamsentem-nas até em imprevistos modos possíveis. No fundo de si talvez queiram que sons, imagens e ditos, sejam tão infinitamente generosos quanto a mesma dádiva que são... Por isso mesmo qualquer arte humana nasce, dá-se e comunga-se, só não morre porque é essencialmente feita e animada de reticências... Assim será também a liberdade, desde a primeira Criação. Como se o ato de criar fosse, de por si próprio, o seu princípio e a sua suspensão...(reticências). Para que a liberdade seja chamada a dar os seus passos e a colaborar na multiplicação dos possíveis...

 

   Shmuel Trigano - de quem já te falei - é professor na Universidade de Paris X (Nanterre) e diretor do Collège des Études Juives de l´Alliance Israélite Universelle, autor de farta obra, onde distingo o livro Le monothéisme est un humanisme (Odile Jacob). Em 2005, publicou no nº39 da revista PRADÈS, que reunia estudos sobre "A Bíblia e o homem", um artigo intitulado Deux visages dans le même Être, que reli esta manhã e de que traduzo os três primeiros parágrafos, pela sua atinência ao que acima te escrevi:

 

   Não podemos considerar a perspetiva bíblica decorrente da proposição segundo a qual o homem é «à semelhança de Deus» sem refletirmos na sua condição de ser criado, de «criatura», que ele experimenta logo ao dealbar dessa sua mesma condição, pelo facto de ter nascido.

 

   A ideia de criação, criação a partir de nada, é eminentemente difícil de compreender, quando nos preocupamos com as suas implicações e os seus pressupostos. Ela é a rocha angular do monoteísmo. A criação desempenha o papel de «uma cena primitiva», que ressoa no conceito que fazemos do humano.

 

   Chamando ao Criador - único papel no qual o homem, enquanto ser criado, reconheceria a Divindade - «o Ser», YHVH, (o Tetragrama foi forjado sobre o radical do verbo ser conjugado no futuro: «Ele será») a Tora consegue um feito de armas. Se Deus é o Ser, efetivamente, e se é único e universal, levantam-se algumas questões para as quais já não há resposta mitológica, mas apenas filosófica, pois que, desde a Grécia, a preocupação da filosofia é o ser, To On.

 

   Parece-me interessante seguirmos, Princesa de mim, esse percurso inquiridor do filósofo e teólogo judeu que Shmuel Trigano é: Como é que um ser novo e suplementar pode surgir onde já está um ser único? Como é que o ser, que já concebemos ego-centrado, pode arranjar lugar para outro, distinto dele e dele saído? [...] Como pode o segundo vir do primeiro no mesmo ser e, contudo, separado e distinto, ao ponto de ambos se apresentarem um ao outro com rosto específico a cada um? Eis a questão absoluta do humano. O ser seria, de certo modo, fraturado, mantendo-se todavia único na sua dinâmica. A criatura, segundo o Génese, seria assim radicalmente diferente do Criador, mas «à sua imagem», de modo a partilhar com ele, sob diferentes modalidades, uma comunidade de ser. [A esta luz, qualquer leitura de Espinosa se torna mais entendível em si e bem mais reveladora das raízes judaicas do pensamento do sefardita português excomungado da sinagoga de Amsterdão].

 

   Vou repetindo a escuta das sonatas de Mozart, inspiradoras destas meditações a que te chamei. Quiçá mergulhando na contínua surpresa daquelas frases musicais, eu vá paulatinamente contemplando a infinitude do ser que é também o de cada humano. E traz-me luminosa alegria essa perene descoberta de um caminho que nunca saberia desenhar. Já nem sei se o percorro no tempo fragmentado que é o nosso, ou no outro nosso, nem curto nem comprido, pois que nele se confunde o fim e o princípio... Talvez ser humano seja ser em relação e em expansão... Dou a palavra a Trigano:

 

   Ao criar o homem embrionário, o ser declina-se no futuro. De si diz ao homem «Eu serei», simplesmente porque o homem ainda não está no presente, presente a si mesmo. O Tetragrama, YHVH, é formado por um presente (Hoveh) e um prefixo de futuro (Y). O mesmo é dizer que o presente do sábado é fugaz e intermitente, um tempo no qual o homem ainda não pode dizer, como Descartes, «Eu sou»... O presente só pode ser anunciado, ater-se ao futuro, na medida em que esconder a presença infinita, essa que não pode desdobrar-se no presente embrionário em que se encontra a criação inacabada e em que o homem ainda não nasceu, ou apenas nasceu «prematuro». É neste sentido que o homem ultrapassa a sua finitude. O tselem divino, «a imagem de Deus», trabalha o seu ser e o seu tempo, prometendo-lhe uma presença para além do presente, maior do que ele, e que tornará possível o cara-a-cara que a aliança lhe trará.

 

   Pensossinto, Princesa, vivo muito a música que me envolve os dias como caminho simultaneamente novo e inacabado até essa presença que todos os dias em mim é já, por ainda estar ausente! Talvez a graça dê muitos nomes à esperança ou muitas notas musicais que soam como se, em busca do inefável, as fôssemos tacteando...Mas persiste o mistério da criação, e esse é o que um Mozart e todos os seus intérpretes, todos os dias, nos podem recordar. A árvore genética do fruto proibido será então metafórica: o nosso castigo não é ganhar o pão com o suor do rosto porque, sendo o ser humano criatura, ele logo quis ser igual ao Criador; o nosso exílio não nos separa da dinâmica do ser vivo, antes nos desafia ao uso da nossa liberdade para que muito mais alegria se construa. Nos livros da Nova Aliança - a que chamamos Novo Testamento - o cara-a-cara, a transparente visão da Presença, começa já e perdura: amai-vos uns aos outros, para que seja completa a vossa alegria... 

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

OS TEATROS NA VIDA E OBRA DE TOMÁS DE MELLO BREYNER

 

Referimos hoje um livro muito recente que cita e descreve, na perspetiva histórica e biográfica, numerosos teatros da transição dos séculos XIX/XX. “Thomaz de Mello Breyner” se intitula o livro, da autoria de Margarida de Magalhães Ramalho, e o subtítulo sintetiza o muito vasto âmbito do estudo: “Relatos de uma época do Final da Monarquia ao Estado Novo”, num total de 688 páginas (ed. IV).

 

E efetivamente, a partir da biografia de Mello Breyner, deparamos com uma vasta e excelente análise histórica e cultural que também abrange a dramaturgia e o espetáculo teatral deste vasto e complexo (é o menos que se pode dizer!...) período da história e da cultura portuguesa, no que teve de bom, de menos bom e de mau.

 

Sem obviamente se entrar aqui nos aspetos histórico-políticos desta biografia, importa salientar a vasta evocação da vida cultural e teatral da época, com referências aos numerosos teatros e espetáculos que marcaram a cultura e, com os limites bem conhecidos, a sociedade portuguesa. E nesse aspeto, no que toca ao teatro e aos teatros, o livro contém e desenvolve uma vasta e muito qualificada informação, tanto de teatros-salas em si, como, em tantos e tantos casos, dos elencos e repertórios, e isto tanto em Lisboa como no resto do país – sendo certo que a concentração da vida teatral era ainda bem mais acentuada do que hoje!

 

E nesse aspeto, vale a pena referir as principais salas de espetáculo evocadas no livro: desde logo os Teatros de São Carlos e de D. Maria II, mas também o São Luís com as sucessivas designações que ao longo do período foram-lhe atribuídas: Teatro Dona Amélia, Teatro República. E também o Coliseu, o Teatro do Príncipe Real, o Teatro da Trindade, o Politeama, o Teatro do Ginásio, o Tivoli, o Teatro da Assembleia...

 

Os mais citados são o Teatro de São Carlos e o Teatro de D. Maria II. E é de ressaltar que a amizade de Thomaz de Mello Breyner com Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro vinha de muitos anos. Em 1921 Mello Breyner recebe-os na sua casa da Granja: “chegaram aqui para almoçar e cá ficaram hospedados o ator Robles Monteiro e sua mulher Amélia Rey Colaço (filha do pianista e meu amigo Alexandre Rey Colaço). À noite representaram no teatro da Assembleia a comédia Sonho de uma Noite de Verão”.

 

Diz-nos Margarida de Magalhães Ramalho, Mello Breyner não assistiu ao espetáculo. Mas cita-o: “estou triste.  Nada sei do que vai pela política do país e ainda menos pelo estrangeiro. Nem sequer leio os jornais. Só me interessam livros que tratam de ciência ou então do que se passou há muitos anos, mesmo há muitos”. (pág. 402). 

 

Voltaremos então a este livro.

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

18. A ARTE É DA HUMANIDADE

 

Se uma obra de arte vale por si e é um fim em si mesmo.
Se vale pela sua autenticidade, intemporalidade, originalidade e universalidade.
Se vale pela sua meritocracia e valor intrínseco.
Partilhando critérios de cultura pura, ausentes de consentimento e validação externa, em prejuízo de critérios de cultura para, funcionalizados por motivos partidários, políticos ou ideológicos.
Quer copiando ou imitando a vida, ultrapassando-a ou transcendendo-a.
Então a arte não é do centro, da direita ou da esquerda.
Não é, nem pode ser, propriedade da direita, da esquerda ou do centro.
Não é politicamente apropriável.
Não é um exclusivo de alguém.   
Nem monopólio de ninguém. 
É da humanidade.
Propriedade e património perene da humanidade. 
De toda a humanidade.     
Na unidade através da diversidade. 
Em que o acesso à sua fruição cultural e espiritual é um bem de todos.

 

13.11.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Viver na vulgaridade é banalizar-se como utensílio da sua rotina

 

A tentativa de ocultação do vazio e da própria morte cria um espaço de sombra no qual desejar é ser incapaz de desejo.

 

Li hoje o texto que escreveu para o DN e transcrito para o nosso blogue, de Anselmo Borges e desde já muito agradeço a Sua reflexão.

 

Curiosamente vou levando até um deserto uma especial estrela que me fala da morte desde há muito, e, que aos poucos, pela literatura e pela vida, me conduz ao discorrer sobre a razão do fundo turvo, puro ponto de negatividade, no qual, nos dias de hoje, o medo foge do medo, abraça a ignorância e uma hipotética arte de argumentação a respeito é equivalente a zero.

 

E não é de bom-tom como se afirma no texto que referi, falar da morte e do seu tabu, quando na nossa sociedade nada se sabe como se trata, o como se morre, e o tabu da morte impõe-se, já que esta também só bate à porta dos outros. Afinal o mundo que vale a pena é o do capital circulante dividido outrora por um tratado que demarcou os limites de um universo com desprezo pelos seres, separando-os, confiscando-os e desamando-se uns aos outros para que depois de torturados, após as confissões, possam perder o valor e serem eliminados. Aqui a morte?

 

Não! Aqui o seu rival.

 

Tudo se precipita como numa mise-en-âbime e surge uma parcela que simula o Todo quando a morte é um mistério, por óbvio, desconhecida dos vivos, e a fraude do desprezo por ela, inibe as condições da ideia como na caverna platónica. E lá vou com a minha especial estrela ao tal deserto no qual ainda me resta a pulsação do meu sentir pela dor dos outros que até hoje nenhuma des-razão venceu.

 

Contudo, aqui e além e muitas vezes sou espectadora dorida do irreversível e do insuperável quando a morte me alerta que me não sei despegar da minha consciência, e num cenário tão extremo volto a olhar para o tempo por viver e nele

 

«Um anão ressuscitado não é menos espantoso que um gigante, e assemelha-se mais a um gigante ressuscitado do que se lhe assemelha um gigante morto.»

                          Malraux

Enfim a morte de que falamos converge para uma disciplina de engenharia genética ou robótica para que lhe seja conferida a tarefa uniformizadora mais definitiva e assim a insensibilidade dos sentires realiza completamente o titanismo. E sim, a morte faz a triagem entre o que vale ou não a pena: a energia da minha estrela já mo fez saber.

«Para onde quer que nos voltemos, o nosso espírito não encontra senão o vazio, quando o espaço está repleto.»

                          Artaud

O abismo seduz quem se aproxima de uma partida definitiva que ainda pode ser impedida, e, se o faz, ou, se o consegue será sempre pelo poder da mercadoria ávida de enfrentar e derrubar a teia imensa do entendimento do amor pelos homens entre si; e, cada vez mais este abismo forma um novelo cego que aperta esfolando a fundo os braços da minha estrela: aquela, única, com a qual vou ao deserto desafiar a decifração da morte, e ela surpreende, se supera e exímia de tanta inocência me recorda

«(…) Na paz, os filhos enterram os pais; na guerra, os pais enterram os filhos.»

         Heródoto

         (fala Crespo)

E no confronto com a morte quando ela não é tabu, bem creio que se insinua um saber de liberdade no instante trágico e efémero dos homens, de saborearem o amor vivido sem o amparo da eternidade.

 

Afinal todos somos sem sandálias.

 

Todos somos a nossa impossibilidade ainda que viver na vulgaridade é banalizar-se como utensílio da rotina, esta é minha convicção.

 

Acresce que bem creio na clara impiedade de um mausoléu que tanto ajuda a petrificar uma vida quando qualquer coisa de dramático no peito aconteceu.

 

«Tu que no fundo dos tempos,

No Nada de uma noite,

na Não-noite, revi,

tu(…)»

       

Paul Celan

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Breve introdução acerca de William Morris.

 

'Both shores had a line of very pretty houses, low and not large, standing back a little way from the river; they were mostly built of red brick and roofed with tiles, and looked, above all, comfortable, and as if they were, so to say, alive and sympathetic with the life of the dwellers in them. There was a continuous garden in front of them, going down to the water's edge, in which the flowers were now blooming luxuriantly, and sending delicious waves of summer scent over the eddying stream. Behind the houses, I could see great trees rising, mostly planes, and looking down the water there where the reaches towards Putney almost as if they were a lake with a forest shore, so thick were the big trees...', William Morris, News from Nowhere

 

William Morris (1834-1896) desde cedo acreditou na arte como um ofício que dá sentido à vida. A arte não é uma habilidade superior nem inatingível.

 

O ideal é criar uma forma total de arte, profunda em ideias e emoções, derivada diretamente da natureza.

 

A degradação do homem e da sua vida, por causa da existência da máquina, vinda com a Revolução Industrial, sem dúvida despoletou as ideias artesanais de Morris. Ao dedicar-se ao projeto da Red House (1859), com Philip Webb, Morris estabeleceu a sua principal preocupação - a integridade estrutural ou a arquitetura total (sem dúvida influência muito importante para alguns arquitetos de final do séc. XIX, como Adolf Loos e Henry Van de Velde). O projeto da Red House traz a forte necessidade em se ser autêntico, modesto e artesanal - no modo de integrar as construções à terra, ao lugar e no emprego adequado dos materiais.

 

William Morris acreditava que para se ser humano deveria encontrar-se um verdadeiro gosto por aquilo que se faz - e encontrar contentamento no trabalho moroso, manual, minúsculo e ínfimo. Só assim será possível abandonar a produção em série e em massa. Morris estava convencido de que a perceção do capitalismo industrial separa o ser humano das suas verdadeiras aspirações, e desvia os nossos desejos para necessidades vazias e falsas. Só ao esculpir-se o gosto do público mais vasto, se deixará de consumir em demasia. 

 

Por isso William Morris, após ter terminado o projeto da Red House, organizou uma associação/oficina de artistas pré-rafaelitas, que incluia Philip Webb, Dante Gabriel Rossetti, Edward Burne-Jones e Ford Madox Brown, que projetaria e executaria peças de mobiliário, papel de parede, murais, vitrais, bordados, trabalhos em metal e em madeira. O objetivo era criar, sob encomenda, uma obra de arte total de qualidade onde se  valorizava então o trabalho demorado do artesão e onde se eliminava toda e qualquer hierarquia entre as artes. 

 

William Morris dedicava-se igualmente à literatura - na década de 1870 estudou a Islândia medieval, talvez porque esse parecia ser o lugar pelo qual ansiava e que contrastava com a realidade industrial do séc. XIX.

 

Em 1875, a oficina de Morris ficou sob seu controlo exclusivo. Morris aumentou então o número de especialidades executadas por ele próprio - além de desenhar e produzir toda uma gama de papéis de parede e cortinados também executava trabalhos de tinturaria e de tecelagem de tapetes. 

 

É muito importante referir que William Morris lutava por causas políticas e ideais socialistas. Escreveu sempre ensaios sobre temas ligados ao socialismo, à cultura e à sociedade.

 

Em 1890 publica 'News from Nowhere', onde expõe em forma de romance uma visão utópica de Londres, onde a distinção entre a cidade e campo desapareceriam. A cidade densa e compacta deixara de existir como entidade física - o Estado e o parlamento tinham desaparecido; todas as realizações de engenharia grandiosas haviam sido desmanteladas; o vento e a água eram as únicas fontes de força; as hidrovias e as estradas eram os únicos meios de transporte; o dinheiro, o crime, o castigo e a prisão deixariam de fazer sentido. A ordem social dependia apenas da livre associação de grupos familiares e o trabalho, que era livre, baseava-se na oficina associada, em que a educação era também livre. Morris ansiava por uma humanidade que viveria em presença de uma constante revelação da Verdade e dos segredos do universo, através da criação. Pois a arte consegue a ligação entre a vida e a forma, entre o essencial e o universal, entre o tempo e o espaço, entre o artificial e o natural, entre o detalhe e o todo.

 

'The spirit of the new days... was to be delight in the life of the world; intense and overweening love of the very skin and surface of the earth on which man dwells...', William Morris, 'News from Nowhere'

 

Ana Ruepp

COM O CADÁVER DA ESPERANÇA ÀS COSTAS

 

Ainda sobre os dias 1 e 2 de Novembro:

Dois dias para a morte e o sentido

 

Por mais arrogante que se seja e se padeça do complexo da omnipotência, ninguém, a não ser que pense suicidar-se antes, pode dizer: Até amanhã, se eu quiser. Dada a constituição corpórea do ser humano e a sua consciência antecipadora, toda a pessoa adulta e consciente, que reflecte, sabe, embora com um saber paradoxal, pois ninguém se pode conceber a si mesmo morto, que é mortal e que a morte é o limite inultrapassável. Ninguém rouba a morte a ninguém, cada um morrerá na sua vez. E as sabedorias ancestrais e as religiões e as filosofias lembraram sempre a cada um: “lembra-te de que és mortal”; aos generais romanos vitoriosos, na corrida para a celebração do triunfo, havia um escravo que lhes ia sussurrando ao ouvido o dito, em latim: “memento mori” (lembra-te de que és mortal); “sic transit gloria mundi” (assim passa a glória mundana): lembrava ao papa na sua coroação o mestre de cerimónias enquanto queimava uma mecha de estopa; os gregos definiam os humanos frente aos deuses, imortais, como “os mortais”.

 

A consciência da morte caracteriza o ser humano e, confrontando-o com a ameaça do nada — aquele “nunca-mais-para-sempre” neste mundo, escreveu Vladimir Jankélévitch —, revela-o a si mesmo na sua fundura ético-metafísica.  Aí, sabe que é um eu, único, enfrentando perguntas de abismo sem fundo, inevitáveis: O que sou e quem sou? O que quero e devo fazer?

 

Na consciência antecipadora da morte, cada um é dado a si mesmo como totalidade, ainda que incompleta, pois ninguém sabe o que é morrer nem o que quer dizer exactamente estar morto. De qualquer modo, nessa antecipação, a pergunta decisiva é: Qual o sentido da vida, da existência, da História, de tudo? Vamos realizando sentidos, mas, perante a morte, impõe-se a pergunta essencial, final: Qual o sentido de todos os sentidos, o Sentido último? Para quê? Porque, se tudo se afunda na morte: bem, mal, dignidade, indignidade, justiça, injustiça..., então tudo é equivalente, vale tudo o mesmo e foi tudo para nada.

 

 Mas é tão natural o homem saber da sua morte como esperar para lá dela. A pessoa é constitutivamente esperante, assim: por mais que concretize e realize da sua esperança, ela nunca está plena e adequadamente concretizada nem realizada, pois há sempre um abismo entre o desejado e o alcançado, e, por isso, sempre um mais além, de tal modo que  nenhum homem, nenhuma mulher morre satisfeito, satisfeita (de satis-factus, satis-facta: feito, feita suficientemente). Todos morrem em aberto, o que leva à conclusão de que a realização plena só pode vir de Outro, de Deus; só a religião pode garantir a esperança total. Assim, a própria Escola de Frankfurt vivia atenazada. Por exemplo, Max Horkheimer, um dos seus fundadores, por um lado,  não acreditava, mas, por outro, ansiava pelo totalmente Outro: “Sem Deus, é inútil pretender salvar um sentido incondicional. (...) A morte de Deus é também a morte da verdade eterna”. “O anelo pelo totalmente Outro é um anelo que une os homens, de tal modo que os factos atrozes, as injustiças da história passada não sejam o destino último, definitivo, das vítimas”. Por isso, pensava que a moral assenta em última instância na teologia, significando teologia “a consciência de que este mundo é um fenómeno, que não é a verdade absoluta, que não é a ultimidade. Teologia é – exprimo-me conscientemente com grande cautela – a esperança de que a injustiça que atravessa o mundo não seja a ultimidade, que não tenha a última palavra (...) expressão de um anelo de que o verdugo não triunfe sobre a vítima inocente”. Theodor Adorno, outro fundador, escreveu que “o pensamento que se não decapita desemboca na transcendência; a sua meta seria a ideia de uma constituição do mundo na qual não só ficasse erradicado o sofrimento existente, mas também revogado o irrevogavelmente passado”. Também Jürgen Habermas se refere a toda esta problemática, concretamente a das vítimas inocentes e da dívida da História para com elas, trazendo à colação este texto de J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, então temos que reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos a nós também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama-a Deus”.

 

Claro que ninguém se pode gloriar, diz I. Kant, de saber que Deus existe e que haverá uma vida futura: se alguém o souber, escreveu, “esse é o homem que há muito procuro, porque todo o saber é comunicável e eu poderia participar nele”. Mas é razoável acreditar em Deus e esperar para lá da morte. Na sua obra Was ich glaube (O Que Eu Creio), resultado de uma série de lições, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga, a cada uma das quais  assistiram mil pessoas, pergunta, com razão, o célebre teólogo Hans Küng: ”O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!”

 

A curto, a médio, a longo prazo todos iremos estando mortos. A nossa vida e a realidade do mundo estão em processo e a História lê-se do fim para o princípio. Só no fim se poderá saber, mas, sem Deus, nunca poderíamos sequer saber quem somos nem o que pretendia a realidade e a História, porque não estaríamos lá e tudo teria sido para nada.  Lá, no final, só há, portanto, uma alternativa.

 

Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L’homme nu: “Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é, nada.”

 

A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse, que quer  dizer revelação, conclui assim: “Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: ‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.”

 

É preciso relembrar esta alternativa final, concretamente neste tempo de inesperança em que, ao contrário de todas as aparências de euforia, se avança, citando um poeta galego, “com o cadáver da esperança às costas”.

 

Aqui chegados, alguém poderá objectar que a esperança no Além é alienante, porque retira força ao compromisso com a luta por um mundo mais humano no aquém. Mas, se se pensar mais fundo, é o contrário. A inesperança está a infectar a vida, porque se ama pouco. O amor autêntico quer eternidade e é o combate comprometido com um mundo mais justo, mais humano e mais feliz que reforça a esperança no Além. Como disse Immanuel  Kant de forma lapidar: “A praxis tem de ser tal que se não possa pensar que não existe um Além”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 3 NOV 2018