Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO Especial. 31 de dezembro de 2018.
Sou um leitor fiel, há muitos anos, do “Borda d’Água”. Aqui está o meu exemplar, na edição dos noventa anos. Foi uma tradição deixada pelo meu avô, que fazia da vida do campo o seu quotidiano. Lembro-me do seu Almanaque cuidadosamente anotado a lápis – ora com as lembranças e com os compromissos a realizar, ora para dar nota das boas e das menos boas colheitas. Nunca usava a expressão má colheita, todas eram resultado da graça de Deus – com maior ou menor fortuna. E foi ele que me contou pela primeira vez a história de José do Egipto. Havia que poupar e não desperdiçar, que prevenir e que guardar, que cuidar e que proteger. O trigo ou o milho multiplicavam-se e os melhores e menos bons momentos eram criteriosamente referenciados. Anos havia em que a floração das plantas e das árvores era mais tardia ou serôdia, como aconteceu neste ano de 2018, e outros eram mais prematuros ou temporãos. E nos calendários tudo era anotado. Pelo S. João havia os primeiros figos, em Agosto anotava-se o número de milhos-reis ou milhos-vermelhos, pelo S. Miguel havia as vindimas, em outubro colhiam-se as romãs. E havia o varejo das amêndoas, das alfarrobas e das azeitonas – com vara e redes… Estou a recorrer à memória, sem ter o cuidado de ir rever a coleção dos Borda d’Água de meu avô – e dentro das folhas havia orações para as boas colheitas – a agricultura ligava-se à fé, e o espírito franciscano aí pairava numa genuína atitude ecologista, como diríamos hoje… Cada mês tem a sua especificidade, cada tempo tem o seu valor – e o culto dos campos permite compreender a natureza como natural prolongamento de nós mesmos. Que são as verdadeiras Humanidades senão a procura do equilíbrio entre o desejo e a lembrança? Duarte Nunes do Leão dizia por isso que essas eram as características da saudade. E como não considerar a “Menina e Moça” de Mestre Bernardim e o “Grande Sertão” de Guimarães Rosa os mais belos romances de amor da literatura da língua portuguesa? Mas o Borda d’Água tinha ditos e provérbios inesquecíveis: o mesmo solo que te faz cair, faz levantar-te (adágio hindu); transportai um punhado terra todos os dias e fareis uma montanha (Confúcio); quem na sopa deita vinho de velho se faz menino; à boa fome não há mau pão; dinheiro compra pão não compra gratidão; cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso… Era um não mais acabar… Para terminar por hoje, no final deste ano do Património Cultural fica a ideia simples que é de vida que falamos. Referi aqui de muitas coisas – desde as pedras às tradições, da natureza às paisagens, dos transportes às culturas… E termino com sempre fiz neste Tu cá tu lá. Com um poema, desta feita de um amigo de meu Avô, que tantas vezes lhe arranjava o Borda d’Água. Falo de António Aleixo, também amigo do Professor Joaquim Magalhães, que saudosamente aqui recordei há dias. E é de amor que aqui fala o poeta! Que melhor fecho para este Ano…
«Que feliz destino o meu Desde a hora em que te vi; Julgo até que estou no céu Quando estou ao pé de ti.»
GLOSAS
Se Deus te deu, com certeza, Tanta luz, tanta pureza, P'rò meu destino ser teu, Deu-me tudo quanto eu queria E nem tanto eu merecia... Que feliz destino o meu!
Às vezes até suponho Que vejo através dum sonho Um mundo onde não vivi. Porque não vivi outrora A vida que vivo agora Desde a hora em que te vi.
Sofro enquanto não te veja Ao meu lado na igreja, Envolta num lindo véu. Ver então que te pertenço, Oh! Meu Deus, quando assim penso, Julgo até que 'stou no céu.
É no teu olhar tão puro Que vou lendo o meu futuro, Pois o passado esqueci; E fico recompensado Da perda desse passado Quando estou ao pé de ti.»
Votos de Bom Ano Novo! Esta secção termina. Depois virá: “Cada Roca com seu Fuso”…
Muitas foram as iniciativas do Ano Europeu do Património Cultural, que agora termina. E todos somos chamados a assumir a capacidade de garantirmos que tudo quanto recebemos, de património material, natural ou contruído, de património imaterial, bem como da própria criação contemporânea, deve ser preservado, protegido, beneficiado e transmitido nas melhores condições às gerações futuras.
UMA NOÇÃO DINÂMICA Não esqueçamos a etimologia que liga patres e múnus – o serviço do que recebemos de nossos pais. A atenção e o cuidado têm de estar bem presentes, designadamente quando tratamos do património que está ao cuidado de comunidades religiosas. Quando no Conselho da Europa estávamos a escrever o que viria a ser a Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, ainda sob os efeitos da guerra do Kosovo, fomos confrontados com a persistente pergunta: a quem caberia a herança cultural de um templo que havia sido, ao longo da história, igreja cristã ortodoxa, mesquita muçulmana e até sinagoga judaica? O problema era difícil, na prática, mas a nossa reflexão não suscitou grandes dúvidas. Deveríamos considerar esse monumento como património comum, que a todos caberia respeitar e salvaguardar. E essa noção de património cultural comum tornou-se central na nossa Convenção, assinada em 2005, para que a memória e a herança histórica pudessem integrar a noção essencial de uma cultura de paz. Com efeito, as identidades culturais devem ser abertas, capazes de garantir diálogo, respeito, conhecimento e enriquecimento mútuos. E se falamos de património religioso, num contexto de liberdade de consciência e de culto, reportamo-nos a um acervo riquíssimo na Europa e no mundo, que deve ser estudado, protegido e salvaguardado – tendo em mente a memória das diferentes pessoas, comunidades e culturas que fizeram de um culto parte importante da sua vida.
RESPEITARMO-NOS Não deixar ao abandono o património cultural, significa respeitarmo-nos, defender a memória das raízes e assim protegê-lo – e essa proteção leva a cumprir algumas regras muito simples, mas essenciais. Referimos isto com especial preocupação, uma vez que o património religioso está muitas vezes a cargo de comunidades, que não são constituídas por especialistas – formados para a proteção desses bens de culto e de cultura. Mas se isso assim é, a verdade é que muitas vezes falamos de valores incalculáveis. Eis algumas dessas regras, que urge ter bem presentes: (a) antes do mais, ter os bens com valor patrimonial em segurança; (b) não os deixar sem vigilância, sobretudo quando houver presença de público; (c) só entregar a conservação e o restauro a especialistas com provas dadas; (d) recusar intervenções de amadores ou de meras boas intenções; (e) no caso de dúvida sobre o que fazer, consultar especialistas; (f) sempre que há um bem ou uma peça em perigo deve ser guardada até que haja condições para ser restaurada nas melhores condições; (g) realizar inventários rigorosos, que permitam conhecer o que existe e as suas características fundamentais; (h) realizar fotografias e ter uma identificação precisa das existências. E a estes cuidados temos de juntar uma formação cuidada e cuidadosa. Lembremo-nos que uma medida tão simples como o fecho dos templos religiosos quando não há um vigilante presente, permitiu uma redução drástica dos furtos, assaltos, degradação de bens patrimoniais, tantas vezes por negligência, desatenção ou voluntarismo. Devemos lembrar o projeto português “SOS Azulejo”, que obteve o Grande Prémio da Europa Nostra, que permitiu, graças a medidas de prevenção, uma proteção efetiva de conjuntos com grande valor histórico e artístico. Muitas vezes, mais importante do que mobilizar ou reclamar vultuosos meios financeiros, torna-se essencial cumprir procedimentos simples que evitam perdas irreparáveis. Usar materiais desadequados, recorrer a meios não aconselháveis, utilizar o cimento armado sobre pedra, não usar os materiais originalmente utilizados, – tudo isso pode ter como consequência a destruição irremediável de bens patrimoniais que duraram vários séculos e que mercê de uma intervenção errada podem pura e simplesmente ser destruídos. É mais importante ter um inventário estudado e atualizado do que tentar fazer pseudo-restauros por amadores com consequências irreparáveis. Paralelamente, é importante dar a conhecer o património existente, através de formação e de ações pedagógicas com escolas ou associações da sociedade civil. Segundo o Euro-barómetro, publicado a propósito do Ano Europeu, os portugueses salientam-se pela positiva no reconhecimento da importância e do valor do património, mas também pela negativa ao terem sido dos menos classificados quanto a visitas a museus ou a ações concretas em prol do património cultural.
REALIDADE DE PRESENTE E FUTURO E não estamos a falar do Património artístico e arquitetónico como realidade do passado. É um património cultural vivo que referimos, desejando que todos se mobilizem para que as raízes se não esqueçam e se tornem fatores de democracia e de desenvolvimento. O património cultural deve, assim, favorecer a paz e a segurança, o desenvolvimento sustentável, o conhecimento, a filantropia e a solidariedade. Estamos, assim, a reportarmo-nos também à criação contemporânea e ao diálogo do passado com o presente. Lembremo-nos em Portugal, por exemplo, os audaciosos projetos das Igrejas de Nossa Senhora de Fátima e do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, ou de Marco de Canavezes, da autoria de Álvaro Siza Vieira – todos com especial valor artístico e patrimonial. Os novos horizontes da criação artística integram-se de pleno no conceito dinâmico de património cultural. O Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), surgido em 1952, com Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, José Escada, António Freitas Leal, Diogo Lino Pimentel, João de Almeida, Manuel Cargaleiro, Flórido de Vasconcelos, Maria José Mendonça ou Madalena Cabral, entre outros, constituiu um fator extraordinário de “aggiornamento”, que o Concílio Vaticano II veio confirmar. Trata-se da noção dinâmica de Património Cultural, que engloba um essencial e fecundo diálogo entre História e Modernidade.
E OS BENS RELIGIOSOS? O Conselho Pontifício da Cultura da Santa Sé publicou em dezembro de 2018 as orientações sobre a reutilização dos templos católicos para usos não sagrados. E aí se recomenda que sejam privilegiados novos destinos religiosos, culturais ou caritativos, ficando de fora as utilizações comerciais, designadamente bares e discotecas. No recente Congresso sobre o tema realizado em novembro na cidade de Roma na Pontifícia Universidade Gregoriana foram dados bons exemplos de reutilização de igrejas: para oficinas artísticas, para centros sociais (como nas Basílicas de Santo Eustáquio e de Santa Maria de Trastevere, neste último caso em atividades da Comunidade de Santo Egídio) e até, em situações de menor valor artístico, para habitação. Temos entre nós os exemplos do Museu do Banco de Portugal, na antiga Igreja de S. Julião, da Livraria na Igreja de S. Tiago em Óbidos, do Centro Inter-religioso na Igreja da Misericórdia de Leiria, ou do Museu de Arte Antiga na Capela das Albertas… A preocupação fundamental é a da conservação e da salvaguarda da dignidade de edifícios referenciais do património cultural. Infelizmente na nossa história temos muitos exemplos em que o abandono foi o triste destino. Segundo o Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, importa “haver indicações específicas em matéria de bens culturais, sobre a importância e o valor histórico e artístico do património religioso” – a formação, o inventário, o cuidado, o estudo rigoroso, tudo são aspetos fundamentais a não esquecer. “Algumas formas de degeneração ou profanação nascem (segundo o cardeal Ravasi) por incompetência ou falta de formação. Só uma formação adequada possibilita troca de informações com profissionais especializados”. De facto, “se a sacralidade de um templo lhe é subtraída, isso não quer dizer que ele perde a função simbólica de lugar espiritual e artístico. Por isso o património ‘nobre’ será conservado e tutelado como está, mesmo não destinado ao culto”. Deste modo, deve haver um extremo cuidado (e referimo-nos a lugares sagrados de todas as religiões) na reutilização desses edifícios, em nome da preservação da memória – daí que as comunidades devam ser envolvidas para que a participação e o bom senso prevaleçam e se procurem utilizações adequadas à defesa do património cultural.
UNIDADE NA DIVERSIDADE Em suma, deixemos uma meditação final sobre o Ano Europeu: os valores, as culturas e as memórias constituem a base de uma Europa que deve caracterizar-se pela “Unidade na Diversidade”, resistindo à fragmentação dos egoísmos e da intolerância. Fora da lógica das identidades fechadas, ou do medo do outro, devemos construir realidades abertas e complexas, que não excluam ninguém. O património cultural liga gerações, suscita complementaridades, cruza influências e assenta na evolução histórica de encontros e desencontros – abrindo caminhos de diálogo e de cooperação entre comunidades, mas também com outras culturas do mundo. Trata-se de uma ponte entre o passado e o futuro, um processo contínuo de criatividade e inovação, que assenta as suas raízes na evolução histórica e suplanta-a em nome de uma cidadania ativa e responsável, do desenvolvimento sustentável e de uma sólida coesão social.
A Nova Agenda Europeia para a Cultura não pode assim ser confundida com uma cornucópia de meios financeiros usados sem critério nem avaliação. Ligue-se o investimento na cultura, educação e ciência com os objetivos de coesão social e de desenvolvimento, envolvendo cidades, campos, litoral, meio ambiente, turismo, sustentabilidade, mudança climática, investigação e inovação, política digital. Estamos a referir a obrigação de maior responsabilidade da Europa e de coerência com a Convenção de Faro do Conselho da Europa, com a Estratégia Europeia para o Património no Século XXI e com a Agenda das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. As instituições europeias deverão reconhecer o património cultural, a Cultura em sentindo amplo, como prioridade estratégica, o que contribuirá para o urgente investimento para o capital humano e cultural e para a promoção dos valores universais da dignidade humana.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Como habitualmente o CNC escolhe os Livros do Ano, sempre esperados ansiosamente…
ROMANCE «A Última Porta Antes da Noite» - António Lobo Antunes (D. Quixote). «Princípio de Karenina» - Afonso Cruz (Companhia das Letras). «Memórias Secretas» - Mário Cláudio (D. Quixote). «Ensina-me a Voar sobre os Telhados» - João Tordo (C. das Letras). «O Invisível» - Rui Lage (Gradiva). «Luanda, Lisboa, Paraíso) – Djaimilia Pereira de Almeida (C. das Letras). «O Fiel Defunto» - Germano Almeida (Caminho). «Sua Excelência, De Corpo Presente» - Pepetela (D. Quixote). «Obra Completa» – I a III – Maria Judite de Carvalho (Minotauro).
POESIA «Obra Poética – I» - António Ramos Rosa (Assírio e Alvim). «Estranhezas» - Maria Teresa Horta (D. Quixote).
MEMÓRIAS «Aperto Libro (Páginas do Diário- I – 1977-1990)» - Eugénio Lisboa (Opera Omnia).
ENSAIO «O Algarve Económico Durante o Século XVI» - Joaquim Romero Magalhães (Sul, Sol, Sal). «O Século dos Prodígios – A Ciência no Portugal da Expansão» - Onésimo Teotónio de Almeida (Quetzal).
TRADUÇÕES «Berta Isla» - Javier Marias (Alfaguara). «Aos Ombros de Gigantes» - Umberto Eco (Gradiva). «Pensamentos» - Giacomo Leopardi (Edições do Saguão). «Escolha Coletiva e Bem-Estar Social» - Amartya Sen (Almedina). «Onde Estamos? Uma Outra Visão da História Humana» - Emmanuel Todd (Temas e Debates – Círculo de Leitores).
A todos desejamos um Bom Ano, com Saúde e boas leituras! CNC
Tinhas razão ao dizer-me que aguardarias a continuação da minha carta acerca da entrevista do Peter Atkins, feita pelo Carlos Piolhais e divulgada pelo jornal Público a 19 deste novembro. Escrevendo-a de corrida, reagia - como, aliás, candidamente o disse - à sobranceria de um professor universitário de química, tão estouvada, que o levou a afirmações impertinentes e marginais ao seu próprio trabalho de investigação. Não lhe guardo, todavia, qualquer inimizade, antes lhe faço o pedido de, esquecendo qualquer auto suficiência, atender e escutar melhor outras vozes. Não minimizo - e muito menos contesto - o seu trabalho científico, que está, evidentemente, fora da minha competência, só lhe peço que considere a possibilidade de outras achegas, de ordem filosófica, lógica ou metafísica, e espiritual, ascética ou mística, não sejam varridas para debaixo do tapete que a condição humana pisa.
Que ele seja ateu, por conclusão ou convicção sua, e o declare, não me merece, nem tem de merecer, qualquer reparo: é uma posição pessoal e livre, que respeito, tal como sempre respeitei a profissão de ateísmo ou de agnosticismo de muitos dos meus melhores e mais fiéis amigos. De comum acordo, aliás, e com ânimo, frequentemente temos debatido as questões da origem e destino do Universo, da existência necessária ou desnecessária de um Criador - as quais, mesmo com ajuda das ciências ditas positivas, não deixam de ser temas filosóficos, no sentido próprio de gostar e querer saber, isto é, procurar e encontrar respostas - tal como também nos debruçamos sobre a experiência, ou a ausência, da fé, questão bem pessoal, eminentemente subjetiva, que, nas nossas conversas, se aborda pelos testemunhos, mais ou menos íntimos e abertos, ou comunicativos, de cada um. Nesses momentos, por vezes assaz difíceis, mas generosamente amigos, creio que conseguimos coincidir na humanidade inata dos nossos anseios, das nossas perplexidades, das nossas interrogações e dúvidas, das nossas esperanças... e partilhar as nossas possíveis certezas, ainda que não comunguemos todos nas mesmas... [Curiosamente, tal experiência inspirou as minhas Cartas a José Saramago, que o CNC editou no seu blogue, e que, depois, vieram à conversa com alguns daqueles meus amigos, designadamente o João de Deus Bramão Ramos, meu amigo de sete décadas, recentemente falecido e com quem, apesar disso, ainda falo "às escondidas"... Diplomata de profissão e tradição, herdara de D. Vasco Bramão, seu avô materno, um certo gosto do rigor matemático e entregava-se com gosto a deambulações da física quântica. Agnóstico, procurava sempre um ponto de encontro comigo, uma plataforma de debate, a que chamava "o couto da espiritualidade". Isso também o levava a ler criticamente escritos meus, sobre os quais conscienciosamente se pronunciava, o que sempre me foi muito gratificante. Todavia, nunca lhe ouvi uma palavra sobre os meus Sonetos de amor mordido, nem qualquer outro texto mais "poético". O lirismo ficou sempre de fora dos nossos registos. Sem prejuízo da elegância do trato do João para o que eu escrevesse.
O desconforto que me provocam várias afirmações de Atkins não difere muito, nas raízes da minha consciência, do que decorre da teimosia, ou arrogante suficiência, de certos dogmáticos religiosos, que insistem em formulações que já não apelam a mentes científicas hodiernas, avessas a "verdades" impostas. Muitos dos espíritos acríticos que hoje insistem, por exemplo, no que chamam "as irrefutáveis cinco provas da existência de Deus" de São Tomás de Aquino, não se dão conta de que, para mentes treinadas na experimentação científica como prova, a questão de saber como é que do nada surgiu algo, não tem resposta satisfatória por qualquer afirmação metafísica ou raciocínio lógico. [E não te refiro os casos em que se confunde teologia com catecismo de seminário e este com dogma.] Mas também me parece, por isso mesmo, que o discurso científico anda de contingência em contingência, e que os seus autores estacionam onde não há um contingente que "explique" os outros. Aí, terão de discorrer, ou que já não sabem mais mas talvez lá cheguem, ou que talvez possam mudar de método daí em diante. Todavia, o que não poderão honestamente (cientificamente?) afirmar é que não há outras hipóteses possíveis. O exercício filosófico pode ser metafísico - e, enquanto tal, também é legítimo, ainda que não isento do risco de errar e, concomitantemente, da possibilidade de ser criticado. Mas igualmente suscetível de erro ou engano próprio é qualquer processo científico, nem preciso de te lembrar inúmeras conclusões de teorias científicas ultrapassadas, nem as suspeitas ou dúvidas que pairam ou são levantadas pelas críticas a muitas delas. Experimental ou metafísico, qualquer labor para a descoberta ou inteligência da realidade é, aliás, passível de sobre ele se exercer uma crítica epistemológica.
A questão de Deus ou, neste caso, a interrogação sobre a origem do Universo, pelo simples facto de tanta gente, e por tantos e diversos métodos e achegas, continuar e tentar dar-lhe resposta é, inegavelmente, uma questão em aberto. Porque há seres humanos que a sofrem, ninguém tem o direito de impor soluções pretensamente universais com certezas ou verdades propriamente apenas suas.
Já eu, que tenho devoção especial pelo Doutor Angélico, acredito que, mesmo depois de ter concluído que Deus é causa primeira do Universo, pois que todas as criaturas (ou as realidades que experimentamos) são contingentes e só o Ser Necessário - anterior ao espaço-tempo, isto é, à contingência - pode ter criado, ou seja, feito do nada (ex nihilo), sem recurso a qualquer extensão de si próprio (assim é transcendente) nem a algo de outro (ex aliquo), se daria conta de que, como narra uma biografia, de Deus não sabia nada, e teria confessado que era palha tudo o que ele, frei Tomás, escrevera (ou ditara) : o Ser Que É escapa ao nosso entendimento, mesmo quando o nosso pensarsentir nos diz que Ele está connosco. Mas tampouco essa nossa ignorância poderá roubar o encontro místico que marca uma vida. A fé move-nos, vive-se e testemunha-se pelo amor e suas obras, que são o seu emblema. Nada justifica, em Atkins ou qualquer outro cientista, afirmar que a hipótese de Deus Criador é fácil e descartável. Muito menos antes de terem conseguido, pela experimentação, como pretendem, demonstrar como algo surgiu do nada. Nem lhes peço que me digam que nada era esse, pois que necessariamente estaria antes ou fora do espaço/tempo - não obedecendo portanto a qualquer lei natural investigável... Assim não me ofende a negação da verificabilidade de Deus pela ciência no seu estádio atual, nem a negação de uma fé em Deus por essa razão (que não partilho mas respeito): mas já acho deselegante que se recuse a outros a simples hipótese do Ser de Deus. Até porque, cientificamente, não provaram o contrário.
No século XIII, Tomás, frade mendicante, dominicano contra vontade de seus pais, que preferiam tê-lo feito abastado abade feudal, dedicou toda a sua vida a tentar responder, com os recursos intelectuais e científicos do seu tempo, a questões presentes, então e agora, mas de imemorável surto, sobre a origem do Universo e a existência do ser humano, este sendo a própria alvorada de uma consciência que se surpreende como da sein e se interroga sobre si, a sua circunstância, e o destino de tudo.
No século XXI, um professor emérito da Universidade de Oxford acha que esse "facilitista", e muitos outros, deram respostas etéreas ou fingidas a perguntas incontornáveis, a que ele próprio não sabe responder, a não ser dizendo, como cientista que se preza : «Espera só um pouco, havemos de lá chegar.» (sic, na entrevista).
Nesse contexto, busco compreender melhor a razão da resposta de Atkins à pergunta de Fiolhais ("O que acha da posição do seu colega de Oxford, Richard Dawkins, que pretende lutar contra a religião em nome da ciência? Mesmo aceitando a sua ideia de incompatibilidade, acha que deve haver uma guerra, uma espécie de cruzada?"):
Deixe-me responder cuidadosamente. Consigo perceber que, no final da vida, alguém com pouca educação e que tenha tido uma vida dura reconheça o conforto que a religião oferece, a ideia de que teremos uma vida feliz para além da morte pode ser reconfortante e útil. Mas não gosto que a religião penetre no ambiente das pessoas quando elas são novas, porque destrói o seu. "Destrói" é um termo um pouco exagerado, diminui o prazer da vida com a ideia de que, se se portarem bem nesta vida, vão encontrar uma vida feliz depois.
Em primeiro lugar, reparo nesse sentimento de superioridade (será desdém?), manifesto em expressões como "alguém com pouca educação", ou no tom professoral (não digo científico, porque a frase começa com o subjetivo Mas não gosto)... não gosto que a religião penetre no ambiente das pessoas quando são novas. A exemplo, ou por provocação, de qualquer ignorante ou fanático, o professor Peter Atkins diz saber muito bem o que é bom e é mau para os outros, sejam velhos pouco educados ou jovens por educar. Mas já parece ser mais razoável, como qualquer cristão que se inspire na alegria pascal do Evangelho, quando aponta o malefício do medo como motor de vida e afirma: Devemos aproveitar a vida... Os antigos diziam carpe diem, isto é, "aproveita o dia".
Tal máxima latina - que, literalmente, traduziria por "agarra o dia!", como quem diz não deixes fugir a oportunidade - surge nas Odes de Horácio: carpe diem quam mínimum credula postero, isto é, agarra este dia, não te fies no amanhã... Ou, como mais claramente a foram interpretando sucessivas gerações, goza bem o que hoje te é oferecido, não esperes pelo porvir. Até parece que serviu de exortação a meninas virgens, para que logo trocassem a sua flor de laranjeira pelas delícias do amor erótico. Na sua fábula Le Loup et le Renard, La Fontaine, avisadamente, recorda-nos: Et chacun croit fort aisément / Ce qu´il craint et ce qu´il désire. E é bem verdade que demasiado facilmente usamos a nossa liberdade, o nosso possível arbítrio, para acreditarmos no nosso receio ou no nosso desejo. Assim tantas vezes nos confundimos e perdemos o sentido das coisas. Abreviando caminho e discurso, procuro dizer que o entendimento evangélico da vida cristã não é uma obsessão com a recusa de uma felicidade pecadora, para, à custa de tantos sacrifícios, ou do cumprimento rigoroso de um código de conduta, se conquistar a Boaventura eterna. A velha história do cristão que virou budista para não ter de continuar a submeter-se ao sofrimento que o conduziria ao Céu, inspira-se numa versão deformada, sadomasoquista, do desafio cristão. Este, na verdade, propõe-nos misericórdia em vez de sacrifício, alegria em vez de sofrimento (deixem os mortos enterrar os mortos e sigam-me!), conversão em vez de castigo. E a conversão é o caminho de um olhar novo, cuja fé e cuja esperança são apenas razões e alicerces de amor. O cristianismo não é um processo judicial, nem sequer o temor dele. É uma vocação da alegria de Deus. Esta não é demonstrável pelas "leis naturais" (seja isso o que for), é sempre misteriosa, mesmo quando se revela no sorriso solar que ilumina os olhos de pessoas que todos os dias entregam as suas vidas ao serviço de pobres, doentes e moribundos. Que lei natural sabe explicar o Evangelii Gaudium de Teresa de Calcutá e das suas irmãzinhas?
Nesta alternância entre teatros históricos e teatros atuais, reforçada pela maior ou menor centralidade junto de meios urbanos de destaque cívico e cultural, referimos hoje especificamente o chamado então Theatro da Graça de Lisboa isto no século XVIII: e desde logo se esclareça que a própria designação contem indicador óbvio da própria centralização histórico-urbana que já na altura marcou a infraestrutura do espetáculo teatral.
Num estudo intitulado precisamente “Lisboa: Espaços Teatrais Setecentistas”, Maria Alexandra T. Gago da Câmara remete para o “clássico” Sousa Bastos numa referência desenvolvida a este Teatro, que, com alterações e períodos de interrupção de atividade, funcionou de 1767 a 1781.
É efetivamente um período em que a atividade teatral fomentou a construção ou adaptação de espaços de espetáculo, apesar de tudo muitos deles mais ou menos efémeros. O teatro teria sido construído por Simão Caetano Nunes por encomenda de Henrique da Costa Passos.
Sousa Bastos refere que o Teatro acolheu a certa altura uma companhia espanhola, que trouxe à cena um repertório, hoje completamente ignorado mas onde constava pelo menos uma peça de temário histórico português, intitulada “São Gil de Portugal”...
Como ignorados são hoje os artistas que na época integravam os efémeros elencos do Teatro da Graça: Francisco de Sousa, Maria Joaquina, Joana Ignácia, entra tantos mais...
Apenas António José de Paula deixou alguma memória histórica. A rainha D. Maria I tinha proibido que mulheres tomassem parte em certo tipo de espetáculos públicos. Mas no que respeita ao teatro, essa proibição terá sido revogada em 1800, por iniciativa de António José de Paula, então diretor-empresário do Teatro da Rua dos Condes.
Trata-se aqui do chamado “Velho Condes” que vem do século XVIII e do qual resta uma gravura que mostra um barracão situado onde mais ou menos se irá erguer, com a nova Avenida da Liberdade, os sucessivos “Novo Condes” e o Cinema Condes!...
Os impressionistas rejeitavam motivos de inspiração histórica, literária ou religiosa. Os seus temas eram os efeitos de luz e as vibrações atmosféricas produzidas pelo calor, em pinceladas fragmentadas e justapostas.
Alguns pintores que inicialmente tiveram uma fase impressionista, acabaram por evoluir, demarcando-se e ramificando-se do movimento, num novo destino.
Têm em comum o gosto pela luz e cor, que usaram como instrumento da expressão íntima do artista, vindo alguns a influenciar o desenvolvimento posterior do fauvismo, simbolismo, expressionismo e cubismo, como Gauguin, Van Gogh e Cézanne.
Merece referência a obra destes três pintores, que influenciaram decisivamente a arte do século XX.
Paul Gauguin: foi um autodidata, desenhador, pintor, escultor, um europeu não satisfeito com a Europa, que se retirou para Taiti onde encontrou o paraíso, livrando-se da influência da civilização, aí produzindo telas exóticas, eróticas, coloridas e simples, estilizadas, decorativas, evocando uma pacífica e tranquila bem-aventurança tropical, em quadros primitivos e modernos, numa procura de espiritualidade primitiva, numa exuberante saturação cromática que amplia a vivacidade das cores ao serviço da narrativa de histórias, como em O Nascimento de Cristo (1896) e Duas Mulheres Taitianas com Flores de Manga (1899).
Daí o seu misticismo e simbolismo, encontrando na vida primitiva exótica e nas conceções mágicas dos povos dos mares do hemisfério sul inspiração para novos temas e formas que transpôs para a pintura, tendo tido influência marcante sobre o fauvismo (com a sua pintura taitiana) e o simbolismo.
Vincent Van Gogh: pintor holandês e desenhador, autodidata, de pintura apelativa, com um sentido cromático muito forte, contrastante e saturante, de pinceladas com marca expressiva, cromáticas e sucessivas, começando por paisagens, cenas rurais e do operariado, naturezas-mortas e retratos.
Em 1888, vai para Arles, no sul de França, onde fica maravilhado com a intensidade de matizes produzidos pela luz na Provença, aí alcançando o seu estilo próprio: contornos fortes, cores luminosas, uma pintura cósmica de pincelada agitada e febril. As cores têm um sentido simbólico muito próprio: por exemplo, o amarelo, a sua cor preferida, é a energia positiva, a vida; o azul é espiritualismo, universo, firmamento.
Ao assumir uma abordagem cada vez mais subjetiva, pinta não apenas o que via mas o modo como sentia o que via, começando a deformar, distorcer e desumanizar as imagens para transmitir as suas emoções, exagerando para impressionar, fazendo lembrar a distorção das imagens de El Greco, 300 anos antes, embora de temática diferente. Telas como A Casa Amarela (1888), Girassóis numa Jarra (1888), Noite Estrelada sobre o Ródano (1888) e O Quarto (1888), A Noite Estrelada (1889), Campo de Trigo com Corvos (1890), são algumas obras-primas que nos deixou.
Queria, como autor e criador, que as pessoas pensassem da sua obra: “Este homem sente profundamente”.
Pouco conhecido no seu tempo, ao invés de agora, a sua influência foi decisiva para o expressionismo, ao distorcer a cor e a pincelada para exprimir o que lhe ia na alma.
Paul Cézanne: pintor, desenhador, aguarelista francês, que após trabalhar sob a influência do impressionismo, em especial de Pissaro, chegou a um impasse, acreditando que a mãe natureza daria a resposta, vendo nela coisas soberbas, decidindo fazê-las ao ar livre, procurando dissolver a perspetiva convencional através da pincelada cromática e encontrar a volumetria através da cor, o que era novidade, a que acresce uma abordagem analítica da representação, baseada na redução de pormenores visuais a formas geométricas, desde quadrados, retângulos, círculos, triângulos e losangos, em que uma pedra assume a forma de uma bola e um campo de um retângulo.
Começou a notar que uma representação vista de um único ponto de vista é redutora e limitativa, porque mais imitativa, em que o ideal é introduzir vários pontos de vista, fragmentando os objetos, numa perspetiva bidimensional, tridimensional, etc.
Se vejo de cima, de lado, de baixo o mesmo objeto, tenho dele pontos de vista diferentes, representando-o de várias formas.
Começa a haver uma unidade planificada, uma só unidade, em que os objetos e o céu são pintados numa mesma unidade sob várias perspetivas, num abandono da perspetiva tradicional, como o exemplifica Natureza Morta com Maçãs e Pêssegos (1905), em que o amarelo quente e o frio azul contrastam sem sobressalto, apesar de opostos no jogo de cores.
De um espaço equivalente com perspetivas e planos diferentes e sobrepostos, transita-se para planos e espaços fragmentados, estilhaçados, baseados em meras formas geométricas e estruturados com uma grande tensão rítmica, servindo de base ao cubismo.
Fica onde estás ano velho ou não dominas tu agora tudo o que se passou e que sempre no tudo e à tua beira esteve o mesmo erro? Que mais queres que te leve para além da manta de brisa marítima confiada apenas aos que se vão e sobrevivem? Diz-me, que mais queres? A mim me tiveste e sou eu que saio de manhã ou tu que partes pela noite? Não sei. É teu jeito retomares o interrompido antes de partires para acrescentares novas dúvidas, e que pelas mãos dos homens e das mulheres elas cheguem ao novo ano pois que esse é teu desejo-força. E a que horas o fazes? Não perguntes. Diria que a nenhuma em especial. Foste fazendo enquanto te oferecias a ser vivido e isso é de uma importância vital e sem misericórdia igual à de quem colhe campos de algodão e se fere e se sangra e só assim se afirma lá num canto onde descobre o quanto se pode suportar.
Ano velho te digo que sempre eu mesma e meus vizinhos, reconfortantes, cruéis, reais conheceram o espinho que astuciosamente se escondeu entre nós, e, todavia a denúncia não teve lugar, ou o amor não fosse também género de ligadura que reclama cidade e reconhece cidadãos, guerras, mercados, escolas, notícias, versos e tudo o que se vai buscar para voar connosco. As fotografias? Claro que se intuem nos pratos, na comida, nalguma gaveta da mobília, nos credos e nos sermões, nos seios descobertos ao amor e nas razões e o que é a vida? As fotografias? ano velho? têm a maior e a menor das fés: acreditam-se num instante.
E sim, já me sentei pacientemente no banco de uma igreja escutando de ti um Evangelho e aceitando o papel de um homem que me deixou instruções antes de uma viagem. Em tudo, o passado nos impele, ano velho, e, precisamente da mesma maneira. Não sei o que ainda não experimentei ou o que está para vir, mas sei que isso será infalível e terá de ser suficiente.
Ninguém será esquecido.
Ano velho, de ti não soube a que hora é a eternidade, mas atenta que percorri os degraus de baixo devidamente, e, ainda subo, e conforme subo, lá bem no fundo reconheço um Nada enorme, e, a minha robusta alma a fazer-lhe frente ou, não soubesse que, ao ano novo que chega, não existe mesmo melhor modo de lhe dizer, aqui estou! e vou chamar-te canteiro, postigo, orla, prazo, légua, encontro, caminhante
TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO Especial. 26 de dezembro de 2018.
Acabo de ter a triste notícia de que Joaquim Antero Romero Magalhães morreu. É uma perda irreparável. Estive com ele há poucos dias e falámos longamente, em especial da reedição do seu livro fundamental «Para o Estudo do Algarve Económico no Século XVI». A obra é uma peça crucial para o conhecimento da História Económica. E nota-se o dedo e a influência do Doutor Vitorino Magalhães Godinho, mestre de um novo pensar e homem que abriu novos horizontes no conhecimento da historiografia dos Descobrimentos. Romero Magalhães assumiu papel fundamental na Comissão, que teve em Vasco Graça Moura um animador inigualável. Em boa hora a editora Sul, Sol e Sal reeditou essa obra essencial sobre o Algarve e a Universidade do Algarve concretizou o Doutoramento Honoris Causa no último momento. Não houve assim celebração post mortem mas homenagem em vida. Temo sempre as homenagens póstumas – que revelam sempre alguma injustiça… Nestes dias, voltei às páginas de Romero Magalhães. Li o seu prefácio agora escrito, que aconselho vivamente – e lembrei a memória de seu Pai, que também foi meu amigo… Quantas conversas na Rua de Santo António em Faro. Nada melhor do que ler Romero Masgalhães. As grandes obras tornam vivos os seus autores, mesmo depois de nos deixarem… É isso que vou fazer, lê-lo, lê-lo sem descanso…
A ESTRANHA GRANDE BRETANHA.
Antes da notícia triste, estive a ler a imprensa britânica. E falei com o meu vizinho Robertson, que me disse estar atónito e confuso, porque não vê que os seus patrícios recuperem juízo. O desenho da capa do “Spectator” representa uma verdadeira cacofonia. As vozes são contraditórias e desencontradas. Dir-se-ia que quase todos dizem o que não querem e querem o que não dizem. Um velho industrial do Ulster que eu conheço já me disse e escreveu que de duas uma ou não há Brexit (e ele não sabe como isso se dará) ou a Irlanda se tornará um só Estado, uma República, com um só povo e uma só bandeira. No outro dia contava-me que em Belfast nas janelas há mais bandeiras da República do que “union jacks”… E um escocês amigo dizia-me que se a Irlanda se tornar uma só, a Escócia quererá ir também, mas o certo é que a bandeira do Reino Unido poderá mudar, uma vez que as cruzes sobrepostas atuais pressupõem que o Ulster continua no UK. Volto a olhar este desenho bem apanhado de um coro desafinado. É isso que hoje se passa, para mal dos nossos pecados. Grande Bretanha ou Pequena Realidade? E que poderá um anglófilo incorrigível como eu pensar… A finalizar agradeço os meus leitores que tanto elogiaram o meu automóvel… Por mim, ainda acredito que o Brexit possa ser uma miragem… Como habitualmente, deixo-vos um poema – desta vez natalício, da autoria do meu querido homónimo e padrinho de pia batismal – Frei Agostinho da Cruz:
Era noite de inverno longa e fria, Cobria-se de neve o verde prado; O rio se detinha congelado, Mudava a folha cor, que ter soía.
Quando nas palhas duma estrebaria, Entre dois animais brutos lançado, Sem ter outro lugar no povoado O Menino Jesus pobre jazia.
-- Meu amor, meu amor, porque quereis (Dizia Sua Mãe) nesta aspereza Acrescentar-me as dores que passais?
Aqui nestes meus braços estareis; Que, se Vos força amor sofrer crueza, O meu não pode agora sofrer mais.
Vem-me à lembrança uma velha canção do Gilbert Bécaud, com uma profissão de fé: À chaque enfant qui naît, le monde recommence... - por cada criança que nasce, recomeça o mundo!
Desde o início deste período do Advento, venho-me interrogando sobre a celebração do Natal que se aproxima e o mundo em que vivemos. Aí estão as luzes, a publicidade, o comércio e os festejos, tudo tendo, como pano de fundo (ou cenário real?) um mundo perplexo e crescentemente inquieto, sem respostas para desesperos, agitações, reivindicações, ódios e agressões.
Entretidos com os nossos hábitos de consumo e algumas fantasias, prazenteiros, será que andaremos a esquecer tantos factos da vida, todas essas humanidades iguaizinhas à nossa, todos esses seres que todos os dias nascem para que recomece o mundo - este mundo de todos e para todos - que o nosso esquecimento vai destruindo ou deixando destruir?
Entre outros alertas e sinais dos tempos, o atentado no mercado de Natal de Estrasburgo desafia a nossa estupefação para nos propôr pensarsentir o nosso Natal, o nosso renascimento. É altura de cuidarmos deste mundo de todos, pois Deus fez-se carne e veio habitar entre nós. Quando nasce uma criança, nasce uma esperança. E qualquer esperança merece ser cumprida. Só assim será Feliz este Natal, e o Ano Bom! Não no sentido de entrar já perfeito, mas no esforço de ser melhor, pelo nosso abraço.
Votos de um Feliz Natal de todos nós! E um abraço.
Ernst Bloch, um dos maiores filósofos do século XX, ao mesmo tempo ateu (não acreditava no Deus pessoal) e religioso (estava religado à divina Natureza), quando era professor na Universidade de Leipzig, na antiga República Democrática Alemã, na última aula antes das férias de Natal desejava a todos os estudantes boas-festas, falando-lhes do significado do Natal e terminava, dizendo: “É sempre Advento”, querendo desse modo apelar para a esperança: o mundo e a humanidade continuam grávidos de ânsias e de possibilidades, e a esperança está viva e há razões objectivas para esperar. Apesar do Natal, ainda é Advento, porque a plenitude ainda não chegou.
Foi em Tubinga que o conheci, pois Ernst Bloch, embora se confessasse marxista e ateu, acabou por ter de deixar Leipzig e a República Democrática Alemã: as autoridades comunistas acusavam-no de misticismo religioso. Ele defendia-se, sublinhando o carácter único, na história das religiões, do judeo-cristianismo e do seu livro, a Bíblia. Para ele, “a Bíblia é o livro mais significativo da literatura mundial”, pois responde à pergunta decisiva do ser humano, que é a questão do fim, do sentido e finalidade do mundo e da existência. Ir ao encontro da Bíblia “não pode prejudicar” nenhum ser humano que queira bem à Humanidade e a si próprio. Concretamente, não é possível compreender o Homem europeu e as suas obras literárias e artísticas, sem um conhecimento aprofundado da Bíblia. Os nazis, por exemplo, ao rejeitar a Bíblia como algo estranho que não devia ser estudado, não só não puderam compreender a cultura alemã como caíram na barbárie.
Sem a mitologia grega, não podemos entender a Antiguidade clássica. Assim também, sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Händel, Bach, Beethoven, os Requiem, “absolutamente nada”, escrevia Ernst Bloch. Impõe-se pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, porque este desconhecimento constitui uma “situação insustentável”, pois produz bárbaros que, por exemplo, perante a “Paixão segundo São Mateus” ou o “Messias” de Händel, ficam como bois a olhar para palácios.
Está aí o Natal. E o Natal, mesmo que alguns já não se lembrem disso — li há dias que um terço dos norte-americanos não sabem que o Natal se refere a Jesus — e haja até quem menospreze a data, é o aniversário natalício de Jesus Cristo. Sobre ele deixou escrito Ernst Bloch: Jesus agiu como um homem “pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido”. Anunciou o Deus próximo, de amor, o Deus da misericórdia, um Deus amoroso e amável, e o seu Reino: o Reino de Deus, reino da liberdade — “onde está o espírito de Cristo aí está a liberdade”, proclamou São Paulo —, reino da justiça, do amor, da fraternidade, da paz, da igualdade radical de todos perante Deus e perante os outros seres humanos, o reino da realização plena de toda a esperança.
Sobre Jesus, Mahatma Ghandi também deixou estas palavras: Jesus “foi um dos maiores mestres da Humanidade”. “Não sei de ninguém que tenha feito mais pela Humanidade do que Jesus. De facto, nada há de mau no cristianismo”. Mas acrescentou: “O problema está em vós, os cristãos, pois não viveis em conformidade com o que ensinais”. E tem razão.
Para quem está atento e não tem preconceitos é claro que um dos fundamentos da Europa é o cristianismo. É necessário confessar os erros, fragilidades e crimes do cristianismo histórico, mas é indubitável que da compreensão dos direitos humanos e da democracia, da tomada de consciência da dignidade inviolável do ser humano — de todo o ser humano —, da ideia de história e do progresso, da separação da Igreja e do Estado, portanto, da laicidade, de tal modo que crentes e ateus têm os mesmos direitos, faz parte inalienável a mensagem originária do cristianismo.
Lembro E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, que, na sua obra A figura histórica de Jesus, quis dar uma visão convincente do conjunto da vida do Jesus real, portanto, apenas a partir da história, independentemente da fé. Ele conclui que é possível saber que o centro da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, que entrou em conflito com o Templo, que compareceu perante Pilatos e que foi executado. Mas, continua, também sabemos que, “depois da sua morte, os seus seguidores fizeram a experiência do que descreveram como a ‘ressurreição’”: aquele que tinha morrido realmente apareceu como “pessoa viva, mas transformada”. “Acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso”. Assim, criaram um movimento, que cresceu e se estendeu pelo mundo e mudou a História. Grande parte da Humanidade foi atingida por esse movimento e pela esperança que transporta.
A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem que mudou a História.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 22 DEZ 2018