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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim: 

 

   Hoje, já me interrogo sobre se o sentimento de superioridade do vulgo português será uma sensação de pertença a uma raça eleita (seja o que for que isso signifique), ou antes a convicção de uma insuperabilidade pessoal, isto é, de quem - Zé Povinho ou Urraca Antiga - se sente sempre comparativamente melhor, atendendo aos critérios a que ocasionalmente vá submetendo os cotejos consentidos. A minha nação poderá estar cheiinha de defeitos, os meus compatriotas poderão ser todos, ou quase, uma cambada de gente pouco recomendável, mas eu inda serei um trunfo fora do baralho, pouco ou nada tenho a aprender com os outros, tudo faço como me der na bola... Esta segunda hipótese oferece quiçá a vantagem de veicular a conciliação da autoconsciência da própria superioridade com a tão complexa subconsciência da sua receada inferioridade. Mas, infelizmente para os próprios e para quem os queira orientar, é tremenda caixa de pandora de traumas e problemas essa tal subconsciência da própria alteza. Tenho, para comigo, que, ao abri-la, se libertam e revelam carências de convívio e cultura, ou uma qualquer medrosa incapacidade de diálogo. Por isso mesmo tanta gente só se descontrai e respira quando se sente em sintonia inata no ambiente do seu grupo, onde reinam concordâncias recíprocas e preconceitos comuns, e facilmente surge uma agressividade fautora de processos de intenção relativamente às outras espécies, aos de fora! A cena política portuguesa e a sua circunstância, muitos artigos de opinião e - arrepiantemente - os comentários de leitores "on line" a notícias publicadas (sejam falsas ou não) dão triste testemunho dessa realidade. E, mais tristemente ainda, da falta de objetividade e liberdade interior - ou seja, da ausência de espírito crítico - do português vulgar.

 

 [Relembro, Princesa de mim, que o espírito crítico, contrariamente ao leviano, procura ser bem informado e rigoroso - é culto, no sentido de que se lavra - não é boateiro, nem a montante, nem a jusante; e não é clubista.]

 

    Resulta da leviandade reinante - da pressa de se tirarem (de factos ocorridos ou meros rumores, de ditos mal avisados ou mal contextualizados) projeções mediáticas ou vantagens concorrenciais - não serem as questões nacionais postas em contexto de diálogo construtivo, nem os factos, os actos e os ditos objetivamente analisados... Tudo, insistentemente, se coloca em perspetivas parciais, preconceituosas, facciosas, "marketingosas". Os debates públicos tendem mais a ser processos de intenções do que exercícios conjuntos de esclarecimento mútuo e busca de compreensões e soluções para serviço do bem comum. Ou, quando se fala de si mais do que se acusa o outro, reclamam-se glórias e baratinam-se promessas. O resultado de tudo isto é o descrédito e a desconfiança ambientes. Só quando, em verdade, nos dispusermos a trabalhar pelo aperfeiçoamento geral - e, por isso mesmo, procurarmos ser mais perfeitos e ajudarmos os outros (próximos, achegados ou divergentes) a querer sê-lo também - é que estaremos consonantes com Jesus (Lucas, 6, 45, tradução de Frederico Lourenço): A pessoa boa tira do bom tesouro do seu coração o que é bom; e a pessoa má, do mau tesouro tira o que é mau; pois é a partir da abundância do coração que a boca fala. A boataria maledicente ou insidiosamente suspeitosa, a indigitação apriorística de bodes expiatórios, os incessantes ataques "ad hominem", a arrogância de quem sempre se julga com razão (até porque os outros, doutro clube, partido ou cor, são invariavelmente incompetentes, ignorantes, mentecaptos ou tudo isso ao mesmo tempo) vão quotidianamente enevoando o ambiente, tornando-o caótico e incompreensível, quando não o envenenam, tornando-o irrespirável e detestável.

 

   Assim, também eu - que tanta gente por aí classifica como homem de direita - não conheço qualquer direita portuguesa, enquanto fundamentação e organização de ideias, ou proposta de programas. Aquilo a que por aí se chama direita é uma mistura líquida de pensarsentires que vêm de antigos regimes e vão até fantasias liberais (e ultraliberais) ou levam a posições conciliadoras de eleitores mais ao jeito da social-democracia. País de população maioritariamente católica, nunca Portugal registou com força um partido da chamada democracia cristã. Curiosamente, o programa político de 1933 (Estado Novo) foi o que, teoricamente embora, mais incluiu apropriações de princípios coincidentes ou decorrentes dos defendidos pela encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII. Noutros países europeus, monarquias e repúblicas, de maioria católica ou protestante, traços, ora marcantes, ora mais ténues, durante décadas foram distinguindo, mutatis mutandis, conservadores dos liberais, ambos dos socialistas, e todos estes dos democratas cristãos. Mas a várias vicissitudes históricas, mais ou menos traumatizantes (guerras, descolonizações, envelhecimento das populações autóctones), juntaram-se outros fatores de mudança (imigração massiva, crises de identidade e dos regimes políticos e socioeconómicos). E a decorrente confusão demográfica, cultural e social propicia surtos de incertezas, incompreensões e receios, cujo alastramento - até por falta de convicção e de reação clara das estruturas políticas existentes - abre alas à entrada crescente de propostas populistas, mais inspiradas por ressentimento, raiva ou descontentamento do que pela procura serena e justa de soluções democráticas e construtivas de futuro comum. Dividem-se, cada vez mais, os povos e as gentes, em bons e maus, "nossos" e do reviralho, ao ritmo do volume crescente da gritaria desgarrada geral: reivindica-se, exige-se, desespera-se, mas pensa-se pouco e, com calma, nada. Esquecemos que é indispensável acertar o tempo e o modo necessários à viabilização de qualquer projeto, uma revolução sendo, por definição, o regresso ao ponto de partida, à estaca zero. Mais os prejuízos e as oportunidades perdidas entretanto. E vamos olvidando os pobres, os mais pequenos, porque os brados indignados que hoje ouvimos são, cada vez mais, os das classes sociais que foram tendo acesso ao consumo que comanda o desejo e o lucro. Aliás, aqueles que foram sendo retirados da subterra humana da pobreza, em todos os países do mundo, são os que mais teimarão em superar a herança do que foram, são os que quererão possuir mais. A erradicação da insuportável pobreza não é questão resolúvel sem uma política voluntarista de inspiração ética humanista. Já pensaste, Princesa de mim, em quantas populações foram privadas dos seus ecossistemas, ou remetidas à sordidez de desterros suburbanos? Tudo isto dá, e muito, para pensarsentir...

 

    Pois também é claro que as ideias e os programas, como os interesses e os objetivos, vão evoluindo e mudando, como as próprias pessoas. Mas, da medida do rigor racional na formulação de juízos críticos, isto é, da liberdade cultivada do espírito crítico, irá sempre depender a animação dos grupos cívicos que pretendam propor ideias e práticas ao exercício político da governação. O que será sempre melhor do que nos entretermos, cada um a seu jeito, com diferenciar-nos entre bons e maus, desde certas "esquerdas" que apelidam de "direitas fascistas ou fascizantes" um ramalhete de partidos - cujas flores podem, além do CDS e do PSD, eventualmente incluir a rosa socialista - a "irónicos"  autoproclamados "direitistas" que se acham o "máximo, pecébe?" quando só apontam disparates às "esquerdas encostadas".

 

   A própria ideia de esquerda e direita pressupõe a visão clara dos posicionamentos relativos de uma e de outra... Mas, na atualidade, com a raríssima exceção de certa esquerda ou direita passadista, todos dançam o vira da confusão em torno de um ponto que a todos faz girar: a caça ao voto, a busca da popularidade necessária a um lugar ao sol.

  

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira