MORTE E VIDA SEVERINA
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Especial. 11 de dezembro de 2018.
Este fim de semana fui dar ar à pluma, que o mesmo é dizer fui com o meu MGA (temendo que o Brexit o inutilize) dar um passeio pelas estradas da Arrábida até ao Conventinho. Publico a fotografia do meu automóvel, para vos causar uma pontinha de inveja. O motor está fantástico, apesar de ser de 1955. E o verde está reluzente porque o protejo o mais que posso. Passei naturalmente pelo Portinho, onde parei junto do lugar onde conheci Sebastião da Gama e onde aprendi de cor muitos dos seus versos em honra da nossa Serra Mãe. Não choveu e pude gozar o ar fresco da manhã de sábado. Preocupei-me ao ver as imagens de Paris. Mas continuo angustiado com o que se passa no reino de Sua Majestade Sereníssima. Não faço prognósticos. Quem poderá fazê-los? O meu amigo Graham, com quem troco mensagens, também não arrisca. Acha que neste momento todos os cenários são possíveis e maus… Ele acha que a Senhora May está a ser colocada num beco sem saída. Continua a sofrer amargamente o erro monumental de Cameron… É um mal dos tempos que correm: confundir os interesses de curto prazo com a perspetiva de longo prazo. O “Prospect Magazine” publica no último número uma sondagem significativa. Cada vez mais ingleses acham que o resultado do referendo foi negativo. E mesmo aqueles que achavam que a aliança anglo-americana arranjaria as coisas, acham que o protecionismo do Senhor Trump estragou tudo… Nesta segunda semana do Advento reli ontem João Cabral e a sua “Morte e Vida Severina”. Severino debate-se com o desespero e descrê de tudo. Mas vem uma réstia de luz e de esperança – é uma vida nova que nasce. Não resisto a citar a parte final do poema, também do ano de 1955 (pura coincidência!). Lembro-me bem de quando li pela primeira vez esta obra-prima da língua portuguesa. Foi o meu saudoso amigo Padre Alberto Simões Neto que mo indicou – e um dia lemo-lo mesmo em conjunto, maravilhados com as palavras, com a estória e com a luminosidade… Severino perguntava se valia a pena a vida. Pois eu digo-vos que faz-nos bem depois do ar fresco da serra voltar a este rincão… Que o mesmo é dizer à vida que vale mesmo a pena…
«— De sua formosura
(fala do bebé que nasceu)
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
— E belo porque o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infeciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.
O CARPINA FALA COM O RETIRANTE
QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR
PARTE DE NADA
— Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018 #europeforculture |