CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Creio que foi Robert Brasilach quem primeiro apelidou o grande Georges Bernanos de l´anarchiste chrétien. Terá, pois, dito O anarquista cristão... Todos sabemos que tem havido e vai havendo anarquistas cristãos (ainda escreverei uma carta a contar-te histórias), mas a distinção especial de Bernanos por Brasilach traz, a meu ver, água no bico, quiçá aponte algum desvio ou um lançar a confusão. O próprio Pio XII, todavia, mesmo sendo papa, não se deixou levar pelas acusações de desordem ou heresia feitas contra o escritor de combate e romancista. Aos que com ele insistiam para que pusesse no Index dos livros proibidos alguns de Bernanos, respondeu um dia: "Lá que aquilo queima, queima! Mas é fogo que ilumina!" O crítico e ensaísta Sébastien Lapaque, cronista de Le Figaro, no seu Georges Bernanos - encore une fois (Les Provinciales, Paris, 1998 e 2018 - edição aumentada) abre-nos uma janela sobre a escrita ardente e luminosa do autor de Journal d´un Curé de Campagne, La Joie, Sous le Soleil de Satan, etc.:
Não nos enganemos: a preocupação que atravessa o Soleil de Satan é idêntica à que origina La Grande Peur, e aqueles que caridosamente se esquecem do segundo desses livros, fariam melhor se o aceitassem. Em ambos Bernanos denuncia um mundo que cinicamente labora para poder passar sem alma. Em ambas as obras ele anuncia o advento de uma nova forma de barbárie. Procura comover os seus leitores - "que importa se de amizade se de cólera?" - e a levá-los a ajoelharem-se e a chamar por Deus.
[La Grande Peur des bien-pensants (1931) é o primeiro de sete ensaios, dos quais La France contre les robots (1945), de que também já te falei, foi o último. Entre ambos, contamos Les Grands Cimetières sous la lune (1938), Nous autres Français (1939), Scandale de la vérité (1939), Lettre aux Anglais (1942) e Les Enfants humiliés (1939/40) que, todavia, só foi editado em 1949, a título póstumo.]
Um mundo sem alma, essa tentação, ou deriva já, das nossas sociedades economicistas, quais cegos para a queda num barranco, é a nossa rendição, cultural e civilizacional, à tirania do dinheiro. Assim, há três quartos de século, clamava a voz profética de Bernanos, como neste passo de La France contre les robots, livro de que te falei ainda em carta recente, aliás, quando o ofereci à minha neta Inês, pela sua entrada na faculdade de direito da Sorbonne: O reino do Dinheiro é o reino dos Velhos. Num mundo entregue à ditadura do Lucro, qualquer homem capaz de preferir a honra ao dinheiro é necessariamente reduzido à impotência. Eis a condenação do espírito da juventude... Se, para infelicidade nossa, o dinheiro for, continuar a ser, a obrigatória motivação principal dos nossos comportamentos sociais, tudo o mais, nas nossas vidas, irá perdendo sentido, e do muito, muito, que nos constitui como pessoas humanas seremos esvaziados. Recorro à expressão lapidar de Adriano Moreira, que tantas vezes lembro: É substituir o valor pelo preço.
De nada valerá pedir a Deus que nos livre do mal... se não nos livrarmos, nós mesmos, de tal miséria.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira