GLOBALIZAÇÃO E ÉTICA GLOBAL
1. Muitas das graves convulsões sociais em curso têm na sua base a globalização, que arrasta consigo inevitavelmente questões gigantescas e desperta paixões que nem sempre permitem um debate sereno e racional. Hans Küng, o famoso teólogo dito heterodoxo, mas que Francisco recuperou, deu um contributo para esse debate, que assenta em quatro teses. Segundo ele, a globalização é: 1. inevitável, 2. ambivalente (com ganhadores e perdedores), 3. não calculável (pode levar ao milagre económico ou ao descalabro), mas também — e isto é o mais importante — dirigível”. Isto significa que a globalização económica exige uma globalização no domínio ético. Impõe-se um consenso ético mínimo quanto a valores, atitudes e critérios, um ethos mundial para uma sociedade e uma economia mundiais. É o próprio mercado global que exige um ethos global, também para salvaguardar as diferentes tradições culturais da lógica global e avassaladora de uma espécie de “metafísica do mercado” e de uma sociedade de mercado total.
2. Neste sentido, em Setembro de 1993, teve lugar em Chicago o Parlamento das Religiões, com a presença de uns 6500 participantes e onde 150 pessoas qualificadas, representando as diferentes religiões e movimentos de tipo religioso do mundo inteiro assinaram o Manifesto ou Declaração de Princípios para uma Ética Mundial. O texto fora preparado essencialmente por Hans Küng.
Ainda no contexto das celebrações dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, vale a pena retornar a esses princípios. Como escreveu Küng, não se trata de uma duplicação da Declaração dos Direitos Humanos nem de uma declaração política nem de uma prédica casuística nem de um tratado filosófico nem de uma idealização religiosa ou da busca de uma religião universal unitária. Trata-se exactamente desse consenso de base, mínimo, referente a valores vinculantes, a critérios e normas inamovíveis e a atitudes morais fundamentais. Supõe-se que estes mínimos éticos, que assentam na constatação de uma convergência já existente nas tradições religiosas, podem ser assumidos por todos os seres humanos, independentemente da sua relação com a religião.
Neste consenso mínimo de base, a exigência fundamental é: todo o ser humano deve ser tratado humanamente, de modo humano. Porquê? Porque todo o ser humano, sem distinção de sexo, idade, raça, classe, cor, língua, religião, ideias políticas, condição social, possui dignidade inviolável e inalienável.
Por outro lado, para agir de forma verdadeiramente humana, vale, antes de mais, a regra de ouro: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” (formulada positivamente: faz aos outros o que queres que te façam a ti). “Esta deveria ser a norma incondicionada, absoluta, para todas as esferas da vida, para a família e para as comunidades, para raças, nações e religiões”. Esta regra de ouro concretiza-se em quatro directrizes ou orientações antiquíssimas e inalteráveis: comprometimento com uma cultura da não-violência e do respeito pela vida (não matarás: respeita toda a vida); comprometimento com uma cultura da solidariedade e com uma ordem económica justa (não roubarás: age com justiça); comprometimento com uma cultura da tolerância e uma vida vivida com veracidade (não mentirás: fala e age com verdade); comprometimento com uma cultura da igualdade de direitos e com uma irmandade entre homem e mulher (não prostituirás nem te prostituirás, não abusarás da sexualidade: respeitai-vos e amai-vos mutuamente).
Trata-se de uma Declaração assinada por “pessoas religiosas”, que têm a convicção de que “o mundo empírico dado não é a realidade e a verdade última, suprema”, que, portanto, fundamentam o seu viver na Realidade última e dela extraem, em atitude de confiança, na oração e na meditação, na palavra e no silêncio, a sua força espiritual e a sua esperança. Na presente crise de valores, “estamos convencidos de que são precisamente as religiões que, apesar de todos os abusos e frequentes fracassos históricos, podem assumir a responsabilidade de que as esperanças, objectivos, ideais e critérios de que a Humanidade precisa para a convivência na paz sejam mantidos, fundamentados e vividos”.
3. Estou profundamente convencido de que é neste espírito que o Papa Francisco viajará em Fevereiro próximo (3-5) para Abu Dhabi, capital dos Emiratos Árabes. A finalidade da visita, correspondendo a um convite do príncipe herdeiro, Mohammed bin Zayed, e da Igreja, é precisamente participar num encontro inter-religioso internacional sobre a “Irmandade humana”, na convicção de que o diálogo inter-religioso é essencial para evitar a violência e abrir caminho para a paz.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo públicado no DN | 15 DEZ 2018