Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Como habitualmente o CNC escolhe os Livros do Ano, sempre esperados ansiosamente…
ROMANCE «A Última Porta Antes da Noite» - António Lobo Antunes (D. Quixote). «Princípio de Karenina» - Afonso Cruz (Companhia das Letras). «Memórias Secretas» - Mário Cláudio (D. Quixote). «Ensina-me a Voar sobre os Telhados» - João Tordo (C. das Letras). «O Invisível» - Rui Lage (Gradiva). «Luanda, Lisboa, Paraíso) – Djaimilia Pereira de Almeida (C. das Letras). «O Fiel Defunto» - Germano Almeida (Caminho). «Sua Excelência, De Corpo Presente» - Pepetela (D. Quixote). «Obra Completa» – I a III – Maria Judite de Carvalho (Minotauro).
POESIA «Obra Poética – I» - António Ramos Rosa (Assírio e Alvim). «Estranhezas» - Maria Teresa Horta (D. Quixote).
MEMÓRIAS «Aperto Libro (Páginas do Diário- I – 1977-1990)» - Eugénio Lisboa (Opera Omnia).
ENSAIO «O Algarve Económico Durante o Século XVI» - Joaquim Romero Magalhães (Sul, Sol, Sal). «O Século dos Prodígios – A Ciência no Portugal da Expansão» - Onésimo Teotónio de Almeida (Quetzal).
TRADUÇÕES «Berta Isla» - Javier Marias (Alfaguara). «Aos Ombros de Gigantes» - Umberto Eco (Gradiva). «Pensamentos» - Giacomo Leopardi (Edições do Saguão). «Escolha Coletiva e Bem-Estar Social» - Amartya Sen (Almedina). «Onde Estamos? Uma Outra Visão da História Humana» - Emmanuel Todd (Temas e Debates – Círculo de Leitores).
A todos desejamos um Bom Ano, com Saúde e boas leituras! CNC
Tinhas razão ao dizer-me que aguardarias a continuação da minha carta acerca da entrevista do Peter Atkins, feita pelo Carlos Piolhais e divulgada pelo jornal Público a 19 deste novembro. Escrevendo-a de corrida, reagia - como, aliás, candidamente o disse - à sobranceria de um professor universitário de química, tão estouvada, que o levou a afirmações impertinentes e marginais ao seu próprio trabalho de investigação. Não lhe guardo, todavia, qualquer inimizade, antes lhe faço o pedido de, esquecendo qualquer auto suficiência, atender e escutar melhor outras vozes. Não minimizo - e muito menos contesto - o seu trabalho científico, que está, evidentemente, fora da minha competência, só lhe peço que considere a possibilidade de outras achegas, de ordem filosófica, lógica ou metafísica, e espiritual, ascética ou mística, não sejam varridas para debaixo do tapete que a condição humana pisa.
Que ele seja ateu, por conclusão ou convicção sua, e o declare, não me merece, nem tem de merecer, qualquer reparo: é uma posição pessoal e livre, que respeito, tal como sempre respeitei a profissão de ateísmo ou de agnosticismo de muitos dos meus melhores e mais fiéis amigos. De comum acordo, aliás, e com ânimo, frequentemente temos debatido as questões da origem e destino do Universo, da existência necessária ou desnecessária de um Criador - as quais, mesmo com ajuda das ciências ditas positivas, não deixam de ser temas filosóficos, no sentido próprio de gostar e querer saber, isto é, procurar e encontrar respostas - tal como também nos debruçamos sobre a experiência, ou a ausência, da fé, questão bem pessoal, eminentemente subjetiva, que, nas nossas conversas, se aborda pelos testemunhos, mais ou menos íntimos e abertos, ou comunicativos, de cada um. Nesses momentos, por vezes assaz difíceis, mas generosamente amigos, creio que conseguimos coincidir na humanidade inata dos nossos anseios, das nossas perplexidades, das nossas interrogações e dúvidas, das nossas esperanças... e partilhar as nossas possíveis certezas, ainda que não comunguemos todos nas mesmas... [Curiosamente, tal experiência inspirou as minhas Cartas a José Saramago, que o CNC editou no seu blogue, e que, depois, vieram à conversa com alguns daqueles meus amigos, designadamente o João de Deus Bramão Ramos, meu amigo de sete décadas, recentemente falecido e com quem, apesar disso, ainda falo "às escondidas"... Diplomata de profissão e tradição, herdara de D. Vasco Bramão, seu avô materno, um certo gosto do rigor matemático e entregava-se com gosto a deambulações da física quântica. Agnóstico, procurava sempre um ponto de encontro comigo, uma plataforma de debate, a que chamava "o couto da espiritualidade". Isso também o levava a ler criticamente escritos meus, sobre os quais conscienciosamente se pronunciava, o que sempre me foi muito gratificante. Todavia, nunca lhe ouvi uma palavra sobre os meus Sonetos de amor mordido, nem qualquer outro texto mais "poético". O lirismo ficou sempre de fora dos nossos registos. Sem prejuízo da elegância do trato do João para o que eu escrevesse.
O desconforto que me provocam várias afirmações de Atkins não difere muito, nas raízes da minha consciência, do que decorre da teimosia, ou arrogante suficiência, de certos dogmáticos religiosos, que insistem em formulações que já não apelam a mentes científicas hodiernas, avessas a "verdades" impostas. Muitos dos espíritos acríticos que hoje insistem, por exemplo, no que chamam "as irrefutáveis cinco provas da existência de Deus" de São Tomás de Aquino, não se dão conta de que, para mentes treinadas na experimentação científica como prova, a questão de saber como é que do nada surgiu algo, não tem resposta satisfatória por qualquer afirmação metafísica ou raciocínio lógico. [E não te refiro os casos em que se confunde teologia com catecismo de seminário e este com dogma.] Mas também me parece, por isso mesmo, que o discurso científico anda de contingência em contingência, e que os seus autores estacionam onde não há um contingente que "explique" os outros. Aí, terão de discorrer, ou que já não sabem mais mas talvez lá cheguem, ou que talvez possam mudar de método daí em diante. Todavia, o que não poderão honestamente (cientificamente?) afirmar é que não há outras hipóteses possíveis. O exercício filosófico pode ser metafísico - e, enquanto tal, também é legítimo, ainda que não isento do risco de errar e, concomitantemente, da possibilidade de ser criticado. Mas igualmente suscetível de erro ou engano próprio é qualquer processo científico, nem preciso de te lembrar inúmeras conclusões de teorias científicas ultrapassadas, nem as suspeitas ou dúvidas que pairam ou são levantadas pelas críticas a muitas delas. Experimental ou metafísico, qualquer labor para a descoberta ou inteligência da realidade é, aliás, passível de sobre ele se exercer uma crítica epistemológica.
A questão de Deus ou, neste caso, a interrogação sobre a origem do Universo, pelo simples facto de tanta gente, e por tantos e diversos métodos e achegas, continuar e tentar dar-lhe resposta é, inegavelmente, uma questão em aberto. Porque há seres humanos que a sofrem, ninguém tem o direito de impor soluções pretensamente universais com certezas ou verdades propriamente apenas suas.
Já eu, que tenho devoção especial pelo Doutor Angélico, acredito que, mesmo depois de ter concluído que Deus é causa primeira do Universo, pois que todas as criaturas (ou as realidades que experimentamos) são contingentes e só o Ser Necessário - anterior ao espaço-tempo, isto é, à contingência - pode ter criado, ou seja, feito do nada (ex nihilo), sem recurso a qualquer extensão de si próprio (assim é transcendente) nem a algo de outro (ex aliquo), se daria conta de que, como narra uma biografia, de Deus não sabia nada, e teria confessado que era palha tudo o que ele, frei Tomás, escrevera (ou ditara) : o Ser Que É escapa ao nosso entendimento, mesmo quando o nosso pensarsentir nos diz que Ele está connosco. Mas tampouco essa nossa ignorância poderá roubar o encontro místico que marca uma vida. A fé move-nos, vive-se e testemunha-se pelo amor e suas obras, que são o seu emblema. Nada justifica, em Atkins ou qualquer outro cientista, afirmar que a hipótese de Deus Criador é fácil e descartável. Muito menos antes de terem conseguido, pela experimentação, como pretendem, demonstrar como algo surgiu do nada. Nem lhes peço que me digam que nada era esse, pois que necessariamente estaria antes ou fora do espaço/tempo - não obedecendo portanto a qualquer lei natural investigável... Assim não me ofende a negação da verificabilidade de Deus pela ciência no seu estádio atual, nem a negação de uma fé em Deus por essa razão (que não partilho mas respeito): mas já acho deselegante que se recuse a outros a simples hipótese do Ser de Deus. Até porque, cientificamente, não provaram o contrário.
No século XIII, Tomás, frade mendicante, dominicano contra vontade de seus pais, que preferiam tê-lo feito abastado abade feudal, dedicou toda a sua vida a tentar responder, com os recursos intelectuais e científicos do seu tempo, a questões presentes, então e agora, mas de imemorável surto, sobre a origem do Universo e a existência do ser humano, este sendo a própria alvorada de uma consciência que se surpreende como da sein e se interroga sobre si, a sua circunstância, e o destino de tudo.
No século XXI, um professor emérito da Universidade de Oxford acha que esse "facilitista", e muitos outros, deram respostas etéreas ou fingidas a perguntas incontornáveis, a que ele próprio não sabe responder, a não ser dizendo, como cientista que se preza : «Espera só um pouco, havemos de lá chegar.» (sic, na entrevista).
Nesse contexto, busco compreender melhor a razão da resposta de Atkins à pergunta de Fiolhais ("O que acha da posição do seu colega de Oxford, Richard Dawkins, que pretende lutar contra a religião em nome da ciência? Mesmo aceitando a sua ideia de incompatibilidade, acha que deve haver uma guerra, uma espécie de cruzada?"):
Deixe-me responder cuidadosamente. Consigo perceber que, no final da vida, alguém com pouca educação e que tenha tido uma vida dura reconheça o conforto que a religião oferece, a ideia de que teremos uma vida feliz para além da morte pode ser reconfortante e útil. Mas não gosto que a religião penetre no ambiente das pessoas quando elas são novas, porque destrói o seu. "Destrói" é um termo um pouco exagerado, diminui o prazer da vida com a ideia de que, se se portarem bem nesta vida, vão encontrar uma vida feliz depois.
Em primeiro lugar, reparo nesse sentimento de superioridade (será desdém?), manifesto em expressões como "alguém com pouca educação", ou no tom professoral (não digo científico, porque a frase começa com o subjetivo Mas não gosto)... não gosto que a religião penetre no ambiente das pessoas quando são novas. A exemplo, ou por provocação, de qualquer ignorante ou fanático, o professor Peter Atkins diz saber muito bem o que é bom e é mau para os outros, sejam velhos pouco educados ou jovens por educar. Mas já parece ser mais razoável, como qualquer cristão que se inspire na alegria pascal do Evangelho, quando aponta o malefício do medo como motor de vida e afirma: Devemos aproveitar a vida... Os antigos diziam carpe diem, isto é, "aproveita o dia".
Tal máxima latina - que, literalmente, traduziria por "agarra o dia!", como quem diz não deixes fugir a oportunidade - surge nas Odes de Horácio: carpe diem quam mínimum credula postero, isto é, agarra este dia, não te fies no amanhã... Ou, como mais claramente a foram interpretando sucessivas gerações, goza bem o que hoje te é oferecido, não esperes pelo porvir. Até parece que serviu de exortação a meninas virgens, para que logo trocassem a sua flor de laranjeira pelas delícias do amor erótico. Na sua fábula Le Loup et le Renard, La Fontaine, avisadamente, recorda-nos: Et chacun croit fort aisément / Ce qu´il craint et ce qu´il désire. E é bem verdade que demasiado facilmente usamos a nossa liberdade, o nosso possível arbítrio, para acreditarmos no nosso receio ou no nosso desejo. Assim tantas vezes nos confundimos e perdemos o sentido das coisas. Abreviando caminho e discurso, procuro dizer que o entendimento evangélico da vida cristã não é uma obsessão com a recusa de uma felicidade pecadora, para, à custa de tantos sacrifícios, ou do cumprimento rigoroso de um código de conduta, se conquistar a Boaventura eterna. A velha história do cristão que virou budista para não ter de continuar a submeter-se ao sofrimento que o conduziria ao Céu, inspira-se numa versão deformada, sadomasoquista, do desafio cristão. Este, na verdade, propõe-nos misericórdia em vez de sacrifício, alegria em vez de sofrimento (deixem os mortos enterrar os mortos e sigam-me!), conversão em vez de castigo. E a conversão é o caminho de um olhar novo, cuja fé e cuja esperança são apenas razões e alicerces de amor. O cristianismo não é um processo judicial, nem sequer o temor dele. É uma vocação da alegria de Deus. Esta não é demonstrável pelas "leis naturais" (seja isso o que for), é sempre misteriosa, mesmo quando se revela no sorriso solar que ilumina os olhos de pessoas que todos os dias entregam as suas vidas ao serviço de pobres, doentes e moribundos. Que lei natural sabe explicar o Evangelii Gaudium de Teresa de Calcutá e das suas irmãzinhas?