Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O neto da D. Amélia - modista exemplar e orgulhosa de tanta sabedoria na feitura de qualquer modelo que lhe requeresse cuidados especiais – abriu-me a porta e balbuciou qualquer coisa. Entrei e esperei no hall onde uma perna artificial estava dependurada num cabide e agarrada a um sapato preto, parte integrante da perna, e sobre ele uma serie de panos e um punho de lã de alfinetes.
Soubera que a minha muito querida modista tinha tido a desgraça de aprender a dor da amputação de uma perna, devido a tremendos problemas de artrite reumatoide. Levava-lhe naquele dia, musseline para uma blusa e um ramo de flores escolhidas ao dedo por mim.
Mal chegou ao hall, rápida, na sua cadeira de rodas, depositei-lhe as flores no regaço e debruçada, dei-lhe o mais ternurento abraço que pude. Um abraço de 28 anos de modista e cliente amigas.
A D. Amélia retirou logo um lenço do bolso para enxugar a lágrima, apertou as flores contra o peito e disse-me com um largo sorriso
Ora vamos lá!, que saudades!
Pegou na perna pelo pé que estava dependurada no cabide e lá fomos as três para a saleta das provas.
Perguntei-lhe
Mas não usa a perna, D. Amélia?
Ó menina! Claro que não, até me faz feridas este trambolho. Sabe?, o hospital deu-ma e nem sabe que número calço e como vê este sapato é enorme. Depois o sapato tem ar de sapato de freira a fingir atacadores e tudo, e a perna, tem a cor de ter ido à praia verão e inverno. Olhe um mamarracho destes a que tive direito por tudo o que sofri!, e como prefiro andar nesta cadeirita de rodas, não quero usar a perna, mas faz-me um jeitão. Ao cabide não lhe chego:logo, ponho lá a perna pendurada por esta argola que o meu neto lhe arranjou, e, nela coloco os lenços ou alguns trapos de recorte a que chego facilmente. Quando vou às provas, levo-a comigo, e, além de ser fonte de riso meu e das clientes, coloco-lhe em cima os fatos a provar: uma utilidade pura! Um buracão também, que, às vezes, tenho de virar ao contrário se da zona da coxa da tola, cai algo lá para dentro. É oca como tudo o que é tolo!
Amélia, não tem dores? Quis já começar a trabalhar? Não é cedo? Não poderei eu pedir outra perna para si?
Não, não se incomode. Já pedi eu e deram-me outra igual. Tinha duas e só me amputaram uma. Era uma cegada quem as via ali dependuradas…«ah!, afinal tirou as duas perninhas?» e eu que nunca fui de ter mais do que aquilo a que tenho direito. Veja bem que até um dia até me assustei: olhei para as duas pernas dependuradas e de repente olhei para mim. Não sei como foi isto, mas parece que me assustei pois sabia que só me faltava uma, mas tudo é possível. Então mandei o meu neto entregar uma delas ao Sr. Dr. lá do hospital, e veja que ele perguntou de jeito bruto
Para que é que eu quero isto?
E o meu neto, que se não fica, respondeu-lhe
Mas para a minha avó já serve não é? E veio-se embora.
E ria-se a bom rir, olhando por cima dos óculos como quem pergunta: percebes?
Bem! D. Amélia essa recuperação vai correr bem.
Ah! Pois vai, não sei se lhe disse, mas o estafermo do meu ex-marido que chegou a advogado à conta dos meus alfinetes e da minha coluna, ele morreu. Viu? Estava bem e morreu. Estava com a amante e morreu. E eu ainda cá estou! Foi a vida do Dr. Ai que linda musselina me traz. Que vamos fazer?
Olhe D, Amélia – menti – ainda não sei. Tem alguma sugestão?
Claro que sim. Não é o seu marido muito ciumento?
Sim.
Então vou fazer-lhe o que a musselina der, mas vai andar vestida unicamente com a macieza nua dela. Ou seja, vai andar linda como sempre a vi, todavia despida sim, de uma forma mais completa. Desde que me cortaram a perna ou desde que parei de chorar, mudei a minha criação nas roupas. Acho que o corpo, quando se veste, muitas das vezes perde a definição e assume uma pele que a roupa lhe empresta. No fundo, é melhor que tudo acabe confundido.
Perna no cabide ou sem perna na cadeira, tudo carrega presenças, até o que é volume vazio. E nós andamos aqui a enfeitar a epiderme que tantas memórias criam ao corpo e um dia abalroam-nos. Olhe menina, é o que mais sinto que me fizeram. Abalroaram-me e deixaram-me com uma parte de mim e uma crosta a segurar o resto. É uma espécie de uma guerra, mas constante.
Enfim, não preciso de medidas, já vi que são quase as mesmas: fronteiras que conheço há tantos anos.
E como está o paizinho? Doentinho não é? Chatinho, não é? Ai desculpe, mas ontem vi um filme em que a filha punha o pai no alpendre à hora do trem e um dia ambos viram o tempo e começaram a dar-se melhor.
‘I really love this idea that a utopia should be categorized by the meaningful interactions between people, that a society is “perfect” not because of how well-off the inhabitants are, but because of the happiness they’ve found amongst one another.’, Henri Lefebvre
Henri Lefebvre afirma que o espaço urbano necessita de uma reforma capaz de harmonizar noções de tempo e de espaço e capaz de eliminar qualquer tipo de segregação. Na verdade nunca se assistiu a uma reforma urbana profunda, capaz de influenciar a sociedade, na sua ordem e na sua estrutura. Segundo Lefebvre, o urbanismo tende a ser fragmentário, de curto prazo e de consumo imediato - reduz-se a uma mistura de considerações ideológicas que resultam de um conjunto de medidas administrativas, tomadas entre o poder público e os interesses privados.
Para Lefebvre, o funcionalismo urbano modernista tudo separa. No passado, a cidade apresentava uma vida urbana intensa porque era polifuncional - por exemplo, a praça servia de mercado, de espaço de encontro, de espaço de expressão e de discussão de ideias e até de espaço de decisão política. O modernismo trouxe a especialização e o isolamento dos espaços. O funcionalismo corresponde à divisão do trabalho parcelar cada vez mais específico no conjunto da sociedade - um espaço especializado, é um espaço perdido, pois é preenchido apenas por uma determinada atividade em certo momento.
Como foi visto na semana passada, Lefebvre argumenta que são os gestos mais pequenos e simples do dia a dia que transportam todo o saber do ser humano e essa consciencialização deve ser o centro da sua existência, da sua vida. Como materializar então um espaço que acompanhe esta mudança e que elimine a tendência contemporânea de alienação e da falsa ideia de que a vida do dia a dia é aborrecida e que poderá destruir o ser humano? Mas é preciso não esquecer, que a vida do dia a dia que deve ser valorizada e a que Lefebvre se refere, não é a vida urbana desgastante que se encaixa entre a deslocação - o trabalho - o dormir. É uma vida que valoriza o ser humano como ser pensante (e até mesmo hesitante) que sonha, que se exprime, que está atento aos momentos de revelação, de claridade emocional, de presença do ser e que pode levar a um preenchimento e a uma totalidade. Sendo assim, ao mudar-se a vida e a sociedade, deve inevitavelmente revolucionar-se o espaço.
Por isso, para Lefebvre, o verdadeiro espaço urbano deve ser polifuncional, deve ser um compromisso físico social, cheio de significado, entre habitantes que vivem integrados numa rede interminável de relações, num determinado tempo e num determinado espaço.
Lefebvre, na verdade, pensa que os urbanistas e os arquitetos deveriam refletir mais sobre o que é um espaço habitável. Se na vida urbana se assiste a um desaparecimento do conceito espacial de habitar poderá paralisar-se o conhecimento e a imaginação do ser humano. Lefebvre deseja acreditar que o reencontro com o verdadeiro sentido do habitar poderá ser descoberto e resgatado através da poesia e da filosofia.
O espaço urbano deverá assim ser concreto e não absorto. Deverá ser um influenciador ativo nas relações sociais. Deverá ser uma centralidade que faz coincidir o espaço do pensamento, com o espaço vivido, com o espaço percecionado e com o espaço concebido. Deverá promover a heterogeneidade, a integração, a subjetividade, a criatividade e o divertimento. Lefebvre propõe acima de tudo criar um espaço urbano através da intuição humana mais próximo do sujeito e não através de uma mente altamente treinada, lógica e abstrata.
Uma mudança social só poderá vingar se o espaço onde vivemos nos permitir a liberdade de apropriar e de manipular - Lefebvre afirma mesmo que poder sobre o espaço é poder sobre a vida! E talvez seja através da presença física e do corpo que experiencia, que poderá concretizar-se a reforma urbana que se anseia. O corpo do ser humano é vibração, é frequência, é energia e está em constante comunicação com as energias que o circundam - tudo se transforma e influencia mutuamente numa relação constante (todas as vidas e todas as suas formas se intersecionam perpetuamente, como num fluir interminável). O corpo é o espaço físico último capaz de juntar espaço e tempo. Quanto mais liberto o corpo, mais presença e expressão física terá - mais facilidade haverá para que se crie uma nova linguagem espacial apropriada e múltipla. Quanto mais participado, mais heterogéneo, mais complexo, mais polifuncional for o espaço urbano, onde se desenrola a vida, mais adequado será para que o ser humano seja total.
1. Não há dúvida nenhuma de que o cristianismo é actualmente a religião mais perseguida no mundo. Há bastante tempo que se vai concretizando o que parece ser um plano para acabar com a presença dos cristãos no Médio Oriente. Quase desapareceram da Palestina e vão-se extinguindo na Síria e no Iraque e mais lentamente no Egipto e no Líbano. Se em 1950 os cristãos na Palestina representavam à volta de 15 por cento da população, actualmente serão uns 2 por cento.
O relatório da Open Doors (Portas Abertas), com a Lista Mundial da Perseguição referente ao ano de 2018, é dramático, pois a perseguição aos cristãos no mundo continua a crescer. Só na lista dos primeiros 50 países onde os cristãos vêem os seus direitos mais limitados pelo facto de serem cristãos, o seu número eleva-se a 245 milhões, cifra que deve ser muito maior, já que pelo menos em 73 países do mundo os níveis de perseguição são “altos”, “muito altos” ou “extremos”: entre Novembro de 2017 e Outubro de 2018, 3731 cristãos foram mortos por causa de seguirem Jesus e 1847 igrejas foram atacadas.
A Ásia e a África são os continentes mais hostis aos cristãos. Um em cada nove cristãos sofre perseguição em todo o mundo; na Ásia, um em cada três e na África, um em cada seis. Na Lista da Perseguição Mundial, os três primeiros lugares são ocupados pela Coreia do Norte (há 17 anos que ocupa o primeiro lugar), pelo Afeganistão e pela Somália, respectivamente. A Nigéria, onde houve cerca de 2000 cristãos mortos por causa da sua fé, ocupa o décimo quarto lugar da lista dos 50 países com maior perseguição. O Paquistão é considerado o país onde a violência anticristã atinge o seu nível máximo. Causa preocupação o que se passa na Índia por causa do radicalismo hindu e na China sobretudo por causa da posição do Partido Comunista em relação à religião. As novidades na Lista dos 50 países são o Nepal e o Azerbaijão. A situação na Líbia, que ocupa a sétima posição na escala, causa particular preocupação. Com a retirada do autoproclamado Estado Islâmico, os níveis de perseguição no Iraque e na Síria desceram, embora continuem a ocupar lugares muitos altos na Lista: oitavo e décimo quinto lugares, respectivamente.
Entretanto, na Europa impõe-se frequentemente um “secularismo agressivo”, e, com honrosas excepções, para a França e o Reino Unido, é gritante o clamoroso silêncio do Ocidente democrático face a esta situação. Perante o aumento dramático da perseguição dos cristãos no mundo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico impulsionou um Relatório sobre a situação, que será apresentado em Abril. “A perseguição dos cristãos é frequentemente um sinal explícito e alarmante da perseguição das minorias”, assegurou o Ministro Hunt, que reconheceu que “podemos e devemos fazer algo mais”.
2. Neste ano de 2019, há, entre muitas outras, uma data altamente importante: em 1219, Francisco de Assis, em plena quinta cruzada, foi ao encontro do sultão do Egipto, o sultão Al-Kamil, faz este ano 800 anos. Recordando este acontecimento histórico, com a sua mensagem de tolerância, diálogo e compromisso com a paz, o arcebispo de Lahore, no Paquistão, também presidente da Comissão Nacional para o Diálogo Inter-religioso e o Ecumenismo, da Conferência Episcopal do Paquistão, presidiu, no passado dia 12, a um encontro de cristãos e muçulmanos. Aí foi lembrado que Francisco e Al-Kamil “defenderam a paz e a tolerância no meio da atmosfera de guerra e conflito durante as cruzadas. Deram um exemplo de diálogo inter-religioso e de compreensão mútua”.
É neste espírito que o Papa Francisco assumiu como um dos desafios do seu pontificado o compromisso com o diálogo inter-religioso, como mostrou a sua viagem ao Egipto e, imediatamente a seguir ao seu encontro com os jovens nas Jornadas Mundiais da Juventude, no Panamá, onde se encontra, vai deslocar-se à capital dos Estados Árabes Unidos, Abu Dhabi, de 3 a 5 de Fevereiro próximo, para participar num encontro inter-religioso sobre a “Fraternidade Humana”. E repete constantemente que quer visitar o Iraque, por onde em Dezembro passado andou o Secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, que celebrou o Natal com várias comunidades cristãs.
Evidentemente, o diálogo não pode ser unidireccional, tem de haver reciprocidade, sendo, por isso, razoável e legítimo esperar que concretamente os muçulmanos que vivem no Ocidente denunciem as atrocidades cometidas contra os cristãos nomeadamente nos países de maioria islâmica. O que alguns já fazem, felizmente. E a Turquia acaba de anunciar a construção da primeira igreja cristã desde 1923, a começar em Fevereiro.
3. Neste contexto, seja-me permitido, mais uma vez, sublinhar as condições irrenunciáveis para um diálogo tão urgente como difícil, concretamente para o diálogo islâmico-cristão, que aqui tenho repetido.
3. 1. Quando se olha para a situação do mundo, é o teólogo Hans Küng que tem razão: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, um ethos mundial”.
3. 2. A religião tem na sua base a experiência do Sagrado. Crente é aquele que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, Deus, esperando dele sentido último, salvação. De facto, as religiões aparecem num momento segundo: são manifestações e encarnações, necessárias e inevitáveis, da relação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. São mediações, construções humanas e, por isso, têm do melhor e do pior, entendendo-se, também a partir daqui, que o diálogo inter-religioso tem de assentar nalguns pilares fundamentais.
Todas as religiões, na medida em que não só não se oponham ao humano, mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas, num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social, e, por outro lado, estão relacionadas com o Sagrado, o Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá do que possamos pensar ou dizer. Precisamente porque nenhuma possui Deus na sua plenitude, devem dialogar, para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todas convoca. Assim, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus e os agnósticos, porque, estando de fora, mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos e a realização plena de todas as pessoas. A violência em nome da religião contradiz a sua natureza, que é a salvação. Face a um Deus que mandasse matar em seu nome só haveria uma atitude digna: ser ateu.
Dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal, mas histórico-crítica, dos Livros Sagrados, e a laicidade do Estado, que não deve ter nenhuma religião, para garantir a liberdade religiosa de todos. Evidentemente, a laicidade não se pode de modo nenhum confundir com o laicismo. De facto, a religião tem de ter lugar no espaço público, pois é uma dimensão do humano e faz parte da cultura.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado o no DN | 26 JAN 2019
«Escrevo a minha última carta de Klow, antes de partir de regresso ao meu lar lusitano. Como disse, encontrei a Sildávia como sempre – amena e simpática. E a Bordúria continua cheia de medos e desconfianças. Depois dos sinais apaziguadores em 1989, regressaram velhos fantasmas e designadamente o grande fantasma de Plekszy-Gladz, que eu julgaria totalmente banido. Mas não, voltam subtis e ambíguas referências a essa tremenda personagem, em nome de um estranho nacionalismo. É, afinal, a projeção do que hoje vivemos no velho continente.
Falta memória das guerras civis – e, em lugar de uma ligação entre o debate de ideias e a aceitação regulada dos conflitos, deparamo-nos com a ilusão de que tudo se pode resolver com um qualquer chefe omnipresente e omnisciente – como quis ser esse Plekszy-Gladz de má memória. O seu bigode até chegou a servir de símbolo de marca de automóvel e de decoração… É verdade que ainda não chegamos a tanto, mas a bigodaça volta não volta aparece. Entretanto o meu amigo Oliveira da Figueira desvaneceu-se. Partiu de Klow sem me dizer para onde iria.
Sei que os seus negócios vão indo razoavelmente, mas sobretudo o seu espírito aventureiro está mais vivo que nunca… Entretanto, fui matando saudades entre velhos amigos e ofereceram-me uma pequena imagem de Tintin com dois sildavos no tempo em que ele chegou aqui pela primeira vez, ainda ninguém sabia a história e a existência deste país, que continua a ser uma referência histórica e romanesca. Nada vos disse sobre a política. É uma pequena democracia multipartidária, com um governo de coligação com moderados de várias cores. Continua a ser uma monarquia constitucional quase republicana, com a divisa “Eih Bennek, eih blavek” – Aqui estou aqui vou ficar, centrada na velha lenda da rosa com espinhos e do cuidado necessário para não nos picarmos nela. Com uma Europa e um mundo em convulsão, os jornais, as rádios e as televisões dão-nos a notícias costumeiras…
Por mim parto com saudades. Até à vista caros amigos da Sildávia.
"A Obra de Leonardo Coimbra no Contexto Cultural da Sua Época" de António Quadros (in “Leonardo Coimbra – Filósofo do Real e do Ideal”, 1985) apresenta-nos a figura do pensador no quadro cultural português contemporâneo – salientado a importância da influência do intelectual.
UM MOMENTO IMPORTANTE «A Águia» e a «Renascença Portuguesa» foram uma placa giratória de influências que vamos encontrar em todo o século XX e no melhor dele, apesar das profundas heterogeneidades. Quando se fala de Leonardo Coimbra percebemos que há uma pulsão plural, que se manifesta sobremaneira no educador – para quem a cidadania exigia liberdade de espírito e capacidade criadora. Quando recordamos Pascoaes, temos perante nós o poeta intuitivo, sonhador e interrogador dos mitos. Quando lembramos Jaime Cortesão (talvez a grande sombra tutelar da «Renascença»), percebemos que a poesia e a cidadania se juntam à capacidade de compreender a História – em nome do enigma que o autor de «Fatores Democráticos na Formação de Portugal» procurou incessantemente responder com o «franciscanismo» e a terceira idade de Joaquim de Flora, em nome da marca civilizacional de um «humanismo universalista». No dealbar do movimento, Pascoaes e Proença apresentaram duas leituras diversas, mas que devemos considerar complementares. Pascoaes fala de «provocar por todos os meios de que se serve a inteligência humana o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença prefere «pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista racional e as condições, os recursos e os fins nacionais». São diferentes os dois pontos de vista, mas há uma nítida convergência – daí a palavra Renascença, como ato de reviver e de avançar. A síntese indicou-a Jaime Cortesão: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». De facto, há uma ideia moderna de mobilizar energias, de fazer aparecer forças morais e educativas e de abrir a sociedade ao mundo moderno. É por isso mesmo que a «Renascença» segue as pisadas das tradições liberal e socializante da Geração de 70, relendo-as à luz das preocupações do novo século – e, nesse ponto, como bem viu o próprio Fernando Pessoa, em «A Nova Poesia Portuguesa» (publicado entre Abril e Novembro de 1912 em «A Águia»), Antero de Quental é símbolo da maturidade moderna, que será assumida em termos novíssimos pela geração que criará «Orpheu».
UMA ATITUDE FUTURANTE Leonardo Coimbra (1883-1936) assume uma atitude igualmente dinâmica: “A Democracia não é um estado mas uma tendência; a Democracia não é o código das nossas liberdades, limitando a liberdade dos outros – a Democracia é um permanente esforço para uma melhor justiça e para uma mais completa liberdade, justiça arrancada por um mergulho até ao mais profundo do coração humano, liberdade procurada nos meandros do nosso ser interior, no ponto mais alto da nossa vida, lá nas cumeadas de alma onde se cruza com o branco luar da inteligência que indaga, o arrebol róseo e violeta da bondade universalizante que a tudo e a todos quer cingir e amar”. E se ouvimos o próprio Leonardo, espírito fulgurante, devemos recordar o que dele disse António Quadros, um dos seus discípulos marcantes: “O homem é um ser para a liberdade e a liberdade realiza-se antes de mais nada pelo pensamento, que é uma capacidade individual e resulta do encontro da subjetividade infinita de cada um com os dados de uma experiência pluriforme e singular, insubstituível e intransferível, só em parte comunicável pois se realiza em diversos níveis. O conhecimento nunca o poderá ser em plenitude, se recusar as contribuições de uma gnoseologia aberta e se ao invés se cercar de conceitos positivistas, dando às ciências um conteúdo puramente material, sem relação com o espírito ou com uma verdade transcendente à fenomenologia do sensível”. Do mesmo modo, recorre à monadologia, inspirado em Leibniz, criticando, porém, a ideia de uma harmonia pré-estabelecida, porque contrária à liberdade inerente ao seu criacionismo, bem como à dinâmica comunicacional entre as mónadas. O universo para Leonardo (segundo Pedro Calafate) é criado pelo homem num processo dialógico que o faz chegar a Deus pelo fraterno amor de tudo, e não algo criado de uma vez por todas pela vontade divina. Em última análise Deus é a luz que ilumina a ação criadora do homem. Deus é o Amor que une, e cada consciência é a unidade elementar que pelo amor se move atraído pela «grande Unidade». Por isso, a compreensão é a Unidade e compreender é Amar.
A APOSTA NA INSTRUÇÃO Duas vezes Ministro da Instrução Pública, reformou a Biblioteca Nacional e reorientou o ensino primário. Neste domínio, Leonardo Coimbra teve a maior importância (além da fundação e do magistério na Universidade do Porto, tão incompreendido), já que foi um dos membros dos governos republicanos que aperfeiçoou coerentemente a reforma de 1911 de António José de Almeida, que João de Barros considerou ter sido descaracterizada. Superando tal limitação, a reforma de 10 de Maio de 1919 de Leonardo Coimbra consolidará e completará essa orientação – fundindo os ensinos primário elementar e complementar no ensino primário geral, qualificado como obrigatório, abrangendo 5 anos. Insista-se no pioneirismo da reforma de 1911 quanto à educação infantil, que viria a ser concretizada nos Jardins-Escola João de Deus, segundo o método lançado em 1876 por iniciativa privada, graças à ação do grande poeta, continuada por seu filho João de Deus Ramos. Se o ensino primário foi atentamente tratado, o ensino secundário (de cuja reforma foi encarregue Adolfo Coelho) foi menos considerado. Em 1918 ainda houve uma tentativa algo ambiciosa de reforma liceal no consulado sidonista, com Alfredo de Magalhães, mas sem sucesso. Afinal, “os legisladores republicanos não tiveram, para com o ensino liceal, nenhum rasgo de audácia que de perto ou de longe equivalesse à reforma do ensino primário, embora boa parte desta não fosse além do desejo dos seus redatores” – no dizer de Rómulo de Carvalho. João Camoesas em 1923 ainda lançará a iniciativa de preparar o Estatuto da Educação Pública, para cuja elaboração convida Faria de Vasconcelos, pedagogo fundador da “Seara Nova”. O documento prevê: ensino infantil (dos 3 aos 6 anos), ensino primário, obrigatório, gratuito e em coeducação (dos 7 aos 12, com dois escalões de 3 anos cada) e grau secundário (dos 13 aos 16 anos). Haveria ainda quatro modalidades de educação especial: o curso especial do ensino secundário para acesso ao ensino superior (dos 17 aos 19 anos), o ensino técnico elementar (dos 13 aos 16 anos), o ensino técnico complementar (dos 17 aos 20 anos) e o ensino profissional. Jaime Cortesão dirá que é “não só o mais sério documento político emanado de um governo, dentro da República, como a primeira tentativa de reforma nacional orientada por um espírito democrático”. Também António Sérgio defenderá acaloradamente o documento (“Um dia a nação nos há-de julgar!”). Mas a queda do governo impossibilitou a sua concretização. Não é demais dizer, em suma, que o cidadão Leonardo Coimbra foi dos que mais corajosamente lançaram sementes à terra no sentido de tornar a democracia um lugar de encontro, de respeito, de liberdade e de justiça. Daí a sua atualidade!
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
As meças de forças da Ordem do Templo com o poder político - e não só - foram-se sucedendo, acompanhando o crescimento daquela milícia religiosa, e do seu próprio poder financeiro e militar, aliás traduzido em praças fortes e territórios ocupados e governados por ela. Se, em 1147, o papa Eugénio III se desloca pessoalmente a Paris para assistir ao primeiro capítulo geral da Ordem, cujos cavaleiros partirão, como guarda especial do rei Luís VII de França na 2º cruzada, para a Terra Santa - expedição que foi um fracasso, obrigando o rei a colocar-se, ainda mais, sob a proteção dos Templários - já em 1153, para proteger Jerusalém, onde reinava o jovem Balduíno III, com este participam na conquista da praça turca de Ascalão e, por terem sido quarenta dos seus cavaleiros os primeiros a nela entrar, o mestre Bernardo de Trémolay guardou-a para o Templo, o que foi mal percebido... Aliás, de nada lhes valeu, antes mal lhes veio, pois acabaram por ser massacrados pelos turcos, que a ocuparam até à sua reconquista, pouco depois, por Balduíno. O sucessor deste, o rei Amaury de Jerusalém, aliado ao imperador bizantino, irá romper a aliança do reino franco com o Egipto, em 1168. Tal expedição conta com a participação dos cavaleiros do Hospital, mas Bertrand de Blanquefort, mestre do Templo, recusa a dos seus monges guerreiros... E com razão, como reconhece o cronista Guilherme de Tyr: O mestre do Templo e seus frades nunca quiseram intervir em tal operação e disseram que não acompanhariam o rei nessa guerra. Pode bem ser que se tivessem apercebido de que o rei não tinha boa razão para guerrear os egípcios, violando as convenções garantidas pelo seu juramento. Logo depois, o advento de Saladino marcará o início da decadência e queda final do reino cristão na Palestina. Mas ainda levará algum tempo, posto que, antes da morte de Saladino, em 1193, perturbações entre muçulmanos os enfraquecerão e permitirão que S. João de Acre seja reconquistada por Filipe Augusto de França e Ricardo Coração de Leão, com notório apoio dos Templários, cujo Grão Mestre era Roberto de Sablé, nobre vassalo do rei inglês e seu amigo pessoal.
Penso, Princesa, aqui neste sossego dos campos a que a aproximação do Inverno vai retirando os tons de oiro e fogo com que o Outono os cobrira, que - como tão bem o explanou Ibn Khaldun, de quem várias vezes te falei - o percurso histórico de reinos e instituições é, à imagem da mãe natureza, um surto e florescimento, um apogeu de frutos, ceifas e colheitas, um esplendor decadentista, já glorioso como um canto de cisne moribundo, e finalmente um esquecimento silencioso, onde apenas os olhos do coração vêem o invisível...
Para a Ordem do Templo, a dos Pobres Cavaleiros de Cristo, a secreta fecundidade do Inverno deu-lhes nova vida nos reinos ibéricos, ainda a braços com o fim da Reconquista e a ameaça costeira de piratas mouros, já tentados por aventuras africanas e, ainda, pelo rodeio do aperto islâmico através da circunvalação de África e o acesso ao riquíssimo comércio do Oriente longínquo. Assim se transformaram, em Portugal, os Templários em cavaleiros só de Cristo, e a Ordem desempenhou o papel de sustento, até financeiro, das Descobertas.
Já não me recordo da data em que te escrevi as linhas acima, nem sequer se foi no Outono passado ou noutro anterior. Mas lá falo da aproximação do Inverno... Hoje, ocorreu-me vir recuperá-las, lembro-me ainda de que iniciavam uma carta que era sequência de outras que te enviara. Assim sucede agora, por ter lido, no Figaro Littéraire deste 6 de dezembro, a resenha de um livro da professora italiana Simonetta Cerrini, agora traduzido para francês, com o título Le Dernier Jugement des Templiers (Flammarion, 2018). Tal obra vem ao encontro do que há muito penso e já em parte te dissera: houve (e há) mais fantasia e muito gosto de fábulas misteriosas - do que trabalho aturado e sério de investigação - em muito do que por aí se tem contado dos Templários. O livro da historiadora Simonetta Cerrini, doutorada pela Universidade Católica de Milão, deve certamente ser obra fundamentada e documentada, até porque a autora há muito se dedica ao estudo da Ordem do Templo. Não resisto a deixar-te aqui um trecho longo e elucidativo da resenha feita, no Figaro, por Paul-François Paoli. Traduzo:
Ela retraça a história do que acha que constitui o primeiro grande processo político da história de França, enquanto nos vai propondo uma leitura dos documentos da época. Designadamente, a decifração de uma bula do papa Clemente V, Vox in excelso, datada de 22 de março de 1312, e da qual encontrou várias cópias. Nela o papa aprovava a dissolução da Ordem dos Templários, sem contudo se solidarizar com os métodos de terror utilizados por Filipe o Belo, que acusava os cavaleiros de todos os pecados do mundo... ... As acusações que Filipe o Belo levantava contra esses briosos que haviam feito voto de pobreza e castidade, e cuja missão era, na origem, proteger os peregrinos que partiam para as cruzadas [melhor dito, penso eu : para a Terra Santa] eram as piores que se podiam fazer. A mais grave era a heresia e a blasfémia, sem esquecer a avareza, a acumulação de riquezas, a sodomia, etc. Para a historiadora, que recorda que Dante, no Purgatório, acusa Filipe o Belo de cupidez e crueldade, não há qualquer dúvida de que o grande culpado de todo este caso é o próprio rei, que quer deitar mão às riquezas de uma Ordem cujos membros se pensa estarem ao serviço dos pobres. Não é que os Templários nada tivessem de censurável, pois até Jacques de Molay, seu derradeiro grão mestre, desejava reformar essa contestada Ordem. Mas o que surge patente, ao correr das páginas, é o carácter monstruoso da maquinação de Filipe o Belo, cujos métodos parecem prefigurar os piores processos por bruxaria dos estados totalitários...
Quase a fechar esta, vou a palavras da própria Simonetta Cerrini, onde encontrarás lembranças de apontamentos feitos nas minhas cartas sobre Templários, escritas após uma visita especial ao Convento de Cristo, em Tomar, onde o nosso guia povoou o cenário de fantasmas. O que me traz escritos e datas à memória: são nove (9!) cartas que te escrevi, publicadas depois pelo blogue do CNC entre 23 de outubro e 27 novembro de 2016. Escreve a professora Cerrini no seu último livro:
Nenhum soberano seguirá o rei de França nessa cruzada contra o Templo... ... Quando o papa Clemente alargou o seu inquérito a todos os países que albergavam casas templárias, deve ter-se apercebido, ainda que demasiado tarde, de que Filipe o Belo tinha criado, não só uma bolha financeira, mas também uma bolha místico-mediática destinada a apoiar um "Estado totalitário", sobre cujo altar os guardiães do Templo de Salomão deviam ser sacrificados.
Tardia embora, a "revisão" papal todavia permitiu a "conversão" da Ordem do Templo noutras novas ordens. Em Portugal, como sabemos, na de Cristo, por vontade também, e militante, d´El-Rei Dom Diniz, o Lavrador. Este monarca foi muito ativo em política de consolidação da soberania portuguesa e reforço do poder régio. O que explica como, durante o seu reinado, as relações com o papado tivessem sido muito marcadas por questões relacionadas com as ordens religiosas militares. Assim, é nessa época que os cavaleiros portugueses da Ordem de Santiago passam a eleger, direta e separadamente de Castela, o seu mestre. E, após a extinção papal da Ordem do Templo, Dom Diniz opõe-se à entrega dos seus pertinentes bens à Ordem do Hospital, e à própria Igreja, colocando-os sob a alçada da coroa. Finalmente, consegue, em 1319, que o papa João XXII institua, pela bula Ad ea ex quibus, a Ordem de Cristo, bem portuguesa, recetora de todos os bens dos nossos Templários.
Assim te voltei a falar dos Templários, cumprindo, Princesa de mim, o desejo que formularas, e sorrindo amareladamente à lembrança de que já em tempos idos - sem tweeters, televisões, rádios, revistas e jornais - os autores políticos criavam histórias e lançavam caçadas a possíveis bruxas, em busca de um conveniente desenho de bodes expiatórios que vocacionassem iras... Hoje, democraticamente, tal panorama alastrou e quotidianamente vai tentando preencher os nossos horizontes. Os debates de ideias e projetos vão cedendo espaço à multiplicidade dos ataques ad hominem, a promiscuidade do aparelho judicial com o mediático vai gerando borradas confusões, juízes e processos em justiça tornam-se actores e cenários de outras guerras e disputas. O celebrado, consagrado princípio da separação de poderes (o executivo - e o moderador - o legislativo e o judicial) cada vez mais dificilmente consegue afirmar a independência judicial, quer por não se conseguir libertar este poder da contínua conspiração política em que vivemos, quer por demagogicamente o substituírem pela chamada comunicação de massas (pelas redes públicas e pelas ditas sociais). Um dos mais graves problemas a resolver nas democracias hodiernas tem, precisamente a ver com a afirmação, estruturação, disciplina e independência erga omnes do poder judicial e seus aparelhos.
Não será esta carta para ti, Princesa de mim, o foro curial para uma reflexão sobre tão complexa questão política, jurídica e comunitária. Mas todavia - quiçá por tanto me enjoar o meu desgosto das comuns intrusões na privacidade alheia, dos processos de intenções, das sistemáticas violações do direito ao bom nome e ao juízo justo (ter-nos-emos esquecido desse ensinamento que nos deram quando crianças - do próximo, ou bem ou nada - ?), sim, Princesa, talvez por isso, não resisto a falar-te do último livro da historiadora britânica da cultura, Tiffany Watt Smith: Schadenfreude: The Joy of Another´s Misfortune, Little, Brown Spark, 2018). Este título recorre à união de dois termos germânicos (Schaden, prejuízo, pena, e Freude, alegria) para exprimir o sentimento mesquinho que é a satisfação pelo mal infligido ou acontecido a outrem. Não te contarei aqui as várias teorias que a autora refere para explicação de vício humano tão antigo. Até os gregos já o denunciavam, designadamente por palavra atribuída a Aristóteles: epichairekakia. Mas pretendo salientar a observação que Tiffany Watt Smith faz de que os tempos hodiernos são a idade de ouro da alegria malévola (ou do gozo malevolente). As redes sociais, ao abrirem-nos múltiplas oportunidades para nos maldizermos uns aos outros, lisonjeiam os nossos instintos mais baixos e proporcionam-nos algumas miseráveis delícias.
Perante tão afligente panorama, mais intensamente pensossinto a necessidade imperiosa de um pacto do regime democrático que veicule a construção política de um sistema de justiça que possa cumprir, tanto quanto possível, a sua finalidade, isto é, dar a cada um o seu direito: jus suum cuique tribuendi, dizia Ulpiano, que tanto gosto de citar. Tal aparelho terá, provavelmente, de ser concebido fora da lengalenga habitual da limitada imaginação política reinante, de forma a assegurar a sua imprescindível independência e a necessária transparência dos seus procedimentos. E para nos ir ajudando a acabar com essa praga de "processos públicos", tão tristemente marcados por intenções persecutórias e sanhas ou, ainda, em contradição, por habilidades e manobras dilatórias e encobridoras... Até chego a perguntar-me se, ao fim e ao cabo, não andarão por aí muitos mais culpados em liberdade (mesmo que relativa, vigiada ou condicionada), do que menos culpados em prisões.
Faz-se hoje aqui referência a incêndios que atingiram dois teatros: um foi recuperado, o outro desapareceu. O primeiro continua em funções, se bem que o incêndio tenha destruído elementos artísticos obviamente irrecuperáveis. O outro deixou em definitivo de existir. E esclareça-se ainda que não se trata de situações inéditas ou mesmo inesperadas.
Trata-se então ao Teatro D. Maria II em Lisboa e ao Teatro Baquet do Porto. E começamos por este a evocação, pois cumpriram-se exatos 160 anos desde a sua fundação e 131 anos desde a sua definitiva destruição.
O Teatro Baquet foi inaugurado em 1859, construído por iniciativa de um alfaiate francês, Antoine Baquet. Ficaram referências à dimensão e expressão arquitetónica e decorativa que se reproduzia no interior da sala de espetáculos, segundo gravura e descrições da época.
A fachada era dominada por uma varanda com um total de 8 grandes janelas, e encimada por quatro estátuas alegóricas. E a sala de espetáculos tinha 68 camarotes em três ordens, alem obviamente da plateia devidamente dimensionada.
Pois em 20 de março de 1888 o Teatro Baquet ardeu. E morreram para cima de 120 pessoas. Ficou a memória e a gravura que aqui se reproduz.
Felizmente, o incêndio que, em dezembro de 1964 atingiu o Teatro de D. Maria II não fez vítimas. Tive ocasião de o visitar quando ainda se notavam focos do incêndio.
Recordo que subi a um camarote. O palco, visto da sala, nada mais mostrava que uma estrutura negra. E a sala, vista do palco, dava a imagem completa da destruição. Desde logo, realçou-se o desaparecimento das pinturas do teto, que fora rebaixado e redecorado por Columbano...
Recordemos que o Teatro ficou a dever-se a iniciativa de Garrett, mas tinha beneficiado de sucessivas obras de restauro e redecoração, a partir a inauguração em 13 de abril de 1846, com uma peça hoje esquecida, “Álvaro Gonçalves - O Magriço ou Os Doze de Inglaterra” de Jacinto de Aguiar Loureiro, aliás também ele mais ou menos esquecido como dramaturgo.
Em boa hora o Teatro D. Maria II foi devidamente recuperado e até hoje constitui um referencial da arquitetura de espetáculo e da vida artística portuguesa.
23. UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRO: PORTUGAL-JAPÃO, SÉCULOS XVI-XX
A exposição patente no Palácio da Ajuda, em Lisboa (até 26.03.2019), pretende mostrar as várias fases da relação estabelecida entre Portugal e o Japão há quase 500 anos, marcadas pelo assombro, deslumbramento e maravilhamento inicial, a que se seguiu uma desconfiança e tensão crescente que terminaria com o martírio e expulsão de missionários e comerciantes portugueses, o que não impediu uma influência recíproca entre ambas as culturas.
A existência de um país para lá da China era conhecida, mesmo antes de Marco Polo lhe ter chamado Cipango ou Zipango, ou Tomé Pires o referir como Japun ou Japang, mas nada se sabia quanto à sua localização exata, modo de viver, costumes e população. Foi com a cartografia portuguesa que se soube do seu posicionamento geográfico, com a carta que surgiu no Atlas de Diogo Homem (1550 a 1558?), onde aparecem as três ilhas principais do arquipélago japonês, mais pormenorizado e melhor representado, em 1561, no planisfério de Bartolomeu Velho.
Todavia, foi com a Nau do Trato, conhecida no Japão como kurofune ou navio negro, que se concretizou o principal elo de ligação entre os territórios asiáticos de presença portuguesa e a Europa, a bordo da qual era levada carga de bens de várias latitudes, a par de uma tripulação de gentes variadas, despertando o interesse de grandes senhores da ilha de Kyushu, que após contactos junto dos portugueses e missionários, doaram Nagasáqui aos jesuítas em 1580, que além de porto seguro, foi centro de propagação do cristianismo e de comércio com o exterior, tornando-se um dos centros urbanos e mercantis mais cosmopolitas e relevantes do Japão.
O assombro começa, assim, com a chegada de um navio de grandes dimensões, até então nunca visto, com profusão de velas, mastros e homens diferentes, de nariz comprido, em que a tripulação salta de mastro em mastro, lembrando macacos, como tão bem são retratados nos biombos nanban. Nanban, diz a exposição, são obras artísticas que representam nanbanjin ou bárbaros do sul. Não foi apenas o aspeto físico, modo de falar e comportamento que assombrou os japoneses, dado que entre as coisas desconhecidas e raras levadas pelos portugueses estava um objeto estranho, uma espécie de cano comprido, a arma de fogo, que de imediato copiaram e utilizaram. Bem como objetos redondos à frente dos olhos, os óculos, que absorveram.
Tendo como espanto, do lado europeu, o conhecimento e importação do biombo (do japonês byobu), imediatamente absorvido e adaptado pelas elites europeias, servindo para proteção de interiores das correntes de ar e conservação ou resguardo do calor das lareiras, até à divisão de espaços, sem esquecer a sua função decorativa e artística (arte nanban). Também as armaduras, os sabres e os cavalos dos Samurais, na sua beleza e funcionalidade de técnicas sofisticadas usadas, se tornaram objetos de arte apreciados pelos ocidentais, de que é belo testemunho o conjunto exposto de armadura do Samurai, sela, arreios e armadura de cavalo que foi presente diplomático do Japão ao nosso rei D. Luís, aquando do reatamento dos laços quebrados com a expulsão dos missionários, em 1614, e com a saída forçada de todos os portugueses, no final da década de 1630.
Encontraram, porém, os portugueses (e europeus que se lhe seguiram) uma sociedade cultural e socialmente forte, com caligrafia e valores próprios, que não abdicava do seu poder, razão pela qual os jesuítas foram perseguidos e expulsos quando foram tidos como um contrapoder, incluindo os cristãos, com inerentes consequências aos portugueses em geral, nomeadamente comerciantes.
Em nome da reunificação do Japão, o cristianismo é tido como um contrapeso subversivo, havendo que o destruir, pondo fim aos contactos que os japoneses tivessem com o exterior. Os missionários são expulsos, muitos castigados publicamente, os cristãos do Japão obrigados a renegar a sua fé cristã. As execuções eram tidas como martírios, os executados crucificados ou queimados na fogueira apelidados de mártires, os seus corpos resgatados para relíquias, havendo na exposição reproduções digitalizadas de gravuras e documentos que o atestam. Martírios que não eram diferentes das punições feitas pela inquisição na Europa. O filme Silêncio, de Martin Scorsese, testemunha-o.
A que acresce, em 1903, o estabelecimento da Legação de Portugal em Tóquio, vindo a ter como nota dominante o espanto dos nossos diplomatas com o esforço japonês de modernização à luz das normas civilizacionais ocidentais, espantando-se em simultâneo “(…) com o empenho nipónico em valorizar o passado histórico comum entre Portugal e o Japão. Por todas essas razões, insistem numa política que consolide e aproxime o reencontro”.
Referirei, a propósito, que é normal falar-se de Portugal no Japão, desde logo pelo facto de os portugueses terem sido os primeiros ocidentais europeus a aí chegar e terem introduzido a arma de fogo, num encontro que mudou a história do país, o mesmo não sucedendo entre nós.
A exposição, apesar do seu inegável mérito, e falar do Atlas de Fernão Vaz Dourado, de João Rodrigues (jesuíta do primeiro dicionário de português-japonês), São Francisco Xavier, Santo Inácio de Loyla, Sequeira de Sousa, é omissa quanto a portugueses que foram decisivos neste encontro e reencontro. Como os primeiros que pisaram solo japonês (Fernão Mendes Pinto, Francisco Zeimoto, Cristóvão Borralho, a que são também associados os de António da Mota, Diogo Zeimoto e António Peixoto), Luís Frois (autor da História de Japam, tida como fundamental por investigadores portugueses e nipónicos), Luís de Almeida (médico criador de uma escola de cirurgia para alunos japoneses, que no Japão tem um hospital, monumentos e homenagens em seu nome), Cristóvão Ferreira (que permaneceu no Japão, após abandonar o catolicismo, cuja obra Segredos da Cirurgia Portuguesa foi a base para futuras obras em japonês), Wenceslau de Morais (com uma obra notável sobre o Japão, onde passou a residir em permanência e morreu). Sem esquecer o Museu e o Festival da Espingarda, em Nishinoomote, na ilha de Tanegashima, onde arribaram os primeiros portugueses, homenageando-os. São alguns exemplos do muito que urge valorizar e não negligenciar.
«A poesia (…) pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar.» Arte Poética – II
Pois te digo Sophia
Que sinto uma neve a embranquecer mais
Esclarecendo a vida mergulhada na vulnerabilidade
Onde e aonde expõe por fim toda a paisagem
Sempre que as exímias tuas palavras
Me levam pelos bosques para deles
Outra bainha outro sentir
E diria
Eis uma memória encontrada e coligada
A focos de luz boreais
De volta à nossa casa tão espessa quanto o coração
Tão revivida quanto o sinal mais inquietante com o qual dormi
Numa inesperada cadência que acreditei ir aclarando o coração dos homens
E tu sabes e eu
Recordo-te
Sophia
Que nos olhamos por entre cortinas sobrepostas
Quanto te leio
E nos faço olhar as duas ao espelho
Àquele que é criatura de liberdade
Onde semeias/semeio
Os beijos
Cheios daquela vontade antiga e de agora
Tu
Ramificada pelo mundo
Nele a insinuares-te com contorno próprio
Entre a não liberdade da origem
E a vital presença
E sei que suscitas e suscitaste a surpresa
E sei que o lago me espera
Sophia
Tenho os teus poemas nas mãos
Vou com eles nadar de leve
A vida volta
Participámos já na grande festa da eclosão
Dos seres?
Ou a tarefa de sobreviver já nos iniciou na pequeníssima parte de um poema?
Ninguém pode compreender o que cada um é
Ninguém explica o não recordar-se
A chave é minúscula
Só quero saber evadir-me de um mundo a outro
E encontrar-te tão feliz
Como afirmaste sentir-te quando te sabias de partida
'The meaning of life is not to be found in anything other than that life itself.', Henri Lefebvre
Henri Lefebvre em 'Critique of Everyday Life' escreve que é na vida real, na vida de todos os dias que a pessoa humana (corpo e espírito) encontra o verdadeiro significado da sua existência.
A ânsia de evasão da realidade concreta, o desejo de construção de uma outra vida (baseada na nostalgia pelo passado ou no sonho por um futuro super-humano) pode trazer a desumanidade mais extrema.
'Our search for the human takes us too far, too deep, we seek in the clouds or in mysteries, whereas it is waiting for us, besieging us on all sides.', H. Lefebvre
Ao abandonar-se o mundo obscuro da metafísica e a profundidade inatingível da vida interior, o ser humano poderá descobrir a imensa riqueza que, o mais humilde facto do dia a dia, contém. As descobertas científicas mais avançadas podem surgir do interesse pelo insignificante.
Lefebvre afirma mesmo que são os factos e as coisas mais familiares que nos abrem ao desconhecido e são os verdadeiros contentores de vida - não misteriosa ou mística, mas real.
A vida de todos os dias tem de ser vivida (com grande entrega) conscientemente no seu mais íntimo e nos mais repetitivos detalhes - só assim a existência será mais humana e haverá mais humanidade. E é através do desenvolvimento das condições humanas, quotidianas e reais, que se pode construir a pouco e pouco uma existência utópica concreta.
O dia a dia é o espaço palpável onde a vida de cada indivíduo ocorre e que fica por entre todas as atividades mais repetitivas, fragmentadas e mínimas.
Os detalhes contém em si toda a realidade da vida humana mais sincera - palavras, gestos, movimentos, pensamentos, ações.
'We have learned how to perceive the face of our nation on the earth, in the landscape, slowly shaped by centuries of work, of patient, humble gestures. The result of these gestures, their totality, is what contains greatness.’, H. Lefebvre