Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

NO NOVO ANO: CUIDAR

 

No início de um novo ano, 2019 da era cristã, 5779 do calendário hebraico, 5120 do hindu, 4715 do chinês, 2562 do budista, 1441 do muçulmano, deixo aí uma breve reflexão sobre um tema essencial, o cuidado — cuidar e ser cuidado —, constitutivo do ser humano.

 

Entre as grandes obras do século XX, figura uma do filósofo alemão Martin Heidegger: Sein und Zeit (Ser e Tempo). Nela, retoma a célebre fábula sobre o Cuidado, de Higino, um escravo culto (64 a. C.-16 d. C.). Fica aí, traduzida literalmente.

 

“Uma vez, ao atravessar um rio, ‘Cuidado’ viu terra argilosa. Pensativo, tomou um pedaço de barro e começou a moldá-lo. Enquanto contemplava o que tinha feito, apareceu Júpiter. ‘Cuidado’ pediu-lhe que insuflasse espírito naquela figura, o que Júpiter fez de bom grado. Mas, quando ‘Cuidado’ quis dar o próprio nome à criatura que havia formado, Júpiter proibiu-lho, exigindo que lhe fosse dado o seu. Enquanto ‘Cuidado’  e Júpiter discutiam, surgiu também a Terra (Tellus) e também ela quis conferir o seu nome à criatura, pois fora ela a dar-lhe um pedaço do seu corpo. Os contendentes invocaram Saturno como juiz. Este tomou a seguinte decisão, que pareceu justa: ‘Tu, Júpiter, deste-lhe o espírito; por isso, receberás de volta o seu espírito por ocasião da sua morte. Tu, Terra, deste-lhe o corpo; por isso, receberás de volta o seu corpo. Mas, como foi ‘Cuidado’ a ter a ideia de moldar a criatura, ficará ela na sua posse enquanto viver. E, uma vez que entre vós há discussão sobre o nome, chamar-se-á  ‘homo’ (Homem), já que foi feita a partir do húmus (Terra)’.”

 

Martin Heidegger, um dos maiores filósofos do século XX, retoma a fábula e reflecte sobre o cuidado enquanto estrutura essencial do ser humano. Cuidar e ser cuidado são determinantes da sua constituição. O que seria de nós, se, ainda dentro do ventre materno, não houvesse cuidado, se, ao nascermos, não cuidassem de nós? O cuidado nunca nos pode abandonar. Sem o cuidado ao longo da vida toda, do nascimento à morte, o ser humano desestrutura-se, sente-se perdido, só, não encontra sentido e acaba por morrer, entregue ao abandono. 

 

O cuidado tem uma dupla vertente. Por um lado, significa preocupação mais ou menos ansiosa e a consequente prevenção. É assim que os pais dizem aos filhos, ameaçados por perigos: tem cuidado, filho; tem cuidado, filha! E prevenimos os amigos que nos pedem conselho: eu não iria por aí, tenha cuidado, acautele-se! Por outro lado, e sobretudo, tem a ver com a entrega abnegada aos outros, cuidando deles em todas as dimensões, pois a perfeição do ser humano na realização das suas possibilidades mais próprias é tarefa do cuidado.

 

Cuidar de quem e de quê?

 

O cuidado é, pela sua própria natureza, abrangente. Todos temos de cuidar. Cuidar de nós, cuidar de todos os outros, pois só somos na inter-relação, cuidar da Natureza, cuidar da transcendência e de Deus em nós. Sendo o ser humano um ser bio-psico-social-espiritual-transcendente, terá de estender o cuidado a todas as suas dimensões. Para poder ser e ser humano, autenticamente humano. Cuidar por afectos, palavras — ah! a cura pela palavra! — e por obras.

 

Mas, se o cuidado — ser cuidado e cuidar — é constitutivo do ser humano, de todo o ser humano, há pessoas cuja missão e até profissão é cuidar, ser cuidador. Estão nesta situação, só para dar alguns exemplos, pais, professores, padres, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, geriatras, profissionais e voluntários que cuidam da saúde e bem-estar de doentes, acamados e idosos...

 

Então, a pergunta é: eles cuidam, são cuidadores. Quem cuida deles? E como cuidam eles deles próprios? Como se previnem contra os perigos do stress e do burnout?

 

Neste contexto, aparece também a necessidade da espiritualidade. Realmente, há dados científicos que mostram a importância da espiritualidade e da prática religiosa para a saúde e até para a esperança de vida. Assim, na sua obra The Spiritual Brain, Beauregard cita 158 estudos médicos sobre o efeito da religião na saúde, concluindo que 77 por cento fazem menção de um efeito clínico positivo. Um estudo também mostrou que “os adultos mais idosos que participam em actividades religiosas pessoais antes do aparecimento dos primeiros sinais de incapacidade nas actividades do quotidiano têm mais esperança de vida do que aqueles que o não fazem”. Neste sentido, permita-se-me que cite também o neurocientista Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, no livro  Deus Ainda Tem Futuro?, que coordenei: “A medicina baseada na evidência tem sugerido que a religiosidade e a espiritualidade influenciam de forma efectiva o desenlace em muitos domínios clínicos, incluindo a dependência de drogas. Koenig e colegas estudaram em 1999 a taxa de sobrevida de cerca de 4000 pessoas com mais de 65 anos durante um período de 6 anos. Concluíram que aquelas que foram à igreja mais do que uma vez por semana tinham uma esperança média de vida superior a 10 anos relativamente às que não a frequentaram. A  experiência espiritual é benéfica para a saúde humana e o tipo de bem-estar psicológico que proporciona pode ser activamente procurado.”

 

Como dizia o famoso Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, é preciso prevenir-se contra “a agitação paralisante e a paralisia agitante”. Esta agitação e paralisia constituem um perigo maior do nosso tempo. Urge, pois, saber parar e repousar, como Jesus que, no meio da sua missão de anúncio do Evangelho, parava para meditar e orar ou pura e simplesmente para descansar. Afinal, cuidado, em latim, diz-se cura — não se chamava ao padre nas aldeias o cura de almas? —, que, para lá de cuidado, significa incumbência, tratamento, cura, inquietação amorosa, amor. Por esta via, chegamos também à medicina, que provém do latim mederi — a raiz é med: pensar, medir, julgar, tratar um doente —, que significa cuidar de, tratar, medicar, curar e que está também na base de moderação e meditação, sendo deste modo remetidos para um conceito holístico de saúde e de cura, que resultam e têm no horizonte sempre um equilíbrio harmónico.

 


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 6 JAN 2019

 

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

UM MUNDO CHEIO DE PARTICULARIDADES…

 

Ah! Como é diverso o género humano. Estamos felizmente sempre a deparar com gente singular. Encontro na imagem de hoje muitos dos meus vizinhos e vizinhas. Poderíamos aqui falar do percurso do boato ou da má língua – hoje chamaríamos pós-verdade ou “fake news”… São caras dos anos cinquenta, mas poderíamos pôr-lhes uns fatos de treino, uns bonés de pala virados ao contrário, uns telemóveis modernaços. Gosto de ver estas caras – que dizem como somos seres imperfeitos, mas com o dever de sermos melhores… Que é a Ética senão isso mesmo? E temo que nestes dias de hoje, voltemos à tentação de delinear uma suposta perfeição politicamente correta. Lembramo-nos do que aconteceu aos puristas do terror francês de 1789. Como ninguém era suficientemente perfeito à luz dos supostos novos valores, o que lhes aconteceu foi irem parar à guilhotina, a uma cadência regular e inexorável. Hoje há mesmo quem ache que a difamação deve ser despenalizada para que a caça às bruxas seja mais eficaz… Há quem não entenda que a falta de ética começa com imaginária inocência. Inicio hoje um novo ciclo de colaborações em “Raiz e Utopia”… E começo por recordar que o título do Blog do Centro Nacional de Cultura não é uma escolha de acaso ou de circunstância. Pode dizer-se que foi de algum modo por via desta revista extraordinária e de boa memória, que irei recordar aqui em vários momentos, que o CNC renasceu depois de 1977. Havia quem dissesse que a missão do Centro como lugar de resistência estava esgotada com a chegada da liberdade. Puro engano. Abriu-se um novo ciclo, assente na inovação e na participação cultural. Lembrou-se Régio em “Davam grandes passeios aos Domingos” e procurou-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. Mas a revista “Raiz e Utopia”, graças ao impulso de António José Saraiva, de Carlos L. Medeiros e José Baptista, representou uma nova dinâmica – que Helena Vaz da Silva compreendeu melhor que ninguém. Guardo religiosamente na minha biblioteca a coleção completa da revista e sei que ela é em muitos dos seus números raríssima. Não me desfaço dela nem à lei da bala. Por isso, tenho muito orgulho em escrever neste blog, à sombra de tão significativas referências da cultura contemporânea. A ilustração que hoje escolhi, já referida, é de Norman Rockwell (1894-1978) um genial ilustrador norte-americano que desenhou como ninguém o “american way of life” dos inesquecíveis anos do pós-guerra. Os exemplos são múltiplos – desde o peru de Natal até à oração à mesa. Mas não posso esquecer o perturbador e extraordinário desenho intitulado “The Problem will all live with” de 1963 que é um ícone do combate ao racismo. Uma criança negra vestida de branco dirige-se à escola entre polícias, e na parede do fundo há despojos de tomates atirados por energúmenos quem sem o respeito como regra… Nestes tempos é bom revermos esta ilustração. A criança, os polícias, a parede suja de tomates lembram uma luta sem tréguas em nome da cultura da paz. O tema volta como os velhos fantasmas. A liberdade e a dignidade nunca estão adquiridos. Mas esses são outros contos largos a que regressarei… Por hoje deixo um belo poema de Eugénio de Andrade… O tema são “Os Amigos”…

 

«Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga».

In “Coração do Dia”.

 

Agostinho de Morais