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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

 

Bossa Nova: milagre de amor que escorreu dos meus olhos quando

 

em 1970, entrei no Canecão - sala de espetáculos situada no Botafogo, Rio de Janeiro – e Vinicius de Moraes, Tom Jobim, a cantora Miúcha e o violinista Toquinho, deram-nos a ouvir uma joia da música brasileira ao vivo, qual joia mais tarde também brilhando em Buenos Aires com Maria Creuza na boate La Fusa.

 

De repente, senti que acabara de sair do avião, e à minha volta um calor de abraço único que nunca sentira em local algum e me penetrava à medida que a cidade maravilhosa se expunha, jubilosa, forçando o meu sonho a interpretá-la, real. O mar, uma alegoria ingénua e mulheres-deusas disto e daquilo, e tontas e seminuas, ao longo do calçadão de Copacabana, moviam as ancas quais jangadas convidativas ao nosso ouvido. E eis Ipanema que surge num repente, virando-me eu ainda no carro com o Pão de Açúcar num tudo em mim, uma floresta da Tijuca muito donzela e sem que eu a tudo pudesse dar o que já era, apenas suspirar deslumbrada por aquela chispa da areia doirada, sempre a bordo do meu olhar, tão frágil até onde ele foi, tão desembarque, tão terra nova.

 

Depois, morria a tarde numa divina fragância, momento por momento, em Búzios, e nós nos preparávamos para a ida ao Canecão naquela noite.

 

O meu desejo crescia e espalhava-se à minha volta como uma aia, no trautear das letras das canções da Bossa Nova que conhecia e que escutaria, lacaia da sua chama em mim e ao vivo. E a Aninha prendia os meus longuíssimos cabelos numa flor e cantava-me

 

tem de ser…Amor?...- chama, e, depois, fumaça:

 

O fumo vem, a chama passa…

 

E respondi orgulhosa: sim, conheço Manuel Bandeira, nessas tuas palavras. E conheço o que ele publicou no livro Libertinagem em 1930. Por causa de saber a leitura desse livro, eu digo-te Aninha: um dia fui-me embora para Pasárgada pois lá era amiga de um rei e escolhi um homem e a cama onde com ele me deitei. E, como era cheia de graça e bendita entre as jovens mulheres, Santa Clara me clareou a partir de uma única vez, e sem medo e sem saudade o deixei: foi quando certa rua começou algures, veio dar ao meu coração e comecei a roubar-me. É assim que sei! Um dia explico-te, melhor, se for capaz.

 

Esperavas que te dissesse isto? Não te impressiones, nada sei da Bossa Nova, sei que a amo e olha, vê este papel escrito por Vinicius, não digas ao pai que eu o tenho, guardo-o neste amarrotamento debaixo do meu travesseiro.

 

Bossa nova – para citar esse grande new yorker que foi o poeta Jayme Ovalle –, é mais a namorada que abre a luz do quarto para dizer que está, mas não vem, 

 

Bossa nova é mais um olhar que um beijo; mais uma ternura que uma paixão; mais um recado que uma mensagem. 

 

Bossa nova é mais uma moça triste atravessando a Broadway 

 

Bossa nova é mais a solidão de uma rua de Ipanema que a agitação comercial de Copacabana. 

 

Bossa nova é a nova inteligência, o novo ritmo, a nova sensibilidade, o novo segredo da mocidade do Brasilovens a seus pais e mestres: uma estrutura simples de sons super-requintados de palavras em que ninguém acreditava mais, a dizerem

 

que o amor dói mas existe;

 

que é melhor crer do que ser cético;

 

que por pior que sejam as noites, há sempre uma madrugada depois delas e que a esperança é um bem gratuito: há apenas que não se acovardar para poder merecê-lo."

 

Julgo que ele disse isto numa entrevista que deu enquanto tomava banho na sua banheira, onde gostava de estar no banho e onde, julgo, morreu. Assim se dizia na Capela do Rato lá em Lisboa.

 

Aninha, vamos ouvi-lo ao vivo daqui a pouco e saber também de

 

Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, Elis, Toquinho, Carlos Lyra, Edu Lobo, Caetano e tantos que cantam Bossa

 

Vá ajuda-me canta comigo, tu és de cá:

 

Tristeza não tem fim, felicidade sim

 

E já no carro, ambas perguntávamos constantemente ao motorista quanto tempo faltava para chegarmos ao Canecão

 

e ao passar em Ipanema

 

olha que coisa mais  linda mais linda mais cheia de graça é ela que passa

(…) Ah porque estou tão sozinho

Ah porque tudo é tão triste,

Ah a beleza que existe 

A beleza que não é só minha

….que também passa sozinha

Ah se ela soubesse que quando ela passa

(…) o mundo fica mais lindo por causa do amor

 

E a outra e a outra canção

 

Um velho calção de banho

Um mar que não tem tamanho

Um fim de tarde em Itapuã

Falar de amor em Itapuã

 

Mais ou menos assim, não é? E atrasadas entrámos no Canecão. Fui caminhando em transe até à mesa dos nossos amigos. O meu padrinho Alçada estava lá, não recordo se com Jorge Amado pois estive em casa do Jorge com o Alçada algumas vezes, mas desta anterior, não me lembro se ele estava ou não, eu só queria multiplicar-me para parecer mais um animal livre vestido de neblina já que começara a chorar por ver tão soberbos poetas tão perto e os meus olhos sem glórias escutavam e julgavam compreender Vinicius e a Bossa Nova e os ritmos dissolutos e os sonetos da despedida e todas as meninas afogadas no transito da vida que só as levava às margens.

 

Há a sensação angustiante de uma mulher dentro de um homem

 

Porque hoje é sábado!

 

Deus meu! Eu ouvi ele dizer esta canção falada! Porque hoje é sábado! E…

 

E por toda a minha vida eu vou te amar

A cada despedida eu vou te amar

 

E quem assim cantou casou e se divorciou 7 ou 8 vezes?

 

Caetano Veloso e Edu Lobo, estou a confundir? Mozart ainda não entendo. E o Jazz? E?

 

E eu que andava perdido ao encontrar você eu entendi ???

 

E a Tonga da Mironga do Kabuletê? Lembras-te? E lamento no Morro?

 

Ouvi dizer que no Rio de Janeiro, o termo Bossa Nova passou a ser utilizado para nomear o talento especial de uma pessoa a fazer algo. Neste sentido surge no samba “Coisas Nossas”, de Noel Rosa, que diz “O samba, a prontidão e outras bossas/ São nossas coisas, são coisas nossas”. Mais ou menos assim nos disse um amigo do Alçada.

 

Ai meu brasil brasileiro três vezes voltaste à flor e bem sei que te afogarás não sejam as redes por ti do meu amor. Escrevi isto num papel, dobrei e dei ao António Alçada. Levantei-me da mesa com a Aninha. Despedimo-nos de todos. Deitámos um olhar largo como se nos desse este olhar a certeza absoluta do que ali se passara.

 

Quando voltávamos para búzios, a noite parecia um corpo em cruz no meio de uns braços fortes que o lavavam no mar. Estávamos num silêncio imensamente eu e a Ana, duas inocências acesas. Por mim sentia que não tinha vivido um sonho, sim, uma existência: na carne, na fadiga, no pudor, na casa das ideias, no trópico encantado, afinal, tivera a visita das belas feras do Pantanal e não tivera medo, antes queria brincar, brincar muitíssimo, sentir a Natureza desacordada ou não te amasse tanto.

 

SARAVÁ! 

Teresa Bracinha Vieira