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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Lembro-me de, no princípio dos anos 70, ir muito a Paris, às vezes com o João Cravinho, para reuniões na OCDE. [Ambos trabalhávamos então com o Secretário de Estado da Indústria (SEI), Rogério Martins: o João, muito mais qualificado, era o diretor geral do GEBEI - Gabinete de Estudos Básicos de Economia Industrial; eu era jovem assessor do SEI para as relações internacionais, e delegado ao Comité de Indústria da OCDE].  Costumávamos ficar num pequeno hotel da rue du Bois de Boulogne, à avenue Foch, donde, a pé, partíamos todas as manhãs, em passeio higiénico, para os nossos trabalhos no Château de la Muette. No regresso, ao fim do dia, acontecia-nos, quando mais cansados e com menos tempo, jantar algures nos Champs Élysées e ir comprar uns jornais ou revistas, nalguma drugstore. Por mim, juntava-lhes quase sempre uma banda desenhada, para surpresa do João Cravinho, que não entendia como é que eu podia gostar "daquilo". A verdade é que, desde os meus cinco anos, toda a vida me deliciei com histórias aos quadradinhos, e hoje ainda releio com confessado gosto muitas delas. Esta noite ainda, quase em 2019, calhou-me uma curiosa aventura do Tintin, em dois volumes: Les Sept Boules de Cristal e Le Temple du Soleil. Digo curiosa, porque, para além de temas comuns a muita literatura - como a ilusão e a magia, o secretismo, a descoberta e a maldição - o fio condutor desta história, a sua intriga fulcral, me parece ser a loucura. É ela o castigo que o espírito inca reserva para os cientistas aventureiros que ousem violar os seus mistérios, é dela que eles serão finalmente libertados, depois de Tintin ordenar ao sol em eclipse que reapareça - para assim obter, além do fim da maldição dos sábios hospitalizados, a própria libertação, e a dos seus inseparáveis amigos, em troco da promessa de manter secretos os segredos dos incas clandestinos, escondidos nas altitudes da sua milenar terra natal, em ruínas conservadas do seu perdido império. Mais: é a loucura, sobretudo ela, que espreita toda a gente, desde logo, nas páginas iniciais, a dos pacíficos burgueses que, no compartimento de comboio em que Tintin lê o jornal, espreitam os títulos das notícias de maldições, e logo se assustam muito, receosos do contágio da loucura de sonhos aventureiros... 

 

   Nota bem, Princesa de mim, que, de certo modo, é com audácia -- à qual, como à clarividência, tantas vezes chamamos louca - que Tintin vence a loucura. Esta surge manifestada por histerismos doentios, pelo medo, ou qualquer terror inspirado por fantasmas íntimos que as vítimas sofrem mas não conseguem expulsar. Como se, confusa, a consciência a si mesma se perseguisse... Ou um sonho tenebroso nos habitasse como se fosse real. Tintin também é perseguido: está a dormir no seu quarto, na enorme moradia do professor Bergamotte, onde se conserva a múmia de Rascar Capac, quando esta fantasmática figura lhe entra pela janela aberta e lança ao chão, quebrando-a, uma bola de cristal contendo gás de loucura. Assustado, o nosso herói salta da cama e verifica que, afinal, o vento e a chuva de uma borrasca é que lhe haviam aberto a janela, e quebrando-lhe os vidros. Tudo o mais não passara de sonho. Reparei numa jarra azul com flores, posta numa mesa de canto, junto à janela. Com a violência da rajada que a abriu, esta tombou aquela sobre a tal mesa, e caíram as flores. O pormenor da jarra vê-se claramente em três dos quadradinhos em que surge Rascar Capac. Tombada, surge noutros três, em que o fantasma está ausente e Tintin, bem acordado, regressa à realidade. Ocorreu-me a semelhança entre essa jarra e suas flores e o quadro de Van Gogh, Fleurs dans un Vase Bleu... Evocação da loucura, de uma intoxicação? Apenas pensossinto que, mesmo inconscientemente, Georges Rémy evoca ali, sob a aparência de coloridas flores, a perturbação que o pintor holandês também experimentou. A angústia é ali insídia interior, talvez a nossa consciência imperfeita em atroz desespero por não se nos encontrar nas explicações do universo e da vida. Histórias, novelas, desenhos e filmes de terror são exorcismos dessa coisa mais tremenda que há em nós: a incapacidade de total consciência lúcida.

 

   Só saímos dessa perplexidade respirando fundo, contando até dez, somando dois mais dois, e indo chamar pessoas e coisas pelos nomes que sabemos. Ou, mesmo antes, tocando fisicamente em algo à mão. Ser e sentir-se animal é melhor antídoto da angústia do que qualquer metafísica. Come chocolates, pequena..." aconselharia o Álvaro de Campos. Ou, melhor ainda, outro dos heterónimos do Fernando Pessoa (qualquer deles um exorcista das suas angústias), sabiamente:

 

Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender... / O mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo. Esta confissão de Alberto Caeiro, Guardador de Rebanhos, é uma profissão de fé quando o mesmo assim fala: Pensar em Deus é desobedecer a Deus, / Porque Deus quis que o não conhecêssemos, Por isso se nos não mostrou...

 

   Alternamente formuladas - outra vez pelo engenheiro Álvaro de Campos, agora no seu Lisbon Revisited (1926) - as mesmas sugestões vão-se deixando tentar pela metafísica literária:

 

   Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
   Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces, 
   Para que chames desconhecido a qualquer cousa em especial?

 

   Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
   Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
   Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
   Dispersa-te, sistema físico-químico
   De células noturnamente conscientes
   Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
   Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
   Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
   Pela névoa atómica das cousas,
   Pelas paredes turbilhonantes
   Do vácuo dominante do mundo...

 

   A religião não é mezinha nem cura para a angústia. Não a tentes para o efeito, Princesa de mim. A própria experiência religiosa, mesmo mística, pode sofrer angústia. A presença sentida de Deus não o torna visível nem palpável, já são Paulo ensinava aos hebreus que a fé é a substância das coisas por vir. Todos os dias chamamos: Vinde Senhor Jesus! Como já o salmista interpelava "de profundis da sua angústia" o Senhor que não via.

 

   Ao que outros percebem como inexistência de Deus - por falta de prova experimental ou científica -, e, outros ainda, como simples ausência, chamam os crentes o silêncio de Deus. Destes, há os que reclamam sinais - dos tais que Jesus repetia terem sido já dados - talvez esquecidos da lição a São Tomé: acreditas porque viste; bem aventurados os que creem sem ter visto. Em religião, a resposta ao silêncio de Deus é o nosso silêncio que escuta. A experiência mística não é uma prece.  É uma comunhão. Esta pressupõe disponibilidade e despojamento, cujo exercício é ascese espiritual, a qual não se funde com quaisquer regras mecânicas ou rituais de calculada ou previsível eficácia, ou seja, não é um tratamento. Antes e só uma predisposição à escuta do silêncio que fala. Será difícil, em tempos de pressas e correrias, de fabricação constante de palavras e discursos, explicações e receitas, e, porque pensa que tudo se faz, considera que a escuta do silêncio é uma atitude passiva. Mas, de outro modo, poderemos entendê-la como essa talvez esperança que suspende o final da Ode Mortal de Álvaro de Campos:

 

   E de repente se abrirá a Última Porta das coisas,
   E Deus, como um Homem, me aparecerá por fim.
   E será o Inesperado que eu esperava -
   O Desconhecido que eu conheci sempre -
   O único que eu sempre conheci...

 

   Afinal, pela sua imperfeição, talvez a condição humana seja heroica. E talvez por ser louca e longa a silenciosa espera, na escuridão da noite vá nascendo o dia. Para que possamos dizer, como Ungaretti: M´illumino d´immenso... Poema brevíssimo, intitulado Mattina (Manhã na versão portuguesa de Orlando de Carvalho - Cadernos de Poesia, Publicações Dom Quixote, 1971 - que reza assim: Deslumbro-me / de imenso). Na minha tradução, opto por Alumio-me de imenso: não só, nem tanto, pela maior proximidade ao original italiano, mas por me parecer que, antes do deslumbramento (talvez mais sensorial e subjetivo) a iluminação vem de além, é o dom da luz, é a clarividência, a lucidez. Deslumbro-me depois de ter sido aceso como o Buda ou Paul Claudel em Notre Dame de Paris, ou claramente derrubado - porque perseguia ou desafiava - como São Paulo a caminho de Damasco. Sobre tão imensa luz que me alumia te escrevi, em 18 de maio de 2014, uma carta que o blogue do CNC publicou naquela data... Relia-a hoje.

 

Camilo Maria  


Camilo Martins de Oliveira