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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Carlos Botelho e as pinturas de Nova Iorque.

 

Felizmente pode subir-se quando se quiser ao miradouro do Rockefeller Center ou ao 102º andar do Empire State Building e mirar, de alturas vertiginosas, a poderosa cidade; de dia, quando ela é um mar de rochas cinzento-azuladas, exótica incomparável, fria e bela, onde dificilmente se imaginam corações humanos a bater, mas onde batem milhões deles; e de noite, quando estremece e nela se vislumbra um mar de futilidade, sonho infantil de toda a gente, que nos subjuga e encanta.’, Ilse Losa, ‘Ida e Volta à Procura de Babbitt’

 

As pinturas que Carlos Botelho fez após regressar de Nova Iorque, em 1939, são a afirmação plena de um meio eficaz, narrativo e gráfico para referir-se ao mundo urbano à sua volta (muitas foram feitas de memória utilizando os desenhos feitos no local). A pintura de Nova Iorque, de Botelho é espessa, densa, abragente e particular. 

 

Botelho consegue revelar uma Nova Iorque ‘banhada de sol, outras vezes envolvida em nevoeiro e, depois, cintilante, colorida, fantástica’ (I. Losa). 

 

Botelho talvez deseje alegorizar uma América desmedida e de contrastes. 

 

Os arranha-céus transformam-se em objetos, em corpos que expulsam fumo. O tamanho colossal de alguns edificios perde o seu poder esmagador nas telas pequenas - as dimensões, as proporções, a plasticidade nas pinturas demonstram sempre uma facilidade gráfica, uma sintetização dos motivos, uma planificação das volumetrias, um entendimento intuitivo. 

 

Há anúncios luminosos que rompem a continuidade visual, os cartazes mostram mensagens, sobrepõem-se alçados, sucedem-se aberturas, articulam-se dimensões e volumetrias e escadas. Botelho pratica aqui todo o arsenal de recursos formais com um inigualável domínio do espaço de uma urbanidade em conflito - surgem sinagogas, catedrais, lavandarias abandonadas, ruas residenciais, equipamentos industriais, os subúrbios, atividades portuárias. 

 

O pintor encontra em Nova Iorque novas cores para a sua narrativa: o vermelho-tijolo e os rosas pálidos dos objetos construídos, os verdes atmosféricos carregados de fumo e de ruído, os azuis desbotados dos céus longínquos.

 

A uniformidade moderna da arquitetura estimula o gosto de Botelho pelo geometrizante e pelo abstrato que funde os edifícios numa mancha unitária de ocres, rosas e azuis. 

 

Os carros que cruzam a cidade, as pessoas que passam (com um guarda-chuva aberto ou a passear um cão) evidenciam um gosto pela banda desenhada.

 

As pinturas de Nova Iorque situam-se na vanguarda de tudo o que então se fazia em Portugal. Dá-se a entender o dinamismo e a diversidade das soluções espaciais urbanas que mudam de dia e de noite, nas frentes e nas traseiras.

 

Pela primeira vez desde que cheguei à América estou instalada num hotel e logo num da 7a avenida, no centro de Manhattan. Logicamente devia gozar umas vistas magníficas sobre a cidade, daquele género das que vêm descritas em mil e um livros e artigos. Era assim que eu julgava acontecer. Mas não aconteceu. Não pude permitir-me um quarto com janela rasgada nem virado para a rua. Tive de contentar-me com este com janelinha insignificante, que dá para um pátio das traseiras, sujo, mal cheiroso, triste.’, Ilse Losa, ‘Ida e Volta à Procura de Babbitt’.

 

Ana Ruepp

 

A IGREJA E O SEXO

 

Na sua obsessão pelo sexo, a Igreja não pode reclamar-se de Jesus. De facto, segundo os Evangelhos, Jesus raramente falou de sexo e, quando o fez, foi provocado por perguntas que lhe fizeram. E, aí, apelou para o amor, a fidelidade no casal e a igualdade do homem e da mulher. Apaixonado pela felicidade das pessoas, participou em festas de casamento e até fez com que aparecesse o vinho que faltava: 600 litros! Ele próprio celibatário, não impôs o celibato: São Pedro, por exemplo, era casado, e o celibato obrigatório para os padres na Igreja do Ocidente só começou a impor-se no século XI, com o Papa Gregório VII.

 

O que envenenou a relação da Igreja com a sexualidade foi, essencialmente, a influência perniciosa da gnose, que, contra o cristianismo autêntico, desprezava a matéria e o corpo. Depois, Santo Agostinho, a partir de uma experiência pessoal negativa da sexualidade e de uma exegese errada – ele seguiu a tradução latina de um passo célebre da Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 12: Adão, “no qual” todos pecaram, quando o original grego diz “porque” todos pecaram --, formulou, como solução para o problema do mal, a doutrina do pecado original. E a questão é que esse pecado foi entendido não como o primeiro de todos os pecados – todos os seres  humanos são pecadores -, mas como um pecado herdado de Adão e transmitido por geração, portanto, no acto sexual.  Finalmente, com a reforma gregoriana, foi-se erguendo a tríplice coluna sobre que assenta, segundo Hans Küng, o paradigma católico-romano: papismo (poder centrado no Papa), celibatismo (celibato obrigatório por lei para os padres), marianismo (devoção a Nossa Senhora como compensação).

 

Como se determinou que tudo o que se refere ao sexo é por princípio matéria grave e como, por outro lado, não há ninguém que não tenha pelo menos pensamentos relacionados com o sexo e só o sacerdote ou o bispo podem perdoar os pecados, a confissão acabou por tornar-se não um espaço de reconciliação e paz, mas tantas vezes de opressão, e raramente uma instituição acabou por deter tanto poder sobre as consciências, criando infindos complexos e fardos de culpabilização. Quando se lê os manuais dos confessores e todos aqueles interrogatórios inquisitoriais, quase reduzidos ao campo sexual, percebe-se que muitos tenham começado a abandonar a Igreja por causa da confissão, que consideravam ofensiva dos direitos humanos.

 

No universo sexual, que, como escreve Miguel Oliveira da Silva, continua a ser “um imenso, incómodo e multifacetado mistério”, vale tudo? É claro que não, reconhecendo o catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa que “a sociedade ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de sexualidade, que a múltipla oferta de uma sexualidade por vezes devassada sem pudor na praça pública e passível de excessos não consegue minimamente preencher – ao contrário”. Chegou-se à degradação boçal da prostituição nos e dos média, digo eu. Uma sexualidade degradada e desumanizante, na busca exclusiva do prazer venéreo e utilizando o outro como simples meio!

 

De qualquer forma, a Igreja precisa de reconciliar-se com o mundo e a ciência, o corpo e a sexualidade. Mas enquanto se mantiver a lei do celibato obrigatório não estará todo o discurso eclesiástico sobre o tema debaixo do fogo da suspeita? O Cardeal Carlo Martini, exegeta bíblico eminente e antigo arcebispo de Milão, interrogou precisamente esta lei do celibato obrigatório e, depois de considerar os estragos da encíclica Humanae Vitae e que “a solidão da decisão” por parte do Papa Paulo VI, depois de ter retirado a discussão do tema aos padres conciliares, não foi certamente “um pressuposto favorável” para tratar a questão da sexualidade e da família, reconheceu que os anos de distância da sua publicação “nos poderiam permitir um novo olhar”. “É um sinal de grandeza e auto-consciência alguém confessar os seus erros e visão limitada.” Assim, Martini pensava que um novo Papa “talvez não retire a encíclica, mas pode escrever uma nova e ir mais longe. É legítimo o  desejo de que o Magistério diga algo de positivo sobre o tema da sexualidade.” Muitos esperam uma palavra de orientação sobre o corpo, o casamento e a família. “Procuramos um caminho para, de modo fiável, falar sobre o casamento, o controlo da natalidade, a procriação medicamente assistida, a contracepção.”

 

Sobre estes e outros temas é o que tem procurado fazer o Papa Francisco. Leia-se, por exemplo, a exortação Amoris Laetitia, “A Alegria do Amor”, precisamente sobre uma nova visão da família e da sexualidade, que, para ser verdadeiramente humana, tem de envolver o biológico, o afectivo, a ternura, o amor, o espiritual.

 

E chamo a atenção para a elegância com que tratou o tema num diálogo recente com um grupo de jovens da Diocese de Grenoble. Duas jovens interrogaram-no precisamente sobre a sexualidade, perguntando concretamente se o facto de pertencerem à primeira geração que ousa falar abertamente destes temas não explica as incompreensões e o silêncio embaraçado dos mais velhos. Francisco respondeu: “A sexualidade, o sexo, é um presente de Deus. Não é de modo nenhum um tabu. É um dom de Deus, um presente que o Senhor nos dá. Tem dois objectivos: amar-se e gerar vida. É uma paixão, e um amor apaixonado. O verdadeiro amor é apaixonado. O amor entre um homem e uma mulher, quando é apaixonado, leva-te a dar a vida para sempre e a dá-la com o corpo e a alma”, declarou o Papa com força.

 

“Quando Deus criou o homem e a mulher, a Bíblia diz que os dois são a imagem e a semelhança de Deus. Os dois, não apenas Adão ou só Eva, mas os dois em conjunto”, insistiu. “E Jesus vai mais além e diz: o homem e também a mulher deixarão o seu pai e a sua mãe e unir-se-ão e serão... uma só pessoa?... uma só identidade?... Uma só fé no casamento?... Uma só carne! Esta é a grandeza da sexualidade. E é assim que se deve falar da sexualidade. E deve-se viver a sexualidade assim, nesta dimensão do amor entre homem e mulher por toda a vida. É verdade que as nossas fraquezas, as nossas quedas espirituais, nos levam a usar a sexualidade fora deste caminho tão belo do amor entre o homem e a mulher. Mas são quedas, como todos os pecados. A mentira, a cólera são pecados capitais, mas isso não é a sexualidade do amor: é a sexualidade coisificada, desligada do amor e utilizada para o divertimento”, explicou.

 

Francisco sublinhou ainda o paradoxo que consiste no facto de a mais bela dimensão da criação divina ser também “a mais atacada pela mundanidade, pelo espírito do mal”. A pornografia, por exemplo, depende de uma “indústria da sexualidade desligada do amor”. “É uma degeneração em relação ao nível em que Deus a colocou, e faz-se muito dinheiro com este comércio. Mas a sexualidade é grande: cultivai a vossa dimensão sexual, a vossa identidade sexual. Cultivai-a bem. E preparai-a para o amor, para inseri-la neste amor que vos acompanhará durante toda a vida”.

 

Por outro lado, mesmo se o Documento final do recente Sínodo dos bispos sobre os jovens e com os jovens ficou aquém das expectativas, no “Instrumentum laboris”, texto de preparação e de base para o debate, reconhecia-se que “muitos jovens católicos não seguem as indicações da moral sexual da Igreja”, e que há “temas controversos” como os anticonceptivos, a homossexualidade, o aborto, o casamento ou a questão de género. O texto, apresentado pelo cardeal Baldisseri, aceitava que é preciso debater “abertamente e sem preconceitos”  esses e outros temas, do desemprego às novas tecnologias, passando pelos desafios das migrações, o trabalho precário, as drogas, o papel da mulher. Entretanto, nesse Sínodo, houve vozes como a do bispo auxiliar de Lyon, Emmanuel Gobilliard, que abriu a porta do Sínodo aos LGBT: “Quem sou eu para excluí-los?” Francisco disse sempre que o problema não é a homossexualidade, mas “o lóbi gay”, como outros lóbis. Mais recentemente, o cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e Presidente da Conferência Episcopal Alemã, reclamou uma revisão do celibato obrigatório: “Estou convencido de que o grande impulso de renovação do Vaticano II não está a avançar nem a ser entendido na sua profundidade.”

 

Entretanto, a Igreja carrega com essa chaga que é a pedofilia por parte do clero. O Papa Francisco está disposto a usar mão firme nesse combate. No discurso natalício à Cúria, depois de ter reafirmado que mesmo um só caso de abuso seria “uma monstruosidade por si mesmo”, declarou: “Aos que abusam dos menores quero dizer-lhes: convertei-vos e entregai-vos à justiça humana, e preparai-vos para a justiça divina”. Agradeceu aos jornalistas “que procuraram desmascarar estes lobos e dar voz às vítimas”. A Igreja levará à justiça “seja quem for” que tenha cometido abusos. E convocou os Presidentes das Conferências Episcopais do mundo inteiro para uma reunião anti-abusos, que enfrente esta chaga dolorosíssima. Como disse o director editorial do Dicastério (Ministério) para a Comunicação do Vaticano, Andrea Tornelli: “O objectivo é que todos tenham absolutamente claro o que se deve fazer (e não fazer) frente aos abusos”. Trata-se de “transformar os erros cometidos em oportunidades para erradicar” a praga dos abusos “não só do corpo da Igreja, mas também da sociedade”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no Observador | 12 JAN 2019