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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

CONTINUAÇÃO DE UMA CARTA QUE RECEBEMOS DE KLOW…
22 de janeiro de 2019

 


Prosseguimos a missiva que recebemos do nosso colaborador e amigo Agostinho de Morais, que ainda se encontra na cidade de Klow, capital da Sildávia.

 

«Continuo a deambular por esta cidade tão acolhedora. Ontem mesmo voltei a estar com o meu amigo Oliveira da Figueira, numa amena conversa. Lembrámo-nos que a sua primeira aparição nestas aventuras aconteceu em 1932, como personagem de «Os Charutos do Faraó», num episódio em que Tintin é atirado ao Mar Vermelho, por engano, num sarcófago egípcio. Salvo «in extremis», o nosso herói encontrou-o na embarcação que milagrosamente o recolheu. Oliveira da Figueira diz: «se puder ajudá-lo, posso fornecer-lhe a preços competitivos qualquer artigo de que necessite». Começou então por um conjunto flamante de gravatas, às riscas, às bolas ou com figuras exóticas. Seguiu-se um lote de magníficos sabres, com lâminas de Toledo, mil outras bijuterias e muitos brindes: um despertador, escova de dentes etc… Tintin saiu carregado de inutilidades, com um balde, um regador, uma gaiola com papagaio, uns esquis, tacos de golfe, uma casota e uma coleira de cão, além de um despertador. E ingenuamente confessa: «Ainda bem que não me deixei levar pela conversa dele. A tipos como este acabamos sempre por comprar uma série de coisas inúteis»… Já na costa árabe, Oliveira da Figueira demonstrará a sua inefável arte de convencer. Chamam-lhe «o-branco-que-vende-tudo»… E ele reconhece-se orgulhoso: «Então que tal? Chama-se a isto eficiência! E o melhor é que os meus clientes voltarão». De facto, voltam, mas quem aparece a protestar (sem razão, é certo) parece ter ingerido um naco de sabão, que lhe produz mal-estar pelas bolas de sabão que o atormentam. Daí a maldição: «Antes da Lua Nova, o meu Senhor, o Xeque Patrash Pacha, ter-te-á castigado»… Encontramos mais tarde Figueira no «País do Ouro Negro», obra iniciada em 1939, interrompida pela guerra e recomeçada em 1948. Aí, ajuda Tintin a encontrar os segredos do Dr. Müller, descobrindo um subterfúgio.

 

Mascarado de sobrinho do comerciante, sob o nome de Álvaro, com um aspeto bizarro, levemente atrasado, quase invisual é supostamente vítima de uma estória que o português vai contando sem parar para distrair quantos visavam impedir o acesso aos segredos do vilão. É extraordinária a capacidade efabulatória de Oliveira da Figueira. Inventa que o sobrinho é filho de um criador de caracóis, vítima de uma trama terrível que envolve uma mulher rica que morre de desgosto aos noventa e sete anos e a influência de duas imortais palavras, ditas em português, «Oh! Oh!», cujo sentido, alcance e influência nunca chegamos a conhecer… Depois, em «Carvão no Porão» («Coke en Stock», publicado no «Cavaleiro Andante», em 1959 e 1960, sob o título «Mercadores de Ébano»), Tintin e o seu amigo, Capitão Haddock, pedem apoio e hospitalidade em Wadesdah. Lembro-me, aos sábados de manhã, da expectativa que tínhamos antes de ler a continuação das peripécias. Oliveira da Figueira recebe surpreendido e assustado a visita noturna, com a cidade em estado de sítio, cheia de cartazes a pedir a captura de Tintin. «Que faz aqui, desgraçado? Não sabe que tem a cabeça a prémio?». Há agitação e um conflito entre a Arabair e o Emir…

 

Tintin diz que precisa absolutamente de ajudar o Emir e Oliveira da Figueira informa que ele teve de fugir para casa de Patrash Pacha. Tintin e Haddock treinam desesperadamente o equilíbrio das bilhas à cabeça, para que possam não dar nas vistas, mascarados de mulheres árabes, cobertas com burkas. O resultado do treino é desastroso. Os estragos são enormes e os cacos enchem o armazém do comerciante arruinado, que se vê na obrigação de dizer às clientes que as bilhas estão esgotadas. No momento da verdade, tudo parece salvo, mas eis que uma mulher árabe descobre a barba hirsuta do capitão e foge escandalizada. O desastre anuncia-se, mas no final tudo se arranja graças ao apoio providencial de Oliveira da Figueira. Recordámos gostosamente estes episódios. E verifiquei que o meu querido Oliveira da Figueira continua igual a si mesmo. Não sei que idade tem. Continua a cuidar-se. Nenhuma das suas qualidades se encontra adormecida. E fala, fala, fala… Comunicou-me, porém, que partirá para um lugar que não me quis revelar qual para dirigir os seus negócios… E hoje fico-me por aqui. Continuarei a informar-vos sobre o que encontrei neste país adorável…

 

Agostinho de Morais