CRÓNICAS PLURICULTURAIS
23. UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRO: PORTUGAL-JAPÃO, SÉCULOS XVI-XX
A exposição patente no Palácio da Ajuda, em Lisboa (até 26.03.2019), pretende mostrar as várias fases da relação estabelecida entre Portugal e o Japão há quase 500 anos, marcadas pelo assombro, deslumbramento e maravilhamento inicial, a que se seguiu uma desconfiança e tensão crescente que terminaria com o martírio e expulsão de missionários e comerciantes portugueses, o que não impediu uma influência recíproca entre ambas as culturas.
A existência de um país para lá da China era conhecida, mesmo antes de Marco Polo lhe ter chamado Cipango ou Zipango, ou Tomé Pires o referir como Japun ou Japang, mas nada se sabia quanto à sua localização exata, modo de viver, costumes e população. Foi com a cartografia portuguesa que se soube do seu posicionamento geográfico, com a carta que surgiu no Atlas de Diogo Homem (1550 a 1558?), onde aparecem as três ilhas principais do arquipélago japonês, mais pormenorizado e melhor representado, em 1561, no planisfério de Bartolomeu Velho.
Todavia, foi com a Nau do Trato, conhecida no Japão como kurofune ou navio negro, que se concretizou o principal elo de ligação entre os territórios asiáticos de presença portuguesa e a Europa, a bordo da qual era levada carga de bens de várias latitudes, a par de uma tripulação de gentes variadas, despertando o interesse de grandes senhores da ilha de Kyushu, que após contactos junto dos portugueses e missionários, doaram Nagasáqui aos jesuítas em 1580, que além de porto seguro, foi centro de propagação do cristianismo e de comércio com o exterior, tornando-se um dos centros urbanos e mercantis mais cosmopolitas e relevantes do Japão.
O assombro começa, assim, com a chegada de um navio de grandes dimensões, até então nunca visto, com profusão de velas, mastros e homens diferentes, de nariz comprido, em que a tripulação salta de mastro em mastro, lembrando macacos, como tão bem são retratados nos biombos nanban. Nanban, diz a exposição, são obras artísticas que representam nanbanjin ou bárbaros do sul. Não foi apenas o aspeto físico, modo de falar e comportamento que assombrou os japoneses, dado que entre as coisas desconhecidas e raras levadas pelos portugueses estava um objeto estranho, uma espécie de cano comprido, a arma de fogo, que de imediato copiaram e utilizaram. Bem como objetos redondos à frente dos olhos, os óculos, que absorveram.
Tendo como espanto, do lado europeu, o conhecimento e importação do biombo (do japonês byobu), imediatamente absorvido e adaptado pelas elites europeias, servindo para proteção de interiores das correntes de ar e conservação ou resguardo do calor das lareiras, até à divisão de espaços, sem esquecer a sua função decorativa e artística (arte nanban). Também as armaduras, os sabres e os cavalos dos Samurais, na sua beleza e funcionalidade de técnicas sofisticadas usadas, se tornaram objetos de arte apreciados pelos ocidentais, de que é belo testemunho o conjunto exposto de armadura do Samurai, sela, arreios e armadura de cavalo que foi presente diplomático do Japão ao nosso rei D. Luís, aquando do reatamento dos laços quebrados com a expulsão dos missionários, em 1614, e com a saída forçada de todos os portugueses, no final da década de 1630.
Encontraram, porém, os portugueses (e europeus que se lhe seguiram) uma sociedade cultural e socialmente forte, com caligrafia e valores próprios, que não abdicava do seu poder, razão pela qual os jesuítas foram perseguidos e expulsos quando foram tidos como um contrapoder, incluindo os cristãos, com inerentes consequências aos portugueses em geral, nomeadamente comerciantes.
Em nome da reunificação do Japão, o cristianismo é tido como um contrapeso subversivo, havendo que o destruir, pondo fim aos contactos que os japoneses tivessem com o exterior. Os missionários são expulsos, muitos castigados publicamente, os cristãos do Japão obrigados a renegar a sua fé cristã. As execuções eram tidas como martírios, os executados crucificados ou queimados na fogueira apelidados de mártires, os seus corpos resgatados para relíquias, havendo na exposição reproduções digitalizadas de gravuras e documentos que o atestam. Martírios que não eram diferentes das punições feitas pela inquisição na Europa. O filme Silêncio, de Martin Scorsese, testemunha-o.
A que acresce, em 1903, o estabelecimento da Legação de Portugal em Tóquio, vindo a ter como nota dominante o espanto dos nossos diplomatas com o esforço japonês de modernização à luz das normas civilizacionais ocidentais, espantando-se em simultâneo “(…) com o empenho nipónico em valorizar o passado histórico comum entre Portugal e o Japão. Por todas essas razões, insistem numa política que consolide e aproxime o reencontro”.
Referirei, a propósito, que é normal falar-se de Portugal no Japão, desde logo pelo facto de os portugueses terem sido os primeiros ocidentais europeus a aí chegar e terem introduzido a arma de fogo, num encontro que mudou a história do país, o mesmo não sucedendo entre nós.
A exposição, apesar do seu inegável mérito, e falar do Atlas de Fernão Vaz Dourado, de João Rodrigues (jesuíta do primeiro dicionário de português-japonês), São Francisco Xavier, Santo Inácio de Loyla, Sequeira de Sousa, é omissa quanto a portugueses que foram decisivos neste encontro e reencontro. Como os primeiros que pisaram solo japonês (Fernão Mendes Pinto, Francisco Zeimoto, Cristóvão Borralho, a que são também associados os de António da Mota, Diogo Zeimoto e António Peixoto), Luís Frois (autor da História de Japam, tida como fundamental por investigadores portugueses e nipónicos), Luís de Almeida (médico criador de uma escola de cirurgia para alunos japoneses, que no Japão tem um hospital, monumentos e homenagens em seu nome), Cristóvão Ferreira (que permaneceu no Japão, após abandonar o catolicismo, cuja obra Segredos da Cirurgia Portuguesa foi a base para futuras obras em japonês), Wenceslau de Morais (com uma obra notável sobre o Japão, onde passou a residir em permanência e morreu). Sem esquecer o Museu e o Festival da Espingarda, em Nishinoomote, na ilha de Tanegashima, onde arribaram os primeiros portugueses, homenageando-os. São alguns exemplos do muito que urge valorizar e não negligenciar.
22.01.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício