CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
«O não-sei-quê é para o intelectualismo um tema inesgotável de inquietude e perplexidade: cultiva em nós essa espécie de desconforto intelectual e de má consciência, esse mal-estar nascido da incompletude que Platão designava por aporia e que, à sua maneira, é bem um mal de amor, uma nostalgia erótica, uma insuficiência amorosa. Esse «desejo de coisas inexistentes», pelo qual Gabriel Fauré caracteriza a divina frase do adagio do seu segundo quarteto, não será ele também o segredo do não-sei-quê e do encanto quase doloroso que ele por vezes segrega?
Este trecho da apresentação, pelo próprio autor, do livro La manière et l´occasion, primeiro volume da obra Le Je-ne-sais-quoi et le Presque-rien, publicada pelas Éditions du Seuil (Paris,1980), diz-me pessoalmente muito, não só sobre o espírito que animou toda a escrita do filósofo francês Vladimir Jankélévitch (judeu de origem russa), como sobre a inspiração que ela foi para mim, desde 1957, quando descobri esta obra, então editada pelas PUF (Presses Universitaires de France) num só volume. A edição presente (1980) alarga-se por três volumes, correspondendo o primeiro e o terceiro a textos da primeira edição (1957), ainda que profundamente revistos, e sendo o segundo um texto totalmente inédito. Os títulos dos outros dois volumes da trilogia atual são La Méconnaissance, le Malentendu e La Volonté de Vouloir.
Lembro-te ainda, Princesa de mim, dessa coincidência no gosto pela música de Gabriel Fauré, sobretudo a de câmara, de que Jankélévitch recorda o adagio do segundo quarteto, mas também, no meu caso, pelo amor à sua missa de requiem, de que te falei em carta quase recente. Se releres algumas das minhas cartas, verás bem como a noção de imperfeição (como algo inacabado, incompleto) é recorrente no meu discorrer, é sempre a perspetiva por que olho para a nossa própria condição humana, sem nunca pretender adivinhar-lhe o tempo e o modo de adventícia perfeição, mas amando-a sem cessar, na esperança do não-sei-quê, apesar de sermos um quase-nada. Eis o meu "mal de amor, nostalgia erótica, insuficiência amorosa, desejo de coisas inexistentes"... E é nessa contemplação do não-sei-quê pelo eu-quase-nada, que todos os dias renasço feito fé, a fé cuja substância é o tudo do algo que há de vir. Não sei quanto da "minha filosofia" foi influenciado ou será coincidente com o pensamento filosófico de Jankélévitch, mas neste encontro uma inspiração que me anima a pensar, quiçá em busca daquele algures no inacabado que dá título à coletânea de conversas de Vladimir com Beatrice Berlowitz:
Quelque part dans l´inachevé (Gallimard, Paris, 1978). O inacabado, para mim, disse-te eu, abre-se sobre o algo que há de vir. Mas antes, por seu lado, o filósofo francês escreveu:
É verdade que esse algo é a unidade da natureza primitiva, a qual é coisa assinalável e, em suma, dizível: mas o facto de ser objeto de uma reminiscência pré-natal e dum voto meta-empírico maiores do que qualquer desejo sensível obriga Aristófanes a expô-lo metafisicamente e a dar-lhe um carácter tão inexplicável quanto inesgotável. Sem esse misterioso e sobrenatural Allo ti, a aporia de amor descrita em Fedra seria, ela também, uma evasiva? Tendo enumerado à maneira de Aristóteles as características da beleza poética, o jesuíta Rapin escreve: «Ainda há na poesia certas coisas inefáveis que não podemos explicar. Tais coisas são como que os mistérios dela.»
... ...Esse «ainda» poético, tal como o algo erótico do discurso de Aristófanes, é uma alusão ao infinito e uma abertura ao indizível; esse "resíduo" de mistério é a única coisa que vale a pena, a única que importaria conhecer e que, como se propositadamente, permanece irreconhecível. O segredo, tal como diríamos da morte, está decididamente bem guardado, a ignorância humana foi decididamente bem combinada! Muitos nomes puderam ter sido dados a esse inominado inominável, muitas definições propostas para esse «algo outro» que não é precisamente como os outros porque em geral não é nenhuma coisa, nem coisa alguma.
Tenho feito, vezes sem conta, uma experiência sensível, uma contemplação sensorial, de tal mistério secreto - se assim, Princesa de mim, lhe quiseres chamar. Atalhando, dir-te-ei que o monumento português que mais amorosamente visito é aquele céu aberto pelo inacabamento das capelas imperfeitas, no Convento de Nossa Senhora da Vitória, na Batalha. É magnífica aquela estrutura de humana arquitetura, edificada para se fechar no topo e todavia incompleta, tão comovente testemunha, já meio milenar, da nossa imperfeição, por esforçada que esta seja... Como seria a nossa humanidade se todos nós aprendêssemos a reconhecer e amar com gratidão e alegria fraterna esta nossa imperfeita condição? Não te falo de resignação mas, antes e só, de consciência da nossa realidade presente, que também aspira à ascensão pelo espaço aberto da nossa liberdade. O nosso ser humano, imperfeito sim, mas em aberto, porque livre, não o vejo, não o pensossinto como vítima castigada de um pecado original, nem tampouco, nihilisticamente, como acaso sem porvir, destituído de qualquer sentido. Cada um de nós sabe que morrerá, mas não sabe quando. Nem sequer sabe o que é verdadeiramente a morte, para além do biologicamente verificável e juridicamente determinável. E, como discorre Jankélévitch num texto esclarecidamente intitulado Mors certa, hora incerta, tal ignorância cronológica basta para tornar lacunar o nosso conhecimento do que a morte realmente é:
O conhecimento cronológico, dizíamos nós, implica, a fortiori, o conhecimento «ontológico». Ou, se tal linguagem me for permitida, é a «quandoïdade» que implica a «quodidade», e não inversamente! [Ou seja: só se sabe quando, quando se sabe o quê].
E não será por tal razão que a data da nossa própria morte nos é sempre subtraída? Mors certa, hora incerta! Platão conta como Zeus, tendo retirado aos homens o dom da imortalidade, mas desejando todavia tornar-lhes mais suportável o castigo, decidiu que eles morreriam mas não teriam a presciência do dia nem da hora: foi-lhes assim poupado o suplício contranatura do condenado à morte. O homem sabe que morrerá, mas não sabe quando; e quem não sabe quando nem sequer sabe o quê, apenas sabe o facto na intensidade e urgência dramática; não sente a angústia crescer; ou, melhor, só «sabe que», mas por ciência geral e, de certo modo, silogística. Tudo se passa como se o destino nos subtraísse a data da morte para nos desviar do aprofundamento da sua natureza.
A partir duma certa idade, mais ditada pela condição própria do que propriamente pela nossa contagem cronológica, a morte surge-nos - mais do que como certeza preanunciada mas sem rosto nem data conhecida - como uma lembrança, uma antecipada recordação de nós, que entretanto já nos habituamos a evocar os nossos próximos que vão partindo. E só sabemos que o-não-sei-quê que nos espera em quando ignorado terá nesse momento uma resposta nossa, não instantânea mas longamente conservada no percurso desta vida que deixamos. Será um sim sincero e só nosso, tão inato como aquele que, ao nascermos, o nosso primeiro choro disse à vida. Porque, tal como ao princípio queríamos ver e depois querer, também agora ousaremos aquilo para que não sabíamos estar tão bem preparados. Talvez por não nos termos reconhecido nesse quase-nada (le Presque rien). Para ilustração do que te escrevo, Princesa de mim, vou buscar uma imagem de Vladimir Jankélévitch, escrita num contexto muito diferente, pela ocasião e pelo propósito, do deste final de carta minha:
O pássaro não é um doutor em ciências que possa explicar aos seus confrades o segredo do voo. Enquanto vamos discutindo sobre o seu caso, a andorinha, sem mais explicações, levanta voo perante os espantados doutores... E, assim também, não há vontade sábia que possa explicar à Academia o mecanismo da decisão: mas em menos tempo do que o necessário para dizer o monossílabo Fiat, o pássaro Vontade já cumpriu o perigoso salto, o passo aventureiro, o voo heroico do querer; a vontade, deixando o firme apoio do ser, já se lançou no vácuo.
Há momentos em que, estranha e entranhadamente, sentimos confiança, afinal, no tudo desconhecido da nossa condição.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira