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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

Minha Princesa de mim:

 

   Na minha já idosa discoteca, constituída passo a passo, escuta a escuta, ao longo de muitas décadas, ainda se arrumam discos em vinil (78, 45 e 33 rotações) e inúmeros cd. Quando, com alguma nostálgica paciência, a percorro como catálogo dos meus gostos e preferências musicais, e caleidoscópio de tantas e tão diversas emoções, consigo sempre desenhar mais um traço, feição ou expressão, de um retrato meu que a vida, com as suas fidelidades, mutações e caprichos, foi animando. Assim me surpreendo a olhar para facetas menos lembradas da minha complexidade, tal como me repouso no encontro com o que talvez seja o meu pensarsentir estrutural, aquele corpo-e-alma que, de múltiplas maneiras, mais revelado ou mais escondido, se terá vestido para um novo encontro. Aparências ou manifestações que a circunstância de mim foi e vai desvendando e o meu pudor agasalhando em mistérios musicais que são a forma universal de segredar e entender o indizível. Por isso também guardo diversas interpretações das mesmas obras que, como te dizia em carta passada, são sempre, no tempo e no modo de cada momento, aquilo que foi composto e o que se escuta. Diz Jankélévitch que a música de Debussy nos fala da solidariedade simultaneamente impossível e necessária do ser e do não-ser...   ...numa linguagem que jamais alguém tinha falado, nem nunca mais alguém falará. Mas qualquer música, em diversas interpretações, é sempre nova. Adiante voltarei a citar-te um luminoso texto do melómano filósofo francês.

 

   Por mim, pois, prefiro dizer que, por muito clara que seja a sua partitura, qualquer momento musical é irrepetível: nasce de uma inspiração e da sua escrita, cuja tradição é depois traduzida por quem lhe dá o som da sua reanimação. Ganha outra vida própria, partilha que desabrocha em ofertas, como no milagre da multiplicação dos pães (que aliás, curiosamente, tão "filosoficamente" comoveu José Saramago) ou na conversão humana de Valjean (em Les Misérables de Victor Hugo, "comprada" pelo clérigo que o deixou fugir com a prata que lhe roubara).

 

   Em cartas futuras voltarei a todos estes temas. Mas nesta apenas quero levar-te a um cantinho da minha discoteca, onde com alguma frequência me acontece conviver com música inglesa dos séculos XVI e XVII: Dowland, Purcell, Byrd, e tantos outros. Esta manhã, já radiosa e ainda fria, repetidamente escutei If music be the food of love, título e primeiro verso duma ária para voz solo e contínuo, de Purcell. Canta a soprano Catherine Bott, no registo editado pela Chandos. O poema é de Henry Heveningham, apolónio a alumiar uma sensualidade sufocada por condição cortesã, exaltando prazeres que nos invadam olhos e ouvidos e tenham transportes tão violentos que magoem... e a própria veemência da música paradoxalmente vem enaltecer um secreto erótico desejo: Certo é que morrerei pelos vossos encantos, a menos que os vossos braços me salvem...

 

   Aquele primeiro verso, que dá título, Se a música é o alimento do amor..., esse, e só esse, é de Shakespeare. Ao escrever discorrendo esta carta, ocorreu-me que a música, nesse verso, talvez seja alimento do amor pelo poder de confundir desejos apenas dizíveis pelo inefável, na expressão livre e sem alvo de um só Desejo. Certos místicos, com os quais não me identifico nem achego (não sou cantante judeu, inda que bíblico, como Salomão, nem alumbrado espanhol, como Teresa d´Ávila), vivem e testemunham, ou imaginam, transes em que desejos se confundem.  Como noutro soneto de Shakespeare (CXXXV, na edição da Cambridge University Press, 1966), que agora mesmo para ti traduzo:

 

Whoever hath her wish, thou hast thy will,  
And ´Will´ to boot , and ´Will´ in over plus,  
More than enough and I that vex thee still, 
To thy sweet will making addition thus. 


Wilt thou whose will is large and spacious, 
Not once vouchsafe to hide my will in thine?  
Shall will in others seem right gracious,  
And in my will no fair acceptance shine?   

 

The sea all water yet receives rain still,  
And in abundance addeth to his store
So thou be rich in will add to thy will     

 

One will of mine to make thy large will more
Let no unkind, no fair beseechers kill,
Think all but one, and me in that one ´Will´.


Uma qualquer faz votos, tu só desejo tens,
E Desejo de sobra, Desejo para esbanjar.
E mesmo sofrendo mais dos teus desdéns
Ao teu terno desejo me quero somar.

 

 Não irás tu, cujo desejo é vasto e espaçoso,
Deixar que o meu no teu se abrigue?
Se doutros o desejo tens por gracioso,
Porque lanças sobre o meu sombra que o castigue?

 

Se o mar que é todo água acolhe chuva ainda
P´ra que em abundância a si a acrescente,
Tu, tão rica de desejo, o teu desejo alinda

 

E acresce com um só desejo de mim...
Não deixes que o teu  desprezo nos ausente,
Deixa só que o meu seja teu  desejo enfim...

 

         

   Esta tradução não é nem literal nem literária. Foi momentânea, talvez fácil, certamente conveniente. Também teve opções: como a de traduzir wish - que quer dizer desejo, aspiração, mas também voto como desejo de bem - por este voto; e Will que significa vontade, capacidade de decisão (até um testamento se chama will), por Desejo, no sentido de vontade condicionada por outra, isto é, não coerciva. Para exprimir-te dois sentidos: 1- o de que o desejo humano só verdadeiramente o é se partilhado, pois que, não o sendo, ou será suspiro contínuo, ou ira e violência ; 2- e o de que só a música - que é linguagem que nada afirma nem representa - pode em boa verdade (que, como o pensarsentir, é sempre uma vitória sobre a tentação do dogma) pôr-nos na onda inefável do indizível, caminho para a realidade invisível que, diz-me o sentimento de mim, do amor humano e do desejo de Deus, é afinal, ela só, a verdade ontológica, sem formulações tentativas. Pode assim ser outro modo do misticismo. 

 

   Quiçá o que, afinal, Princesa de mim, eu hoje te quero dizer antes seja bem dito pelo grande Shakespeare, nestes versos de The Passionate Pilgrim:

 

    If music and sweet poetry agree,
    As they must needs, the sister and the brother, 
    Then must the love be great ´
twixt thee and me,
 
    Because thou lov´st the one, and I the other,
 
    Dowland to thee is dear, whose heavenly touch
   
    Upon the lute doth ravish human sense;
  
    Spenser to me, whose deep conceit is such
 
    As, passing all conceit, needs no defence.

 

   Gosto muito dessa referência a Dowland, tocador de alaúde e compositor, e a Edmund Spenser, poeta, ambos admirados por Shakespeare. Não te traduzo o poema, apenas recordo, por essencial ao tema de que te falo, que ´twixt é a abreviatura de betwixt, palavra de origem saxónica, já arcaísmo poético ao tempo de Shakespeare, para significar between. Assim, o verso em que surge diz, em português: deve então ser grande o amor entre ti e mim / porque tu amas um e eu o outro... Partindo da condição de que se a música e a doce poesia concordam, / como, necessariamente (as they must needs), irmão e irmã, / deve então ser grande o amor entre ti e mim, porque amas um e eu o outro (mais do que a ideia de troca está aqui a de completação, a comunhão pela diferença): o poeta traz a inspiração de Spenser, mais fecunda que outra qualquer, a sua amada traz Dowland, cujo divinal toque de alaúde rapta os humanos sentidos.

 

   Do amor erótico a qualquer mística, o desejo que se despoja e vive livre transforma-se de impulso a possuir em busca de comunhão. Para tanto, precisa sempre de parceiro. Tal como o Evangelho também não distingue o amor de Deus do amor ao próximo. Mas termino traduzindo o prometido trecho de La musique et l´ineffable de Vladimir Jankélévitch. Por ele começa o capítulo 3 (Le charme et l´alibi) do livro. Com o subtítulo de L´opération poétique:

 

   A obra de encantamento que é o espressivo inexpressivo não é um dito, mas um facto, e nisso se aparenta ao ato poético. Faz música, ordena o sonho a Sócrates, e não pares de operar. Fazer é de uma ordem totalmente diferente de dizer. Compor música, tocá-la interpretando-a, cantá-la ou mesmo escutá-la recriando-a não serão, afinal, três modos de operar, três atitudes bem mais drásticas do que gnósticas? O criador, o executante que é recriador ativo, o ouvinte que é recriador fictício, todos três participam numa espécie de operação mágica: o executante coopera com o primeiro operador fazendo com que a obra exista efetivamente no ar vibrante durante um certo lapso de tempo, e o ouvinte recriador terciário coopera pela imaginação ou por gestos adventícios...

 

   Nota, Princesa de mim, que a frase A obra de encantamento que é o expressivo inexpressivo não é um dito, mas um facto, e nisso se aparenta ao ato poético se inspira também na Poética musical de Igor Stravinsky. E não será isso ainda o que Shakespeare sugere ao juntar a evocação de Dowland à de Spenser?

 

Camilo Maria           

 

Camilo Martins de Oliveira