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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Uma vez sonhei-me a mim e ao meu irmão sentados na escada do prédio onde morávamos, naquele silêncio que sempre presidia entre o final das férias grandes e a viagem urbana do inverno. Como não partilhávamos os amigos, naquele momento eramos mais nós, acompanhados das inúmeras palavras não ditas e de todas as ternuras cúmplices já vividas. E ali estávamos, no mesmo degrau sentados, tristes, naquele intervalo de nada que se misturava com o que não queríamos viver.

 

De repente uma forte agulhada fez-se ao meu peito, e logo percebi que tinha ido parar ao sonho que dói, e, acordei. Não era um sonho errado aquele que se desenvolveria, mas era um sonho do qual me queria afastada como de todas as perguntas que encolhem os ombros e por elas se ficam num vá lá saber-se o quê! vazio e derrapante como as escadarias imensas por onde os sonhos me faziam escorregar sem borboletas na barriga, antes num voar tropeçante e enfim salvo por uma realidade desconhecida que lhe punha fim. Este sonho do cair ou do voar de uma escadaria era, na altura, uma constante.

 

Acendi a pilha que clandestinamente tinha sempre na mesa-de-cabeceira e espreitei o quarto, quieto e seco como um sopro velho e comparei-o às hipóteses vividas no verão que acabara. Nesses verões existiam burros complacentes que carregavam pelos trilhos das fontes, bilhas de água dentro de cestos de verga destinadas às casas dos veraneantes. O barro dava à água uma frescura com cheiro e sabor próprios e tal como as peras e as uvas e os primeiros namorados cujas paisagens eram indecifradas, mas ricas de repensar, as águas das bilhas eram uma concordância com a vida fosse qual fosse a razão. Também as festas nas garagens ou o cheiro a maresia nas chegadas à praia, as estrelas-do-mar dentro das poças por entre as rochas, tudo era palpitante, tudo eram pinheiros e cheiros de cascas de pinhões abertas no chão dos pinhais e, sobretudo, tudo eram escapadas, tudo era conseguir fugir a controlos contrários aos sonhos.

 

Desliguei a pilha e voltei ao sonho e tudo se complicou. O meu irmão esforçava-se em vão por uma autorização para viajar na mota e a mim perguntavam-me a soma dos ângulos dos triângulos qual modo de interrogatório que colocava em causa a curiosidade de qualquer saber.

 

Olhámos um para o outro e bem entendemos que seria mais um inverno em que deitaríamos mão às reservas, colherada a colherada, até ao fim. E como tudo demorava a chegar ou raramente chegava do céu, dei um beijo ao meu irmão e entrei em casa resoluta, desligando-me do sonho e disponível a regar a inexistente planta do meu vaso. A verdade é que desde cedo os começos me subiam à cabeça e desde cedo engolia a chaves dos segredos, e, sem me conformar espreitei da porta o meu irmão, o meu irmão muito no coração de tudo em mim.

 

A viagem urbana do inverno seria feita sempre igual até que alguém nos revezasse.

 

Teresa Bracinha Vieira

2019