UM BANDO DE TERRORISTAS
Se bem me lembro, a minha primeira colaboração com o Centro Nacional de Cultura, no século passado, foi a tradução de um texto de Cornelius Castoriadis, para publicação na Raiz e Utopia, a pedido de Helena Vaz da Silva. A minha cultura era, então, de matriz francesa. Mudei muito, mas ainda hoje, e este texto é prova disso, é com indisfarçável emoção que volto a esses velhos amores.
Era um bando de terroristas. Trabalhavam na clandestinidade e no negro escuro do cinema. Incendiaram redacções e mulheres de grandes olhos apaixonaram-se por eles.
Falo de cinco rapazes franceses, tantos como os dedos de uma mão: Truffaut, Godard, Rohmer, Rivette e Chabrol.
Nos anos 50, converteram uma revista amarela numa lenda e num escândalo. Nos Cahiers du Cinéma foram devotos do cinema americano mais do que a irmã Lúcia da Senhora de Fátima. A intelectualidade europeia lia então por uma cartilha neo-realista, uma espécie de enteado estético do comunismo soviético. Redimindo alguns cineastas comprometidos, a fina flor literária via nos filmes americanos um lixo industrial escapista com que infelizmente o povo se emocionava e divertia.
Os cinco terroristas desataram a escrever blasfémias. Escreviam como quem sonha. Em westerns e filmes de gangsters descobriram equivalentes de Ilíadas e Odisseias.
Não se pode escrever sobre cinema, poesia ou pintura, sem se arrancar vibração ao baixo-ventre, sem pôr uma sala em pé e fúria. Como quem junta gasolina e cinco fósforos, o bando juntava sublevação, anarquia e alta cultura.
Quem se lembraria de proclamar a genialidade de Chaplin invocando como prova três passagens do Evangelho de São Mateus? O agnóstico Truffaut, pois claro.
O inimigo acusou de declínio senil os filmes americanos de Jean Renoir. De cima da Torre Eiffel, Rohmer retalia e responde aos gritos a esses acusadores, provando que nenhum génio autêntico declina no fim da vida: tal como as últimas obras de Ticiano, Rembrandt e Beethoven, o último filme do genial Renoir é, só pode ser, uma obra-prima, o mais belo dos seus filmes.
Escreviam como quem sonha. Puseram leitores em êxtase ao obrigarem Deus a ter ciúmes da metafísica de Hitchcock. E de roxos ciúmes ficou o Diabo quando disseram que o Man of the West de Anthony Mann “reinventara o western com o lápis de Matisse, o traço de Piero della Francesca”.
Os terroristas geralmente estão contra o poder. Contra o pequeno poder que era o modo comunista de ver a arte nas redacções dos jornais dos anos 50, este bando dos cinco foi o exército aliado do poder do cinema americano. Dispararam a sua artilharia estética fazendo subir aos céus o imaginário universal de Hawks e Nicholas Ray, musicais, melodramas, suspense e cinemascope. Dizendo “isto é o cinema!” aliaram Ford, Wilder, Hitchcock a Bergman, Dreyer e Rosselini. Aliaram a Europa e a América: foi a última vez.
Repudiando a vulgaridade ordinária dos críticos, Godard, esse Átila infantil, provou que Griffith inventara o cinema com as mesmas ideias com que Shakespeare inventara o teatro e que o cinema lavou os olhos do século XX reabrindo-os à pintura do Quatrocentto a Picasso, ressuscitando o lascivo desejo de narrativa de Homero a Joyce, desflorando ouvidos para sonoridades sublimes de Bach a Stravinski.
Terroristas, ensinaram-nos que, com o cinema, a América devolveu à Europa em sonho o que a Europa lhe emprestara em vida.
Manuel S. Fonseca