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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

O verdadeiro sentido do habitar - La Casa Chica de Smiljan Radic.

 

‘All things are so very uncertain, and that’s exactly what makes me feel reassured.’, diálogo entre Moomintroll e Too-ticky em ‘Moominland Midwinter’ (Tove Jansson, 1968)

 

Entender o lugar como refúgio abre a possibilidade da sua imediata apropriação, de dar protagonismo ao corpo que experiencia e de conceber o espaço como abrigo.

 

O verdadeiro espaço de habitar permite uma constante comunicação entre as várias formas de vida, que estão sempre em mudança e que circundam o ser humano.

 

Em Vilches, Smiljan Radic construiu a Casa Chica com materiais desperidiçados e elementos encontrados. É um objecto que parece, desde sempre pertencer, àquele sítio - completamente ancorado e aberto aos seus sons, às suas mudanças, ao seu ar. 

 

Vilches é um sítio recôndito, abandonado e desconhecido - leva tempo e algum esforço para lá chegar: ‘There are still dirt on the roads that give you the feeling of distance, which is all that’s necessary for a refuge (...) A series of houses have appeared and disappeared here.’ (Smiljan Radic, em Apartamento, issue #12)

 

Dentro da Casa Chica está-se sempre imerso na paisagem, porque esta está sempre visível. A circunstância está sempre lá, é referência para tudo e determina os limites da casa. Por isso o seu espaço interno é incerto mas completamente apropriável. 

 

‘La Casa Chica is completely overturned on the outside and doesn’t have any possibility of an inside.’, Smiljan Radic

 

A solidez dos materiais usados (pedra, madeira, metal) e a resistência dos elementos fixos (janelas, fogão, loiças) dão ao espaço um certo sentido de permanência e de segurança. 

 

A natureza, que faz parte integrante do objeto construído, é o seu elemento improvável e variável - até o clima dentro do abrigo é inconstante, relacionando-se diretamente com o que acontece lá fora. 

 

O espaço de habitar torna-se assim flexível, com verdadeira possibilidade de proteção, de pertença e de densidade.

 

Architecture is a moment expanded in time and nothing less than a permanent installation’, Smiljan Radic

 


Ana Ruepp

 

ISLAMOFOBIA E CRISTIANOFOBIA

 

1. Não há dúvida de que a visita do Papa Francisco aos Emiratos Árabes Unidos de 3 a 5 deste mês constituiu uma visita para a História, como aqui procurei mostrar na semana passada. O próprio Francisco caracterizou a sua viagem como “uma nova página no diálogo entre Cristianismo e Islão”. É preciso ler e estudar o “Documento sobre a Fraternidade Humana”, então assinado por ele e pelo Grande Imã de Al-Azhar. Também foi a primeira vez que um Papa celebrou Missa para 150.000 cristãos na Península Arábica, berço do islão, num espaço público.

 

Já de regresso ao Vaticano, na habitual conferência de imprensa no avião, um jornalista perguntou-lhe que “consequências terá também entre os católicos o Documento, considerando que há uma parte dos católicos que o acusam de deixar-se instrumentalizar pelos muçulmanos...” E Francisco: “E não só pelos muçulmanos... (riu-se). Acusam-me de me deixar instrumentalizar por todos, incluindo os jornalistas. É parte do trabalho, mas gostaria de dizer uma coisa. Do ponto de vista católico, o Documento não se separou nem um milímetro do Vaticano II, que até é citado várias vezes. Se alguém se sentir mal, eu compreendo-o, pois não é algo de todos os dias..., mas não é um passo atrás, é um passo para diante... É um processo e os processos amadurecem.”

 

Outro jornalista observou: “O Imã de Al-Azhar, Ahmed al-Tayeb, denunciou a islamofobia. Porque é que não se disse nada sobre a cristianofobia, sobre a perseguição aos cristãos?” E o Papa Francisco: “Falei sobre a perseguição aos cristãos. Também falo sobre ela frequentemente. Inclusive nesta viagem falei sobre isso. Também o Documento condena a violência, e alguns grupos que se dizem islâmicos (os Sábios dizem que não é o islão) perseguem os cristãos.” E, aqui, Francisco relembrou uma história absolutamente comovente, que já contara com mais pormenores em 2017. Em 22 de Abril de 2017, na Basílica de São Bartolomeu na Ilha Tiberina em Roma, o Papa Francisco, com a Comunidade de Santo Egídio, presidiu a uma Liturgia da Palavra em memória dos novos mártires dos séculos XX e XXI. E ficaram estas palavras de profundidade incomensurável, apontando, com comoção que nos abala, para a religião na sua verdade humana e divina: “Eu quero, hoje, acrescentar mais um ícone a esta igreja. Uma mulher. Não sei o seu nome. Mas ela olha para nós lá do Céu. Eu estava em Lesbos, saudava os refugiados e encontrei um homem de 30 anos, com três crianças. Olhou para mim e disse-me: ‘Padre, eu sou muçulmano. A minha mulher era cristã. Os terroristas chegaram ao nosso país, olharam para nós e perguntaram-nos qual era a nossa religião e viram-na a ela com um crucifixo. Disseram-lhe que o atirasse ao chão. Ela recusou, não o fez. E degolaram-na diante de mim. Amávamo-nos muito, gostávamos muito um do outro.” “Este é, continuou Francisco, o ícone que trago aqui como presente. Não sei se esse homem ainda está em Lesbos ou se conseguiu ir para outro lado. Não sei se conseguiu sair desse campo de concentração, porque os campos de refugiados — muitos — são de concentração, devido à quantidade de gente que ali é deixada (...). E este homem não tinha rancor: ele, muçulmano, tinha esta cruz da dor que levava sem rancor. Refugiava­-se no amor da mulher, salva pelo martírio.”

 

2. Precisamente no contexto do magno acontecimento histórico que foi esta visita, quero relembrar que, entre os pressupostos para um diálogo inter-religioso autêntico, há dois que são imprescindíveis. Refiro-me concretamente a uma leitura histórico-crítica dos textos sagrados e à laicidade do Estado.

 

Estes pressupostos são universais, mas têm particular importância para o cristianismo e o islão (deve-se distinguir entre islão e islamismo, este já com o sentido de islão extremista), pois o número dos cristãos e dos muçulmanos é superior a mais de metade da Humanidade, o que significa que o entendimento entre eles é essencial para o futuro.

 

A Igreja Católica nomeadamente teve dificuldade em aplicar estes pressupostos, que aceitou plenamente apenas no Concílio Vaticano II. De qualquer forma, já havia indicações no Novo Testamento e no fundador. Assim, nunca os teólogos católicos referiram a Bíblia como ditada por Deus, mas como Palavra de Deus em palavras humanas, o que implica a exigência de interpretação. Jesus disse: “Dai a César o que de César e a Deus o que é de Deus”. E, chegado a Jerusalém, foi morto, manifestando-se contra toda a violência, dizendo a Pedro: “Mete a espada na bainha, pois quem com ferros mata com ferros morre”. Isto significa que, quando os cristãos olham para os horrores cometidos por eles ao longo da História, têm de reconhecê-los e pedir perdão, pois atraiçoaram Jesus, o fundador.

 

O que para a Igreja católica foi difícil vai sê-lo ainda mais para o islão. De facto, muitos defendem que o Corão foi ditado por Deus ou que é cópia do Corão eterno, e, por isso, lêem-no à letra, com todos os riscos de barbárie. E o fundador, Maomé, foi ao mesmo tempo um profeta, um chefe de Estado e um combatente em várias batalhas. Com razão, escreveu o filósofo Slavoj Zizek, citando M. Safouan: “A marca distintiva do islão é ser uma religião que não se institucionaliza a si mesma e que, ao contrário do cristianismo, não se equipa com uma Igreja. Na verdade, a Igreja Islâmica é o Estado Islâmico: foi o Estado que inventou a chamada ‘mais alta autoridade religiosa’ e é o chefe de Estado quem nomeia o homem que deve ocupar esse cargo; é o Estado que manda construir as grandes mesquitas, que supervisiona a educação religiosa; é ainda o Estado que cria as universidades, que exerce a censura em todos os domínios da cultura e que se considera ser o guardião da moralidade”.

 

Evidentemente, a laicidade não é laicismo, que seria a religião da não religião, no sentido de remeter a religião para o espaço privado ou íntimo, sem lugar no espaço público. Sendo a religião uma dimensão constitutiva do ser humano e estruturante da cultura, é evidente que tem de ter lugar também no espaço público, e as religiões têm o direito de debater as grandes questões das sociedades, concretamente as referentes à bioética, e tentar fazer triunfar as suas posições. Qual é a diferença, quando há laicidade, separação da(s) Igreja(s) e do Estado, da religião e da política? Neste caso, a lei não é a lei religiosa, mas a lei votada democraticamente, em democracia pluralista, no Parlamento.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 17 FEV 2019

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

DE REGRESSO DE LONDRES…
19 de fevereiro de 2019.

 

Venho de Londres, com os ouvidos cheios de argumentos racionais e irracionais, sobre o futuro que o Brexit reserva aos nossos amigos da Velha Albion.

Para já, percebi, entre tudo o que ouvi, que são mais as dúvidas do que quaisquer certezas. Mas em nome da coerência e da aprendizagem, posso, em traços muito gerais, expor-vos uma discussão que considerei algo absurda, em que o tema se tornou subitamente tão duvidoso sobre o que dizer ou fazer. E isto é tanto mais complexo e quase absurdo, que podemos estar um dia inteiro à procura de onde podem estar os interlocutores que procuram racionalizar o que pensam sobre tão inusitado tema. Comecemos pelo princípio. Entre os meus amigos, há representantes de todas as posições e atitudes. Mas posso dizer-vos que neste momento a atitude típica dos ilustres membros da Albion é não dizerem o que pensam, e pensar o que não dizem… Mas há mais, muitos dizem o que não pensam e pensam o que não dizem… Raros pensam o que dizem, e dizem o que pensam… Como costumava afirmar o meu velho Coronel Clifton, vive-se uma verdadeira trapalhada, plena de simulações e dissimulações. O mal foi o Senhor Cameron ter-se lançado de um avião em andamento sem paraquedas. O resultado foi aquele que a racionalidade impõe. O desastre aconteceu mesmo. Mesmo que ele, Cameron, a meio caminho, antes de se despenhar tenha dito “so far so good”. De nada lhe valeu esse derradeiro ato de fé. Descansa em Paz. Não houve retórica que salvasse a pura lógica a que Chesterton chamaria um figo. Mas vamos por partes. O não dizerem o que pensam, como John Bull, é natural. O pensar o que não dizem é uma consequência desse absurdo. Já o dizerem o que não pensam é uma atitude contra natura. Mas que dizer quando vivemos invadidos de fake news, como aliás já aconteceu com o famigerado referendo? E o pensar o que não dizem é algo que tem a ver com aquilo que um companheiro que se assemelhava a Mickey Rooney costumava dizer – “quando falta vontade e a indiferença prevalece, passa a valer tudo”. Uma notícia falsa mais não é do que fingir que é verdadeira, mesmo não o sendo. E esse companheiro antigo resumia tudo à filosofia do tanto se me dá. Acontece, porém, que essa indiferença não passa da seguinte consideração, só possível numa sociedade profundamente dividida – como ouvi num dos jardins de Oxford há poucos dias: se foram os velhos a votarem a saída, o que vai acontecer é que eles, por ordem natural das coisas, vão mais depressa para os cemitérios, e como aí deixam de votar, um tempo surgirá em que serão os jovens, que durarão mais tempo e que, portanto, terão de encontrar a solução prática para dar o dito por não dito. Eu sei que eles são muito pragmáticos em mudar acontecimentos. Resta, assim, esperar… O cinismo desta atitude não me convence, porém. Em bom rigor há quem não tenha tempo para essa espera. E isso obriga a apressar as coisas… Eis a encruzilhada do momento! Ninguém se entende. E a Albion vai-se tornando cada vez mais irrelevante.  Eis onde isto parece ir parar. Por mim e agora, vou para o jardim, que é tempo de experiências florais – e aproveito para citar um poema de Fernando Echevarría, o inolvidável…      

 

Vinham rosas na bruma florescidas 
rodear no teu nome a sua ausência.
E a si se coroavam, e tingiam
a apenas sombra de sua transparência.

Coroavam-se a si. Ou no teu nome
a mágoa que vestiam madrugava
até que a bruma dissipasse o bosque
e ambos surgissem só lugar de mágoa.

Mágoa não de antes ou de depois. Presente
sempre atual de cada bruma ou rosa,
relativos ou não no espelho ausente.

E ausente só porque, se não repousa,
é nome rodopio que, na mente,

em bruma a brisa em que se aviva a rosa.

Fernando Echevarría, in “Poesia 1956-1979”

 

 

Agostinho de Morais

A VIDA DOS LIVROS

De 18 a 24 de fevereiro de 2019.

 

 

«Património de Origem Portuguesa no Mundo – Arquitetura e Urbanismo» sob direção de José Mattoso (F. C. Gulbenkian, 2010-2011) abrange três volumes e Índices e deu origem ao Portal HPIP – Património de Influência Portuguesa, que é um projeto único, indispensável para os estudiosos do tema, como agora se recorda.

 

 

UMA DESCOBERTA FUNDAMENTAL
A recente descoberta de uma capela quinhentista na Cidade Velha, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, constitui uma nova demonstração (se tal não fosse já claro) da importância da inclusão da Ribeira Grande na lista do Património mundial da UNESCO, que tive o gosto de apoiar desde o início. Trata-se de um exemplo, entre outros, de como o conhecimento do património artístico e arqueológico merece especial atenção e cuidado. Neste momento, a comunidade científica acompanha os trabalhos que estão a ser realizados no local, no âmbito do projeto “Concha” e que permitirão devolver ao público um marco de grande valia no património cultural da humanidade. De facto, no final do presente ano, poderemos visitar o templo devidamente restaurado e próximo da sua versão original, em condições de segurança e qualidade. E devemos insistir na compreensão do Património Cultural, não como realidade do passado ou como marca de uma qualquer identidade, ainda que multiforme, mas como um exemplo de um valor comum, partilhado por diversas culturas e comunidades. E não devo esquecer a reflexão dinâmica desenvolvida na UNESCO e no Conselho da Europa (designadamente na Convenção de Faro sobre o valor do património cultural na sociedade contemporânea - 2005) numa perspetiva aberta e crítica, e não fechada e retrospetiva, a propósito do património e da cultura. As lições do recentemente terminado Ano Europeu do Património Cultural - 2018 apontam nesse sentido, com especial ênfase para a mobilização dos cidadãos para a defesa do património como realidade comum, como realidade inclusiva e não exclusiva.          

                                             

UM PROJETO NOTÁVEL
Serve esta referência para lembrar a importância do projeto “Património de Influência Portuguesa – HPIP”, lançado pela Fundação Gulbenkian em 2012, na sequência do inventário sistemático do património histórico de origem portuguesa, arquitetura e urbanismo, lançado por Emílio Rui Vilar, que deu origem a três volumes em papel e a um de índices, a que sucede o portal, sob a direção de José Mattoso (2007) - como uma base de informação disponível não só para a comunidade científica, mas também para os cidadãos do mundo. Trata-se de um instrumento de trabalho, para quem estuda ou deseja conhecer as repercussões na arte e na arquitetura da presença portuguesa no mundo. E assim constituiu-se “um objeto de estudo, um corpus, como conjunto significativo do contexto em que os seus diversos elementos foram criados, dos sinais que os caracterizam, na sua singularidade ou na sua categorização, das alterações que sofreram, enfim, dos aspetos que justificam o seu valor patrimonial”, urgindo não “confundir as épocas e as situações, e não projetar sobre o passado fenómenos da nossa época”. Falando da obra publicada em 2010 e 2011, temos na Ásia e Oceania o património do Estado da Índia e o que dependeu do Padroado Português do Oriente, ainda que fora do subcontinente indiano, a que se soma Macau e Timor - estão em causa essencialmente os séculos XVI e XVII, sem esquecer o prolongamento do Padroado e o prolongamento das reminiscências da influência portuguesa. Na América do Sul, temos o Brasil e a Colónia do Sacramento (Uruguai) com uma presença fundadora nas construções dos séculos XVII e XVIII, baseadas nos modelos metropolitanos e ligadas sucessivamente aos ciclos do açúcar, do ouro e dos diamantes, com sistemas administrativos análogos aos da metrópole, ainda marcados pela exploração de mão-de-obra escrava, pelas guerras com holandeses e franceses, pela presença da Corte no Rio de Janeiro, pelo Reino Unido e pela independência. Já em África, Mar Vermelho e Golfo Pérsico encontramos vestígios de entrepostos e fortalezas no litoral, criados para servirem a carreira da Índia e a captação da mão-de-obra escrava. A presença no interior é tardia, ocorrendo a partir do século XIX, com a ocupação militar dos vales dos rios e com a criação de estruturas para exploração de matérias-primas, à semelhança do que acontecia na colonização europeia.

 

UMA PERSISTENTE AÇÃO
Esta publicação vem na sequência de uma ação anterior apoiada pela Fundação Gulbenkian, de recuperação em edifícios e monumentos, entre as quais se contaram o Forte do Príncipe da Beira, em Rondónia (Brasil), a Casa de Nacarelo, na Colónia do Sacramento, a Fortaleza de Arzila (Marrocos), a catedral portuguesa de Safim (Marrocos), o Forte de São João Batista de Ajudá (Benim), o Forte de Jesus, em Mombaça (Quénia), o Forte de Quíloa (Tanzânia), as fortalezas de Ormuz e Qeshm (Irão), a Igreja do Rosário, em Daca (Bangladesh), a Feitoria Portuguesa de Ayutthaya (Tailândia) ou a Igreja de São Paulo, em Malaca (Malásia), para além de intervenções para preservar bens culturais valiosos em museus como os de Velha Goa e de Cochim, ou da inventariação e classificação de arquivos. Entendeu, porém, a Fundação dar prioridade à criação de um instrumento de informação traduzido na feitura de um portal público interativo assente numa base de dados georreferenciada. O portal teve como acervo inicial o conteúdo dos livros, mas logrou suscitar o contributo de quantos propuserem acrescentar ou corrigir conteúdos. Daí a importância do protocolo de colaboração entre a FCG e as Universidades de Coimbra, de Lisboa, de Évora e Nova de Lisboa – com o objetivo de estabelecer as condições de cooperação com vista à produção e transferência de propriedade e gestão do portal interativo. As Universidades de Coimbra e de Évora asseguraram até ao presente a coordenação do projeto, e o Conselho Executivo de gestão do HPIP decidiu assegurar a presença de um representante da FCG no Conselho Executivo, mantendo a propriedade e gestão do portal a cargo das Universidades. O projeto HPIP não tem equivalente, dada a sua natureza específica. Não se trata, porém, de fazer mais do que dar uma informação rigorosa e objetiva, não ditada por qualquer razão identitária ou unilateral. É a noção de salvaguarda de um património comum que está em causa. Daí a necessidade de uma informação objetiva, que, ela mesma, permita aos investigadores desenvolverem os seus estudos e tirarem as suas conclusões. A qualidade da historiografia depende do rigor da informação disponível, do mesmo modo que o património, a herança e a memória se devem constituir e consolidar a partir de inventários exaustivos e fundamentados, de estudos críticos respeitantes a fontes criteriosamente escolhidas, credíveis e de confiança. E relembrando o papel desempenhado pelos principais instrumentos internacionais, no âmbito das Nações Unidas, da UNESCO ou do Conselho da Europa, devemos considerar que o património cultural deve tornar-se um fator de paz e de cooperação internacional. O património cultural não é de uma região, de um país ou de uma cultura – é uma manifestação de criatividade e de valor – que deve estar ao serviço da humanidade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Em cartas passadas, falava-te de Vladimir Jankélévitch. Hoje, o meu amigo Marcello Duarte Mathias, chama-me a atenção para uma nota de pé de página (a 7, na pág. 362 do seu Caminhos e Destinos - A memória dos outros, tomo II), que reza assim: Numerosos intelectuais de confissão judaica sofreram idêntica dificuldade no seu relacionamento com a cultura germânica por virtude da perseguição aos judeus ocorrida durante o nazismo. Entre outros, é de citar o caso do filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985). Germanista de formação, autor de uma tese sobre Schelling, melómano erudito e apaixonado, deixou de estudar os grandes filósofos alemães a par dos músicos do universo germânico Mozart, Brahms, Beethoven, Schubert, excluindo uns e outros do seu universo cultural, por mera força de vontade. Caso deveras excecional esta espécie de exílio mental imposto a si próprio, que redunda num corte radical com o passado, abolindo-o de vez. (Se tanto nos é possível...)

 

   Este conceito de exílio mental é, desde logo, por si mesmo fascinante, e tal fascínio vai finalmente iluminando o notável texto de Marcello Mathias, recolhido na obra acima citada com o título O Escritor e o Sentimento de Exílio.Tema mordente, ali abordado sob a bênção inspiradora destes versos de Saint-John Perse: Ô toi hanté, comme la mer, de choses / lointaines et majeures  (...)  La nuit où tu navigues n´aura-t-elle point son île, son rivage? / Qui donc en toi toujours s´aliène et se renie?

 

   "A ti que, como o mar, és perseguido por coisas / longínquas e maiores (...) Quando te dará a noite em que navegas uma ilha, uma costa? Quem será que em ti sempre se aliena e se renega?"

 

   Alguém sabe? Frequentemente penso nos intelectuais judeus  -  russos, romenos, alemães, austríacos e não só  -  que, desde os pogrom  do tempo do tzarismo às perseguições nazis, se depararam com crises de identidade, sobretudo os que mais se tinham assimilado a outras culturas, desde o austríaco Hertzl, que se tornou pioneiro do sionismo, movimento para encontrar uma pátria aos judeus rejeitados pelas suas pátrias europeias (e, no início, tal pátria não seria necessariamente na Palestina, chegando mesmo a estudar-se a possibilidade de uma localização na África subsaariana). Aliás, Theodore Hertzl, abastado burguês vienense, começou por procurar ajudar os judeus expulsos da Rússia pelos progom, e teve a revelação do problema da sua própria identidade ao dar-se conta de que aqueles eram pouco, mal, ou reticente e ressentidamente acolhidos pelas nações da Europa Ocidental.

 

   Voltando aos anos loucos do século XX europeu, interroguemo-nos agora sobre os sentimentos - e o próprio sentimento de si - dos judeus, e dos intelectuais judeus, apanhados pela ascensão e o "triunfo" do nazismo. Casos diferentes uns dos outros, em todos eles me impressiona a variedade de respostas encontradas para enfrentar o ostracismo votado à muito sua identidade, quiçá mista judia e de uma nacionalidade europeia. De Hannah Arendt - que perdoou Heidegger, por muito ter amado, sem todavia fazer qualquer desconto ao desvario nazi - a Stefan Zweig, que afinal não conseguiu digerir a sofrida desconsideração da sua identidade vienense, austríaca ("habsburgamente" vivida!), germânica e europeia, e se suicidou no Brasil, em 1945.

 

   Samuel Jankélévitch, pai de Vladimir, era médico e foi tradutor de Hegel, Schelling e Freud. Seu filho, o judeu filósofo e musicólogo franco-russo, foi pelo pai assim criado no gosto e amor da cultura germânica. Não me parece que o seu posterior alheamento de músicos e filósofos germânicos assinale o desejo de apagar o passado, antes talvez o de afastar ou alhear de si qualquer sinal de pertença a uma cultura de se sentiu repudiado... Creio que procurará revestir-se de outra identidade, esta já ligada às suas raízes russas e ao seu abrigo e alimento francês, permitindo-lhe fugir à apagada e vil tristeza que matou Zweig. Talvez isso também lhe tenha permitido perdoar aos que lhe "furtaram" uma identidade sua (pensa, Princesa de mim, quanto tanto poderá magoar), sem todavia o impedir de, já em 1976, ainda declarar: J´ai pour Heidegger une profonde aversion, et je vis sans m´en occuper... Certo, e verificável, no plano musical, é que ele tampouco se debruçou muito sobre música italiana, ou americana, ou outra, ainda que com notórias exceções, como Liszt, Chopin, Bartok, Falla ou Albeniz, Mompou, Dvorak, Smetana e Janacek... Orientou-se para Fauré, Saint-Saens, Ravel e Debussy, Rimsky-Korsakov, Tchaikovsky  e Stravinsky, franceses e russos. Creio que tinha muito afecto por Fauré, como já te disse, certamente Debussy, Ravel sendo todavia aquele sobre o qual mais escreveu (ainda guardo o seu Ravel, publicado na coleção Solfèges, da Seuil, em 1956, mas cujo original data de 1939, editado pela Rieder, em Paris, logo dois anos após a morte do compositor. Jankélévitch talvez procurasse outro som interior (e digo interior também porque ele não era amigo de discos, preferia partições e o seu piano), mais próximo dessa parte de si que já não queria ser o que lhe tinham tirado. Mas sobre o que poderá ser um som alemão, e outras sensações, te falo já de seguida, recorrendo às confidências do grande maestro japonês Seiji Ozawa ao seu compatriota, escritor universal, Haruki Murakami. [Só por graça - porque nada tem que ver com o que te irei contar, os apelidos Ozawa e Murakami, literalmente traduzidos por este curioso lusitano, querem dizer, respetivamente: Grande Pântano e Acima da Aldeia, que, substituindo o significado topológico de Kami pelo espiritual, eu traduzia por Espíritos da Aldeia... Nos meus anos de Japão, há mais de duas décadas, os meus amigos divertiam-se muito com estas minhas "observações"].

 

   Em 2011, a editora Shinchosa (que, atendo-me ao som destes romaji ou caracteres latinos, que fazem transcrições fonéticas, seria tentado a traduzir por Nova Investigação) publicava em Tokyo um livro intitulado (e volto a recorrer à transcrição da escrita em kanji e hiragana para romaji) Ozawa Seiji-san to ongaku ni tsuite hanashi o suru, isto é, em jeito simples, o Senhor Ozawa Seiji e a música, em conversas registadas. A versão inglesa desta memória de conversas do Maestro japonês com Murakami Haruki foi editada em New York, pela Penguin Random House em 2016., com o título de Absolutely on Music: conversations with Seiji Ozawa. Desta foi traduzida a versão francesa, intitulada De la Musique: conversations, com indicação de autoria de Haruki Murakami e Seiji Ozawa.

 

   O livro tem vários motivos de interesse, desde o facto de reproduzir conversas muito eruditas de dois japoneses sobre música ocidental clássica (se bem que ambos confessem o seu amor ao jazz), até à revelação de pormenores significativos do árduo labor dos músicos profissionais, que nunca deixam, não podem deixar, de treinar o ouvido musical, as expressões de toques e de gestos de execução e direção musical, a concentração e abertura necessárias aos possíveis entendimentos de uma partitura. E vão surgindo várias comparações de artes e artistas, de inspirações e acústicas, de momentos e de estilos. Tudo isso se lê com muito gosto e enriquecimento humano, e nos introduz num universo onde as pessoas se encontram, se reúnem e comunicam, quiçá todas em busca do mesmo sopro, nem sempre em harmonia, mas com as suas próprias dissonâncias.

 

   Ozawa foi maestro assistente de Bernstein e de Karajan, bem diferentes um do outro. E foi, durante umas três décadas, diretor musical da Orquestra Sinfónica de Boston, à qual pretendeu "dar um som alemão"... Mas durante a sua permanência no cargo pôde verificar como o som da Boston Symphonic mudava conforme os maestros que a dirigiam (e houve muitos maestros convidados). Traduzo-te um trecho das "confissões" de Seiji Ozawa:

 

   Cerca de dois ou três anos após a minha chegada, o som da orquestra mudou para se orientar para o estilo alemão puro e concentrado a que chamo «into the strings». Os músicos regulam o seu arco [fala de instrumentos de cordas, claro, maioritários na orquestra] de modo a obterem um som mais pesado. Até aí, o som da Boston Symphony tinha sido sempre claro e fremente, isso porque a música francesa constituía o essencial do seu repertório. Munch e Pierre Monteux tinham exercido sobre ela uma influência profunda: Monteux já não era diretor musical, mas permanecia omnipresente. Quanto a Leinsdorf, ele tampouco tinha fosse o que fosse de alemão.

 

   Comenta Murakami: Chegara portanto a hora da orquestra mudar de som... E Ozawa acrescenta:

 

   Eu queria mesmo fazer música alemã. Queria interpretar Brahms e Beethoven, Bruckner e Mahler. Assim, pedi que se tocasse «into the strings». Depois de me ter resistido algum tempo, o primeiro violino, Joseph Silverstein, acabou por me apresentar a sua demissão. Também era o chefe assistente, e detestava aquele modo de tocar. Achava que diminuía o som. Levantou fortes objeções mas, no final de contas, o chefe era eu, e ele pouco mais podia fazer, além de renunciar.

 

   Pelo apelido se percebe que Silverstein era judeu, mas também Bernstein o era, o que não o impediu de brilhar em Beethoven, Brahms e Mahler, nem de transmitir a Seiji Ozawa grande gosto por esses compositores. Mais tarde Daniel Barenboim, judeu ecuménico, dirigirá um dos mais notáveis registos da tetralogia wagneriana... O maestro japonês que se nos confessa, quando Haruki Murakami lhe pergunta se, tendo dirigido a Orchestre National de France, não estará tão bem com a música francesa como com a alemã, contesta:

 

   Não é bem assim. Estudei com o maestro Karajan, e a minha prática da música é fundamentalmente alemã. Mas depois da minha chegada a Boston, apreciei muito Munch e assim toquei muita música francesa. Dirigi as integrais das obras orquestrais de Ravel e Debussy, cheguei mesmo a gravá-las. Descobri a música francesa depois de ter ido para Boston. O maestro Karajan nunca me tinha mandado trabalhar esse repertório - quiçá com exceção do Prélude à l´après midi d´un faune... E confidenciará ainda que, antes de Boston, apenas interpretara a Sinfonia Fantástica de Berlioz, cuja música não só é difícil, mas demencial, ao ponto de, por vezes, eu já não saber bem o que lá se passa! Mas talvez por isso ela se preste tão bem à direção de um chefe asiático. Posso fazer dela o que quiser. Certo dia, em Roma, há muito tempo, dirigi a ópera Benvenuto Cellini. Pois bem: deixei-me levar, entreguei-me a todos os meus desejos. O público adorou.

 

   O universo da música: tempo e lugar etéreo de reunião numa linguagem única da partilha. Espaço de liberdade comum.

 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

UM LIVRO SOBRE DOIS TEATROS HISTÓRICOS DE COIMBRA

 

Nesta alternativa de teatros históricos e teatros contemporâneos, seja na arquitetura seja na atividade teatral, remetemos hoje para a evocação de dois teatros de Coimbra, há muito desaparecidos, mas nem por isso menos relevantes na tradição cultural/teatral da cidade, e bem sabemos como ela é vasta e variada... Referimo-nos então ao livro de A.C. Borges de Figueiredo, intitulado “Coimbra Antiga e Moderna”, cuja primeira edição data de 1886, pelo que a “modernidade” tem de ser devidamente reportada!

 

E precisamente: o autor descreve dois edifícios teatrais de Coimbra. O primeiro é o então denominado Theatro Academico, datado de 1839, e considerado pelo autor como “o melhor de Coimbra”: aliás, Borges de Figueiredo data a inauguração de 1840, mas refere que em julho do ano anterior já lá tinha sido apresentado um espetáculo, a cargo de uma Academia Dramática, assim mesmo designada.

 

E mais refere que a tradição vinha de anos anteriores, concretamente de 1836, quando um grupo de estudantes representou o “Catão” de Garrett, já antes estreado no refeitório do Mosteiro de Santa Cruz.

 

Mas em 1861, sempre segundo o mesmo autor, é inaugurado em Coimbra um denominado Teatro de D. Luiz, contruído sobre as ruinas de uma velha Igreja de São Cristóvão entretanto demolida.  O Teatro inaugurou-se com uma peça então moderna, “O Dia da Redenção” de Mendes Leal.

 

E para terminar, citamos a descrição que nos deixou Borges de Figueiredo:
“O teatro não é muito pequeno, mas defeituoso, desprovido de elegância, e suas dependências são muito acanhadas. Para isto de destruiu um dos melhores espécimes que havia não só em Coimbra, mas ainda em Portugal, da arquitetura romano-bizantina”.

 

Não nos ficou imagem destes teatros. Mas vale e pena recordar Coimbra no século XIX...

 

DUARTE IVO CRUZ 

 

(Bibliografia: “Coimbra Antiga e Moderna” Edição Fac-similada, Almedina 1996)   

 

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

 

13. O PESSIMISMO NACIONAL EM MANUEL LARANJEIRA (II)  

               

 Mas há um pessimismo associado a uma ideia de decadência, em que o analfabetismo e a ausência de educação eram para Laranjeira a base primordial do decadentismo nacional, perante o facto de quatro quintos da população portuguesa ser analfabeta, o desencontro e a incapacidade de comunicação de uma minoria civilizada e intelectualmente desenvolvida com a restante sociedade, não sabendo ou não podendo impor-se à maioria da nação arrastando-a consigo, origem dum desnivelamento causador duma crise sobreaguda de pessimismo.   

 

Conclui: “O nosso pessimismo quer dizer apenas isto: que em Portugal existe um povo, em que há, devoradas por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre porque a não educam e uma minoria que sofre porque a maioria não é educada” (ib., pg.ª 41).     

 

A deficiência educativa é tida como insuficiência determinante do processo coletivo de sobrevivência, o que se reflete na inferioridade social da maioria da população: “Incapaz de receber ideias e sentimentos, o cérebro da grande massa da sociedade portuguesa, em virtude daquele princípio lamarkeano que condena à morte o órgão que não trabalha, definha-se, atrofia-se, lenhifica-se, e a alma portuguesa estagna na tranquilidade morta das águas paludosas”, acrescentando: “(…) a única coisa que espanta (…) é a pasmosa resistência deste desgraçado povo” (ib., pp. 32, 33), propondo uma educação intensiva. 

 

Se o povo existia, era preciso educá-lo. Corroborado pelo avanço educativo numa elite reduzida, que apesar de intelectualmente superior e credível, sobrepunha ao ideal de Pátria o de Humanidade, desajustando-se da realidade interna. Impunha-se refazer tudo, refundindo a sociedade de baixo a cima, abatendo velhos messias e transformando a monarquia numa sociedade livre e num novo regime, a República, a qual, uma vez vingada, não foi para Laranjeira a República desejada.

 

Se é verdade que a ignorância do povo português era, infelizmente, incontestável, decorridos 100 anos ainda se mantêm alguns diagnósticos, apesar de profundas transformações.   

 

Mesmo atenuada, permanece a distância entre as elites e o povo, agravada por uma incapacidade daquelas em desencadearem movimentos sociais de relevo, o que implica uma análise deformada ou hipostasiada da realidade portuguesa, tendo havido sempre minorias defensoras do culto da manutenção do poder na base da ignorância, gerando a falta de democratização fracas elites e menos por onde escolher. 

 

Por outro lado, existindo uma minoria dependente intimamente do Estado, nela se concentrando desproporcionalmente o poder e os recursos, ter-se-á gerado a convicção, para muitos, da inutilidade de participar nas decisões e assunção de responsabilidades.

 

Mesmo com a democratização e universalização do ensino, cada vez são menos os que sabem muito e de tudo, ao lado do analfabetismo funcional dos outros.       

 

12.02.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

CARTA DE OLIVEIRA DA FIGUEIRA
14 de fevereiro de 2019

 

Meu Caro Amigo Agostinho de Morais

 

Espero muito que esta carta o encontre bem. Acredite sinceramente que tive uma enorme alegria em poder ter conversado consigo na maravilhosa capital da Sildávia.  Antes de mais, venho desculpar-me por me ter desvanecido depois de nos termos encontrado em Klow. Já me conhece há tempo suficiente para saber que não gosto de estar muito tempo quieto. Assim aconteceu, de novo, e se é verdade que a Sildávia é um país pacato, para um comerciante conhecido como este seu amigo, todo o cuidado é pouco para garantir o necessário recato e a prevenção relativamente a oportunistas e invejosos. À medida que a minha idade avança, mais consciência tenho de que tudo será vão, se não estivermos bem despertos, como se tivéssemos mil olhos. Assim eu faço. Aliás, se eu tivesse um brasão de armas, escolheria a imagem de uma mosca, com os olhos multifacetados para tudo ver. Infelizmente, o meu falecido progenitor preferiu adotar como símbolo de sua casa de comércio uma barata, que era o inseto que mais o atormentava no armazém da mercearia onde ganhava a vida. E adotou-o como uma espécie de exorcismo perene, através do qual se libertava de quem se entretinha a deliciar-se com as batatas que guardava na cave da casa. E havia que dar cabo desse terrível bicharoco com determinação. Para mim, porém, a mosca é o melhor inseto, não para voar à minha volta, com zumbido perturbador, mas para exercitar o olhar penetrante capaz de tudo abarcar. E certamente que o meu mui amigo notou que praticamente não há moscas em Klow… Esse é o resultado da minha última vitória como Conselheiro Especial da Corte. Consegui vender ao Reino da Sildávia um aparelho que é o “Último Grito” da mais moderna tecnologia. Trata-se de um abanico gigante para afastar todo o tipo de insetos. E a verdade é que há resultados positivos, para gáudio de todos. Sei até de um relatório circunstanciado da responsabilidade do Ministério das Iniciativas Insólitas, que me encheu de orgulho. Aí se diz que há uma cadência regular e um movimento uniforme que permite uma eficácia extraordinária do grande abanico. Agora, já estou em bom recato, sem inoportunidades, a pensar em novos negócios… Como sabe, vendo tudo que vem à mão. E o certo é ninguém deixa de comprar… Ainda gostaria de lhe dizer que certamente não se apercebeu de que uma pequena ruela próximo do palácio real leva o nome de Tintin e um pouco adiante, nas traseiras desse grande monumento, está a Alameda de Oliveira da Figueira, o mais original e imponente de todos os arruamentos da cidade. Aí há uma pequena estátua que representa alguém que a minha modéstia não  deixa designar –  no ofício de prestidigitador, carregado de artefactos. E na base desse monumento insigne, estão os versos imortais do poeta Alexandre O’Neill, celebrizados por minha saudosa amiga Amália Rodrigues e por Adriana Calcanhotto:

 

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.
Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.
Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.
Assim devera eu ser
se não fora não querer.

 

Eis o que se me oferece… Aceite, querido amigo Agostinho os melhores votos de amizade do seu, sempre

Oliveira da Figueira.

 

Agostinho de Morais

POEMA

 

E foi quando tomei os elementos por garante que logo arrefeceu súbito o ar nas minhas mãos. O frio das primeiras neves-alaúdes do saber provocaram um aperto absoluto, como sempre que os sonhos se repetem, e nos abandonam lisos, ensaiando à frente dos nossos olhos o ritual da morte do eterno.

 

Não sei se é esse o tempo dos desastres sem fantasmas, porque afinal o sangue se tornou cíclico, e eu, de vez, o entendi. Também não sei se me conciliei com a natureza por método nu, chegada que fui à sua morada de panos sobrepostos. Não sei, tão pouco, a que horas pedi servo ou serva, a fim de testemunharem que fui eu mais aquela que não posso controlar, que de concreto sempre falou da vida e no mar fez casa, sótão, cave e subcave, onde guardei poemas de universo. Poemas daqueles aos quais me fiz sem quebrar qualquer aliança com a realidade.

 

Devo dizer que reconheço a minha vida.

 

A espuma do mar foi meu telhado; sob ele, a beleza do poema que não procura estética, a força do passado em gruta de luz mutável, a fragilidade do amor numa coragem plena de morte frontal, e ainda as abelhas-biblioteca, tão nítidas, tão feras. Mergulho, mergulhei nos esboços rigorosos com os quais tentei entender o exatamente dito, escrito, acontecido, espreitado, sentido, vivido, quando e sempre atenta para dentro e para fora da vida e, enfim, para o equilíbrio, para aquele que limpa os olhos quando é sinal de verdade, sendo esta a beleza do poema quando poema.

 

Sou e tenho sido uma antena nas velas de um moinho que roda ao ar e por ele traz pão.

 

Escolhi desse pão para a minha casa e, ou a casa não foi minha, ou o pão mal se ouvia à chegada. Foi o excesso de violetas – disse-me à memória o meu avô - e, sim, elas decifram ressurreições e habitam-nos, foi quanto chorei pelas paredes a tua partida. Até hoje. Mútua curiosidade de mim para mim?, ou sei eu que quem parte foi quem deixou os segredos pelo chão?, ou quem partiu fui eu que hibernei fora do tempo? Não sei. Não me peças piedade nos beijos em simultâneo com os meus olhos nos teus, ela não existe para quem hesitou. Atenta igualmente que ela pode ir à frente de mim com outro nome, aquele que define que de ti, hoje e amanhã, o meu passo sempre procurou um voo conjunto.

 

Sei que através de ti muitas vezes, muitas, muitas, fui amor inteiro e tu em mim celeiro em secreta festa de tanto espanto, tanto segredo, que a construção possível do futuro se fazia em veias celebradas na paixão em êxtase, rosas, auréolas de seios, canela, jasmim, madeiras quentes, orientes, tudo teima a progredir para a luz e afinal dançámos, dançámos para nos entendermos em permanecer.

 

Obstinada recomeço-me em cada coisa.

 

Os meus pés escutam o chão do mundo e uso um vestido de fidelidade às pedras, à luz, a todos os bichos homens e bichos mulheres e bichos por autenticidade, para também buscar um deus que atravesse a vida ao contrário: da morte para o embrião.

 

Que instante!

 

Da liberdade, digo, celebro a chegada, adiantando-me ao luar-poente. Do barco lunar, salto para terra, seguida dos beijos do estrangeiro que um dia se aninhará em mim; eu sinto-o, exatamente durante o período que suspende qualquer separação, imediatamente depois de surgir aquele ramo de bétulas tão frágeis quanto os meus pulsos, quais talos frescos que ele tanto suga e parte. O tempo, o tempo reunido fora devorador. Ainda assim hoje o estrangeiro lê ponto por ponto o decifrar da fórmula e enfim, tu ao meu lado.

 

Voltei ao amor esse das limitações e das não eternas eternidades à proa e ao vento de todos os navios expostos às setas das luzes mais brancas e enfim se guiam.

 

E regresso à cidade e aos campos e às gentes e às estátuas e aos rios e às arvores e às sombras e a Hiroxima donde se levantam sementes de outros mitos que conheço de me questionarem o não-sentido do conjunto.

 

Bem sei que o jogo trilha intersecções que filtro algum detém, avultando-se além da morte.

 

Olho o poema e de novo lhe imploro que não me dê uma luz tão minha se acaso ela opaca já me enganou mais do que uma vez. Se assim for, emaranho-me num ponto de cruz, e por entre ele, insisto no rumo ao conhecer, mesmo que em paradoxo se explique e se povoe lá onde se acoita em mim indecidível, leve, funesto e infinito, o projeto do meu músculo-coração, tendo ele força para me afastar do que suprime a morte da ideia, ou o palácio, afinal, não tivesse sido a juventude do tempo, distante ainda da solidão, ignorante dos deuses vencidos, das horas iniciais e limpas,

 

da hora em que iniciei o meu longo exílio.

 

 

* “Speaking Through Walls" exposição na Tyburn Gallery em Londres.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

A cidade em rede.

 

‘O que me fascina é precisamente encontrar as novas formas do urbano’ , Nuno Portas (entrevista O Desafio Urbano, por Maria Leonor Nunes, maio 2000) 

 

'Octave: Alors, chez ton mec?
Louise: Pas la peine. C'est tout neuf.
Octave: Ça doit être terrifiant d'ennui, non?
Louise: Moins que je ne pensais. Viens nous voir un jour.
Octave: La banlieue me déprime. Je ne comprends pas comment tu as pu aller t'enterrer lá-bas.'
Les Nuits de la Pleine Lune, Eric Rohmer, 1984

 

No filme ´Noites de Lua Cheia' (Rohmer, 1984), Louise está dividida entre duas vidas, duas casas e duas cidades - a cidade nova e a cidade consolidada. Essa realidade é-nos contemporânea. O conceito de cidade já não se limita à cidade consolidada e muito menos à cidade histórica. A cidade não é uma só e não se define só no singular. A cidade de hoje é um conjunto de várias cidades que pode e deve funcionar em rede. O centro e a periferia devem completar-se, devem funcionar em constante continuidade. Uma cidade caracteriza-se pelos seus movimentos, pelos seus eixos de comunicação. Deve ser, em simultâneo, agregadora e aberta.

 

As cidades novas, que cresceram nos limites das grandes cidades consolidadas, têm mais valias - a boa acessibilidade, a abertura de espaço, o adequado desenho do espaço público e o incentivo à criação de novas centralidades (que promovam a polifuncionalidade), muito pode contribuir para tal. O aligeiramento da densidade construída dos centros históricos - que permite a introdução de mais espaço público - só poderá ser possível se forem abertos vasos de comunicação eficazes com as cidades que existem à volta. 

 

'É a tal cidade entre as cidades, a que chamo ordinária, até porque é maioritária, que me interessa. (...) O que tenho procurado saber é qual o tipo de traçado de espaço público que pode ser posto de pé, de modo a atravessar e dar uma identidade a essa cidade ordinária', Nuno Portas, 2000

 

Nuno Portas em entrevista ao Jornal de Letras (maio 2000) esclarece que o planeamento urbano é, fundamentalmente o que já era no séc. XVI, fazer bem as ruas, isto é desenhar e projetar bem o espaço público. São essas ruas que determinam a disposição dos edifícios - e não o contrário (os edifícios só em si, não definem cidade). Para Portas, a legibilidade de uma cidade é a legibilidade dos espaços que ficam entre - e quando a cidade é labiríntica deixa de estar definida e deixa de ter referências. E por isso é muito importante, esta noção do espaço público (e na constituição de estruturas que permanecem no tempo), em relação à reestruturação de áreas consideradas difíceis e problemáticas e que se constituíram e cresceram junto das grandes cidades consolidadas. A reestruturação de um território faz-se sempre pelo espaço vazio, pelo espaço que fica entre - de modo a criar e a dar continuidade a ruas que nunca existiram. O planeamento urbano que privilegia o espaço público demora tempo a consolidar-se e a preparação para a expansão é muito importante para que se possa constituir uma rede de cidades em constante comunicação.

 

'Arrasar tudo para construir outros edifícios é criar mais problemas do que aqueles que se resolvem. Nos anos 60, tínhamos mesmo um slogan provocatório: Há soluções que se transformam em problemas e problemas que se podem transformar em soluções.', Nuno Portas, 2000

 

Ana Ruepp