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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - III

 

Minha Princesa de mim:

 

    Entre os menus plaisirs que recordo no meu Éloge de la Jouissance, está este meu gosto de convívio, certo flirt com as palavras. Um namoro simultaneamente innocent, malin e inattendu... Inesperado sempre, como as surpresas, novidades súbitas que nos encandeiam e encantam; marotos, espertos como regatos de Tormes e, como tais, sempre inocentes. São bem felizes os que percebem que há maldades sem malícia. "Partidinhas". Assim me acontece pensarsentir que os prazeres são inocentes até serem "explicados"... Outros nem precisam de explicação, e mesmo assim nem sempre há quem os entenda.

 

   Por fortuito e furtivo acaso (haverá pleonasmo maior?), caiu-me sob os olhos uma tradução que fiz, aqui há uns anos, de um soneto de Petrarca:

 

 Zephiro torna, e´l bel tempo rimena, / e i fiori et l´erbe, sua dolce famiglia, / Et garrir Progne et  pianger Philomena, / Et primavera candida et vermiglia.

 

   Traduzi então esta primeira quadra assim: " Zéfiro volta e traz-nos brisa amena, / Tua família de verdura e flores! / Ria-se Eros e chore Filomena, / A Primavera é vermelha de amores!" Hoje, logo à primeira, surgiu-me melhor assim:

 

   Zéfiro volta e traz-nos brisa amena, / Tua família de verdura e flores! / Ria-se eros e chore Filomena, / a Primavera enrubesce de amores!

 

   E nestes dias de abertura da Primavera à nossa alegria, quanto gosto de a ver corar de amor! Na minha idade será como sol rubro do poente: mais fraco, mas incandescente... Lá diz o fado que Maria Teresa de Noronha tão bem cantava: a saudade é como a luz que o sol já morto deixou. Não há motivo de alarme, nem causa de tristeza. Apenas razão de outros sonhos, depois de desfrutado mais um menu plaisir.

 

   E, a talho desta minha foice de memórias pós-prandiais - hoje, não sei porquê, tão focadas no namoro das palavras - ocorre-me uma nota do professor Frederico Lourenço ao passo inicial da sua magnífica tradução do livro de Eclesiastes:   Vacuidade de vacuidades - disse o Eclesiastes -, Vacuidade de vacuidades: todas as coisas são vacuidade.

 

   Todos nos lembramos da tradução correntemente adotada: Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade. Frederico Lourenço observa que, em grego, mataiótês (palavra que designa a qualidade do que é vão e, por isso "em vão"), em hebraico hebel (ilusão, vazio, inutilidade) que a Jewish Study Bible (Oxford, 2014) traduz como futilidade, tenha talvez uma tradução mais eufónica, mas simultaneamente mais atenta ao sentido profundo da frase, em vazio dos vazios: tudo é vazio.

 

   Pessoalmente, consigo dar-me com todas essas versões. Afinal, cada um de nós, em dado momento, respira a seu tempo e modo qualquer a mesma palavra. E eis que tal eventualidade pode sempre ser enriquecedora das nossas visões, desde que a prudência, esse amor sagaz, nunca se esqueça de chamar em nosso auxílio o nosso próprio espírito crítico. Neste instante, em que a camoeca da tarde me está afagando a costela mórfica, sonolento murmuro tradução minha: Oco, tão vazio - diz o Eclesiastes -, tanto vazio só vaidade pode ser... E penso em quanta vacuidade ouvimos e a quanta resistimos para não deixar de ser... Afinal, a versão latina da Vulgata (Vanitas vanitatum, omnis vanitas!), que traduzimos em português por vaidade das vaidades, tudo é vaidade!, diz bem a vacuidade, "emptiness", vazio, de tanto de nós... Ecclesiastes é o que preside à assembleia (ecclesia), na própria epígrafe do livro identificado como "filho de David, rei de Israel, em Jerusalém". Mas parece que o texto terá sido redigido bem mais tarde, mesmo já depois de Cristo, tal nos lembrando que o verbo latino da mesma raiz de vanus (vão) e vanitas (vaidade) é vano, vanas, vanare (minto, mentes, mentir).

 

   A partir daqui, talvez possamos rever, por outra perspetiva, a ideia de que o livro do Eclesiastes é obra pessvbimista, no sentido de dissuasora de qualquer esforço humano, já que tudo é vão, oco, vazio, frívolo, fútil, inconsistente, inútil, enganoso, pérfido, falso - todos estes termos sendo algumas das traduções oferecidas pelo Diccionário LATIM-PORTUGUEZ, Etymológico, Prosódico  e Orthográfico, editado como "propaganda de instrução para Portuguezes e Brazileiros", em 1922, pela Livraria Francisco Alves (Rio de Janeiro) e pelas Livrarias Aillaud e Bertrand (Paris-Lisboa). Coisa fina, democrática e progressista, como se pode ver...

 

   Ao fim e ao cabo, o Senhor Eclesiastes apenas terá querido, desejado ou pretendido prevenir-nos contra os enganos possíveis das nossas próprias ilusões. De como as palavras nos ensinam muito mais do que soem dizer... Namorar com elas é como deixar sonhar o coração...   

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

REFERÊNCIA AO TEATRO LU.CA REMODELADO

 

Em 2017 assinalámos aqui a fase de recuperação que na altura se teria iniciado no Teatro Luís de Camões, hoje Teatro LU.CA, na Calçada da Ajuda em Lisboa, referindo com destaque o historial da pequena sala de espetáculos que, nesse aspeto, de certo modo iniciava todo o movimento, hoje bem pujante na relatividade, nos novos Teatros. Com a ressalva do historial deste que vem de finais do século XIX, inaugurado que foi em 10 de junho de 1880, com a peça de Casimiro de Abreu, “Camões e o Jau”, no quadro das comemorações do terceiro centenário da morte do poeta. 

 

A iniciativa ficou a dever-se a um comerciante de nome João Açúcar. Em 1899 sediou o chamado Belém Clube. E tal como escrevemos, a sala, não obstante a limitação de espaços, nesse aspeto aliás notavelmente percursora, manteve a capacidade arquitetónica e de exploração de espetáculo social da época: plateia, frisas, camarotes, tribuna, mas tudo adequado à dimensão do que hoje se denomina teatro de bolso.

 

 Em qualquer caso, o Teatro é adquirido em 1967 pela Câmara Municipal de Lisboa, mas esteve mais ou menos fechado durante anos, até que em 2015 se iniciam obras e em 2018 é reinaugurado com a designação bem atual de Teatro LU.CA, paráfrase do nome original, agora numa vocação de teatro infanto-juvenil.

 

E a reabilitação arquitetónica é marcada por uma recuperação modernizante de estruturas originais, entretanto prejudicadas por sucessivas adaptações. Essa reabilitação, orientada pelos arquitetos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, concilia o estilo oitocentista original sobrevivente com uma modernização da exploração do espetáculo, sobretudo, insista-se, vocacionado para o teatro infantojuvenil. E talvez a mudança nesse aspeto mais relevante será a abolição das portas dos camarotes, o que torna bem mais acessível o acesso, bem diferente da tradição oitocentista.

 

E de facto, o Teatro LU.CA está diferente do Teatro Luís de Camões, mas nem por isso deixa de manter a tradição arquitetónica de espetáculo. Ao contrário de tantas e tantas salas que, por esse país fora, foram desaparecendo!

 

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

26. DO DIREITO À HONRA E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO (I)
ENQUADRAMENTO GERAL

 

A Constituição da República Portuguesa (CRP) não faz prevalecer o direito à honra sobre o direito à liberdade de expressão e de informação, nem este sobre aquele, não solucionando os potenciais conflitos que surjam entre ambos.

 

Sucede que o exercício da liberdade de expressão e do direito de informação é potencialmente conflituante com o direito ao bom nome, à honra e à consideração e reputação de outrem.   

 

Como resolver esse conflito?   

 

Durante décadas, a jurisprudência dos nossos tribunais abordou a questão na perspetiva do direito à honra e suas ressalvas, defendendo como regra a prevalência do direito à honra, enquanto direito de personalidade, que apenas cederia em casos adequadamente justificados. 

 

Havendo conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão e de informação, esta deveria ceder àquela por lhe ser inferior, uma vez que a defesa da honra se situa num patamar superior dos direitos de personalidade sendo, por isso, hierarquicamente superior à liberdade de expressão e de informação. 

 

Paulatinamente, o tradicional princípio de “o respeitinho é muito bonito”, começou a ser questionado e a ser tido como inibidor do exercício público do contraditório e do debate público democrático num Estado de Direito, por confronto com mentalidades fechadas, paternalistas ou paroquiais associadas à segurança típica de sociedades autoritárias.     

 

Nessa transição e mudança teve e tem tido papel preponderante a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), partindo da tutela da liberdade de expressão, enquanto pilar fundamental de um Estado democrático e condição do seu progresso e do desenvolvimento da pessoa, e interpretando restritivamente o artigo 10.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). 

 

Tomando como referência este normativo (que não tutela, no geral, o direito à honra), o TEDH tem defendido, nomeadamente, o seguinte:   

 

- as ingerências à liberdade de expressão devem corresponder a uma necessidade social imperiosa para comprimir o interesse público ligado à liberdade de expressão e ser adequadamente proporcionais ao fim legítimo prosseguido;   

 

- a liberdade de expressão integra, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, exageram, ofendem ou distorcem a realidade, incluindo o poder recorrer-se a uma certa dose de exagero e mesmo de provocação;

 

- todas as figuras públicas e aqueles que desempenham funções de relevo, pela sua exposição, pela discutibilidade das ideias que professam, pelo controle ou escrutínio a que devem estar sujeitos, devem ser mais tolerantes a críticas, razão pela qual, em simultâneo, deve ser admissível um maior grau de intensidade destas.

 

Como a CEDH, por força dos artigos 8.º e 16.º, n.º 1 da CRP, se situa num plano superior às normas ordinárias do direito interno nacional, a resolução do conflito entre o  direito à honra (ao bom nome, à consideração e reputação de outrem) tem de ser feita em conjugação com o art.º 10.º, n.º 2 da CEDH e da interpretação que dele vem fazendo o TEDH, o que iremos exemplificar.  

 

26.03.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

O CÉLEBRE CASO DA NÃO PRODUÇÃO DE PORCOS…
28 de março de 2019

 

O António Alçada Baptista era um contador de histórias inesgotável. Estar-se com ele era sempre um deleite, uma vez que se passava sempre um tempo fantástico… E gostava muito de contar o que aqui vou recordar, e que é a ilustração suprema do analfabetismo da tecnocracia. Millor Fernandes dizia, aliás, que «a economia compreende toda a atividade do mundo. Mas nenhuma atividade do mundo compreende a economia». E o António dizia por outras palavras isto mesmo.

 

Por isso, recordo o célebre caso da não criação de porcos. Tudo partia da existência de um mirífico subsídio por cabeça para a não criação de porcos. Quantos desses apoios não conhecemos nós, em várias circunstâncias e por múltiplas razões? A história tinha a ver com o requerimento feito por um pobre agricultor a um distante Ministro. Basta ler a parte final para entender tudo. Oiçamos. «Excelência. Estes porcos que não criaremos teriam comido 10 mil sacas de trigo. Ora, assegurando-nos que o governo indemnizará igualmente os agricultores que não cultivem o trigo.

 

Nesta ordem de ideias, poderemos esperar que nos deem qualquer coisa pelas sacas de trigo que não serão cultivadas para os porcos que não criaremos. Ficar-vos-emos extraordinariamente reconhecidos se nos responder o mais rapidamente possível, porquanto julgamos que esta época do ano será a melhor para a não criação de porcos e, por isso, gostaríamos de começar quanto antes. Queira Vossa Excelência, Senhor Ministro, receber os protestos da maior consideração. P.S. – Excelência. Não obstante o exposto poderemos engordar 10 ou 12 porcos só para nós, sem que isso venha a perturbar a nossa não-criação de porcos? Queremos assegurar que esses animais não entrarão no mercado e não significam mais do que a maneira de termos um pouco de toucinho e presunto para o inverno». O exemplo é extraordinário. Rio-me comigo mesmo quando lembro o gozo sentido pelo António a contar este episódio, e todos nós a ver um funcionariozinho de pala e mangas de alpaca e receber a missiva e a tentar responder-lhe com toda compostura …

 

E corri à estante para reler o Alexandre O’Neill, amigo do peito do António, que insistiu sempre que se davam bem porque nunca se levaram demasiado a sério…

 

 

«Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...  »

 

Alexandre O’Neill, Feira Cabisbaixa.

 

Agostinho de Morais

CARTA A CAMILO

 

Cartas Derradeiras de Camilo Maria de Sarolea - II
(publicado aqui)

 

Amigo Camilo,

 

Obrigada! Fez-me tão bem ler a sua carta de hoje! Precisava muito que hoje um canivete em mãos e pensares hábeis esculpisse em palavras algumas das peças do meu xadrez, trazendo a dialética certeira à essência de um jogo de desiguais virtudes.

 

outra consciência não posso ter do que a da minha própria pequenez.

 

Esta uma das obstinações mais claras que nos pode acudir e acudir em lances tranquilos e de cheque mate, contudo. E chega um doce pólen de partida que entrego às brisas antes mesmo do tempo em que julgava ir sentir mestria preparada à partida, àquela partida que teria idade conformada.

 

A morte é silêncio e é lembrança, como a vida antes de si.

 

Sim, é assim que vejo a vida contida no ovo que a contém. Um ovo no chão que o faz sofrer quebraduras múltiplas. Vejo a vida, por vezes, como criatura mais inconformada nas formas do que nas inações e ainda assim a morte da vida oferece-lhe lembrança e silêncio, num ramo de ternos sorrires como se merecêssemos por termos sido aves sempre atentas ao mundo aberto.

 

Talvez por ser humano, o único ser capaz de viver e sobreviver fora da sua circunstância. Creio que a razão pela qual tanto e tantas vezes nos revoltamos é sermos paradoxo, o nosso próprio paradoxo.

 

Penso que viver fora da minha circunstância é deixar-me surdir para o maravilhamento da vida e é também, com ou sem dor, antecipar a surpresa e que isto tenha muito de ingénuo e muito de bisonho, diria, de modo a que se alguma coisa entendi do princípio dos tempos, tenha sido o não estranhar o paradoxo que sou numa mesmidade, em solidão. Depois, resta-me dar a mão à outra dentro de mim e lá vou acedendo à presença.

 

Afinal, "surfando" ondas hodiernas, não fará sentido perguntar se a fé é uma questão genética?

 

Sempre poderão surgir poderes de interpretação insuspeitados. Novas formas de navegar nos enigmas ao encontro do Espírito-cerne, aquele único que é uma incitação ao prosseguir no virar das folhas do papel-bíblia, afinal ele mesmo aventura de vida. O périplo, Camilo, na parte que hoje li do seu texto, tem o segredo de não nos deixarmos captados como presas sem que desse facto tenhamos consciência. Então pois que consigamos “surfar! já que tudo se vai reduzir a caminho já feito, a pormenores, a eternidades e coisas fugazes e afogadas em bips elétrónicos. Todavia a genética é viagem também; é embrião que não carece de sextante para se explicar de onde e para onde.

 

Camilo, que as suas palavras que cito em itálico me surgiram mais como lianas que muito sustêm os tombares, aqui, e ora ali, surdos e acantonados para que a maioria os não veja. E afinal pouco mais sei que na floresta a voz humana é tão só murmúrio. Os segredos dão a volta a si próprios de onde todas as transcendências parecem provir.

 

Devemos correr o risco de ter medo, tal como se arrisca a vida, eis que em tal risco se reconhece a coragem. Nicolas Diat não deixa de citar este dito

 

Gostava que não se tivesse medo de perder a consistência, a quase identidade que também escorre na berma dos dias que por último se suportam. Todavia, não creio que possamos ir mais longe do que um tecer conjunto, entre linha chamada de coragem e linha inclemente cor de chumbo.

 

Enfim, resta-nos sempre a grande e compacta toalha do mar. Essa que acompanha o seu passeio em Cascais e que o fita. Mas saiba que também já vi uma lua mutilada, um traço de morte, fiel, afinal, aos vícios da vida, um pescoço altivo, uma demora na possessão e tudo ainda assim me tem ajudado à compreensão, alertando-me o quanto esta não tem fim.

 

Sua amiga
Teresa

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Phyllida Barlow e o ‘Objeto para uma poltrona’.

 

The urgency to get something done is very important in my work. I make work very quickly. I then need ages to understand what I’ve done, and that is an odd paradox (...) You’ve put everything into the work, and you look at the thing and you haven’t got a clue what it is. You’re left with this very raw thing.’, Phyllida Barlow

 

Ao sermos confrontados diariamente com o desejo de ser em plenitude, de ser outro, de viver outra vida, o ‘Objeto para uma poltrona’ de Phyllida Barlow (1994) introduz uma outra realidade, uma nova possibilidade no interior de uma privacidade. É um corpo inesperado que se ergue. A estranheza que o objeto provoca elimina qualquer tipo de idealização e obriga-nos a aterrar na realidade daquela sala, daquele espaço específico.

 

A introdução do objeto, naquela intimidade, tenta encontrar o equilíbrio entre o belo e o obscuro, entre o confortável e o bruto, entre o agradável e o cru, o tudo e o nada.

 

A escultora Phyllida Barlow (1944), na sua obra, revela sempre uma curiosidade em relação a qualidades abstratas como o tempo, o peso, o equilíbrio, o ritmo, o colapso e a postura flexível. No fundo, interessa-se por tudo o que se relaciona com o estado (do real e do agora) em que as coisas se apresentam num determinado momento.

 

Neste caso, o ‘Objeto para uma poltrona’ está dobrado, apertado, constrangido, atado, colado, quase a rebentar e em equilíbrio instável. É como que um teste de duração, de resistência e de persistência. Aqui procura-se talvez por uma precaridade, por uma nudez, por uma dimensão submersa, espessa, escondida. E é esse não saber, não entender que se torna verdade e que abre a possibilidade para todos os saberes.

 

‘I like that sense of my own physicality being in competition with something that has no rational need to be in the world at all.’, Phyllida Barlow

 

Barlow manipula os materiais mais acessíveis e primários (madeira, cartão, gesso, cimento, rede metálica, tela e tinta) e é nessa ação e nessa imposição física do fazer, e que provoca um determinado comportamento, que os objetos vão adquirindo conteúdo. Muito mais do que um produto finalizado e visual, Phyllida Barlow procura por uma ação física, real, dinâmica e interminável.

 

And when I say I don’t know what the subject is, I really don’t know. Therefore there is an ongoing chase to find that. I sort of know what the content is. And I can know what the form is (...) But what the subject within that is, I don’t know.’, Phyllida Barlow

 

 

Ana Ruepp

UMA QUARESMA PARA O MUNDO

 

1. Uma ilustre Catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto entrou em contacto comigo, porque queria saber algo sobre a relação entre o jejum e a espiritualidade.

 

Lembrei-me então de que estamos na Quaresma. Ela é mais para os católicos, que durante 40 dias se preparam, pelo menos, deveriam fazê-lo, para a festa que constitui o centro do cristianismo, a Páscoa.  De qualquer forma, animam-na ou devem animá-la valores que são universais, de tal modo que poderíamos fazer a pergunta: Como seria o mundo, se tivesse anualmente a sua Quaresma, tendo na sua base esses valores: jejum, abstinência, oração, silêncio, esmola, sacrifício, conversão?

 

2. O que se segue é uma breve reflexão que tenta responder a esta pergunta. Começando pela urgência de um retiro. De facto, a Quaresma refere-se aos 40 anos que os judeus passaram no deserto a caminho da Terra Prometida e aos 40 dias que Jesus esteve no deserto, em retiro, preparando-se para a sua vida pública, na qual o centro seria a proclamação, por palavras e obras, do Evangelho, a mensagem da salvação de Deus para todos os homens e mulheres.

 

Aí está: retirar-se para meditar e reflectir. O que mais falta faz hoje. Quem se retira para fora do barulho e da confusão do mundo, para meditar e reflectir, ir mais fundo e mais longe, ao essencial? O sentido dos 40 anos e dos 40 dias: a libertação da opressão e da escravidão, a caminho da liberdade e, consequentemente, da dignidade. Para a felicidade, evidentemente.

 

Neste contexto, os valores da Quaresma.

 

2.1. Aí está o jejum. Diz o Evangelho que Jesus jejuou durante 40 dias e 40 noites e teve fome. O diabo — é uma maneira de figurar a tentação — tentou-o. Jesus respondeu-lhe: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que vem de Deus”.

 

Jejum e espiritualidade? Quem é que, andando em permanentes comezainas e bebedeiras, se vai sentar para meditar e continuar a escrever ou de outro modo qualquer realizar uma obra, entregar-se às coisas do espírito? São Paulo preveniu, na Carta aos Filipenses, contra aqueles cujo “fim é a perdição, o seu Deus é o ventre e gloriam-se da sua vergonha”. E alerta contra os beberrões e a sua degradação.

 

Mas o jejum não tem que ver apenas com a temperança no comer e no beber. Tem de haver jejum de tanta vaidade ridícula, jejum de tanta insensatez falaz, de tanta cobardia envergonhada, de tanta voracidade egoísta... Ao jejum está ligada a abstinência, que não é só da carne. É preciso abster-se da injustiça, das mentiras, dos interesses partidários e pessoais colocados acima dos interesses do bem comum, abster-se das medidas e dos programas político-partidários eleitoralistas com promessas que se sabe não vão ser cumpridas, de programas televisivos sem sentido e deletérios que degradam nomeadamente a mulher. E aí está uma das contradições brutais do nosso tempo, por causa das audiências e, em última análise, da idolatrização do deus Dinheiro: por um lado, e bem, há toda uma campanha para defender a mulher, mas, por outro lado, ela é humilhada concretamente nesses programas...

 

 Abster-se da corrupção... O Papa Francisco acaba de pedir uma “política sã”, alertando contra a corrupção: “A corrupção degrada a dignidade do indivíduo e destrói todos os ideais bons e belos. Com a ânsia de lucros rápidos e fáceis, na realidade empobrece a todos, minando a confiança, a transparência e a fiabilidade de todo o sistema”. A receita: “transparência e honestidade” para reconstruir “a relação de confiança entre o cidadão e as instituições, cuja dissolução é uma das manifestações mais sérias da crise da democracia.”

 

Hoje, sabemos que o jejum e a abstinência contribuem em grande medida para a saúde e até para a beleza. Quanto à espiritualidade, não há dúvida. Significativamente, a sabedoria de todas as religiões esteve sempre aberta ao jejum sadio.

 

2.2. A oração. Para colocar o ser humano em contacto com o Mistério último da realidade e da vida. Dialogar com o mais fundo da Vida. Estar ligado ao Fundamento, à Fonte, ao Sentido último. Para se não perder na dispersão, completamente desorientado, desorientada, sem referências, perigo maior do nosso tempo.

 

2.3. Mas a oração e o que é essencial exigem o salto para fora do barulho ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num tempo em que se é invadido e esmagado pelo tsunami das informações, entrando no mundo caótico da dispersão e da fragmentação, da “agitação paralisante e da paralisia agitante”, segundo a expressão do famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, é urgente parar, fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim, ouvir o silêncio. No meio da vertigem dos vendavais de palavras em que vivemos, que nos atordoam e paralisam, ouvir outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio. Só depois de ouvir o silêncio será possível falar, falar com sentido e palavras novas, seminais e iluminantes, criadoras. De verdade. Onde se acendem as palavras novas, seminais, iluminadas e iluminantes, criadoras, e a Poesia, senão no silêncio, talvez melhor, na Palavra originária que fala no silêncio? Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência, que sussurra ou grita no silêncio. Quem a ouve? Ouvir o quê? Ouvir música, a grande música, aquela que diz o indizível e nos transporta lá, lá, ao donde somos e para onde verdadeiramente queremos ir: a nossa morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria. Sócrates, o mártir da Filosofia, que só sabia que não sabia, consagrou a vida a confrontar a retórica sofística com a arrogância da ignorância e a urgência da busca da verdade. Falava, mas só depois de ouvir o seu daímon, a voz do divino e da consciência.

 

O grande filósofo A. Comte-Sponville é partidário de um “ateísmo místico”, no quadro de “uma espiritualidade sem Deus”. Constituinte dessa espiritualidade é precisamente o silêncio. “Silêncio do mar. Silêncio do vento. Silêncio do sábio, mesmo quando fala. Basta calar-se, ou, melhor, fazer silêncio em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é outra coisa), para que só haja verdade, que todo o discurso supõe, verdade que os contém a todos e que nenhum contém. Verdade do silêncio: silêncio da verdade.”

 

O problema está em que já Pascal, nos Pensamentos, se queixava: “Toda a desgraça dos homens provém de uma só coisa, que é não saber permanecer  em repouso num quarto.” Hoje é ainda pior do que no tempo de Pascal. Ninguém suporta o silêncio. Por isso, é preciso constantemente pedir com Sophia de Mello Breyner: “Deixai-me com as coisas/Fundadas no silêncio.”

 

2.4. Outra característica da Quaresma era a esmola.

 

Cá está. Quem fizer silêncio para ouvir o silêncio, também ouvirá os gemidos dos pobres, os gritos dos explorados, dos abandonados, dos que não podem falar, das vítimas das injustiças. E perceberá que se não pode dar como esmola o que pertence fazer como justiça.

 

E volta-se  à  corrupção e ao roubo e às injustiças estruturais e aos Bancos que abriram falência e que mataram vidas inteiras de gente que trabalhou e que se sacrificou e que poupou o que pôde e o que não podia e que, no fim, ficou espoliada do pouco que tinha... E, tirando o facto de os contribuintes continuarem a pagar até essas falências e roubos, mesmo que se minta dizendo que não custará aos contribuintes um cêntimo (afinal, quem é o Estado?), não acontece nada. Alguém mete a mão na consciência? Não. Porque já não há consciência... Onde estão os valores da honra e da dignidade?

 

E ainda perguntam para que poderia servir uma Quaresma para o mundo, incluindo para políticos e banqueiros?

 

2.5. O sacrifício. Digo sempre: o sacrifício pelo sacrifício não vale nada. Mas é preciso, a seguir, gritar bem alto, num tempo em que parece que só resta o hedonismo, o prazer imediato, confundindo a felicidade com a soma de prazeres: Nada de grande, de valioso, de humanamente digno se consegue sem sacrifício. Quem quiser realizar uma obra valiosa, viver um grande amor, realizar-se a si mesmo na dignidade livre e na liberdade com dignidade tem de saber que isso não é possível sem sacrifício. Aliás a palavra sacrifício di-lo no seu étimo: sacrum facere: fazer algo sagrado.

 

3. O que seria o mundo depois de uma Quaresma autêntica? O nosso mundo, o mundo de cada uma e de cada um? Dar-se-ia uma conversão, palavra-chave da Quaresma, que significa mudança de vida, com um novo horizonte de compreensão da existência, do mundo e da transcendência.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 24 MAR 2019

A VOZ DE CARY GRANT

 

Entra pelos ouvidos. Mas quando não entra por um e sai pelo outro, para onde é que vai a voz de quem fala connosco?

 

A voz de Cary Grant! Quero é falar da voz de Cary Grant. Um dia, a secretária virou-se para ele, telefone na mão, e murmurou: “Está aqui o Presidente Kennedy a querer falar consigo…” O actor, que por acaso era inglês e se chamava Archie, foi ao telefone: “Sr. Presidente, em que posso ser útil?” (Toda a gente queria ser útil ao Presidente Kennedy.) John estava na Sala Oval, com o irmão Bobby ao lado, e contou-lhe que ambos queriam falar com ele. “Pois não, e como posso ajudá-los?”, insistiu o actor de Hitchcock. Encabulado, o Presidente balbuciou: “Bom, na verdade nós ligámos-lhe por uma razão simples. Queríamos ouvir a sua voz!” Eram dois miúdos, sentados ao colo duma nação, a quererem realizar um sonho: ouvir a voz de Cary Grant.

 

Como o melhor café, a voz dele era uma mistura excepcional de arábica e robusta. Um sotaque mais elegante do que petulante, uma pronúncia muito acentuada da primeira sílaba de cada palavra, a nonchalance de uma hesitação, o timbre de tenor, um pó de ligeira ironia a aromatizar, picante, o fim de frase.

 

A voz de Cary Grant levava os Kennedy ao céu. A de Kathleen Turner levou William Hurt para a cama.

 

Vamos admitir que a voz de Grant se instala nas limpas assoalhadas do cérebro a que chamamos lobos temporais. Entra e delicia, primeiro, o córtex auditivo primário dos Kennedy, depois a área auditiva secundária, a deles ou a da princesa Grace Kelly, em “To Catch a Thief”.

 

As frequências baixas da voz de Kathleen Turner não param aí. Décadas antes, já Lauren Bacall ensaiara rouquidão semelhante. Para resistir, Bogart, essa antítese de Ulisses, fugia-lhe de iate para o alto mar. Em “Body Heat”, Hurt não tem fuga: a voz de Turner atravessa-lhe o córtex e vem por ali abaixo, com tal fragor muscular que o jovem Hurt rebentaria portas e janelas – e rebenta! – para colher a ressonância profunda que emana da boca dela.

 

A voz de Grant pára na sala civilizada do cérebro, a de Turner já vimos onde. Outras vozes infectam a alma, como o verme de Blake adoece o botão de rosa.

 

As vozes de certos padres ou mestres são melífluas, carregadas de persuasão e algemas. Dão o ouvinte como certo e enfraquecem-no, cortando-lhe o cabelo como Dalila a Sansão. Chatos como a potassa. Quando ouvirem vozes dessas, lembrem-se do grito do catolícissimo Hitchcock.

 

Descendo uma sinuosa colina suíça, ao ver um rapazinho a caminhar ao lado de um padre – a protectora mão deste por cima do jovem ombro, uma neblina de conselhos a esvoaçar já sobre a fresca cabeça –, Hitchcock abriu a janela do carro e gritou: “Run for your life, boy!” Com quem diz: Salva esse coiro, rapaz. Há vozes piores do que grilhetas.

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 25 a 31 de março de 2019

 

 

«Retrotopia» de Zygmunt Bauman (Premier Parallèle, 2019) acaba de sair em Paris e constitui como que um testamento do grande pensador que lançou a noção de “sociedade líquida”, para significar o mundo contemporâneo instável, atomizado e imediatista…

 

 

ELOS FRÁGEIS E PASSAGEIROS
Ao assistirmos ao enfraquecimento dos elos sociais, da coesão social e da regulação, presenciamos uma guerra anónima de todos contra todos, na qual prevalece o medo, a desconfiança e a indiferença. Se fomos formados como indivíduos competitivos, na sociedade, na escola, no trabalho, partimos do pressuposto que podemos ser autossuficientes e somos levados, mais tarde ou mais cedo, a perceber a nossa impotência perante a complexidade dos desafios que nos são lançados. Estamos perante a hipervalorização da singularidade e a tentação de negarmos a relação com os outros e com a diferença. E Bauman, nesta obra derradeira, lembra que “o que ainda designamos como ‘progresso’, por inércia, evoca emoções que estão nos antípodas das que Kant, que inventou o conceito, considerava”. A maior parte das vezes, falar de progresso significa o medo de uma catástrofe iminente. E o pensador recorda o célebre texto de Walter Benjamin sobre o “Angelus Novus” de Paul Klee: “A face do Anjo da História está voltada para o passado. Onde nós percebíamos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única que continua empilhando destroços e atirando-os para diante dos seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos, e tornar inteiro o que foi esmagado. Mas uma tempestade está soprando do paraíso; o anjo ficou preso em suas asas com tal violência que não pode mais fechá-las. Essa tempestade empurra-o irresistivelmente para o futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto os escombros crescem, diante dele, rumo ao céu. A tempestade é o que chamamos progresso.” E pergunta-se: quantas ocupações e empregos irão desaparecer, como iremos sobreviver? Até que ponto os robôs não ocuparão os espaços da humanidade? Enquanto as utopias, como a de Thomas Morus, procuravam no futuro uma sociedade melhor, uma retrotopia busca o bem-estar individual centrado numa visão retrospetiva. E o certo é que as sociedades de hoje tendem a organizar-se, em primeiro lugar, contra o que as ameaça, designadamente os migrantes e os imigrados – para defender a sua política e a sua cultura local, como tem salientado Michael Walzer. E assim nasce a ideia perigosa de construir um pequeno Estado, limpo de todos os estrangeiros e todas as diferenças, baseado numa utopia às avessas, num passado de pureza, que nunca existiu, supostamente protegido de qualquer importuna proximidade de quem chega e é diferente. Estamos perante o efeito de uma desigualdade desregulada, que se agrava. Quem se sente ameaçado procura reforçar o seu conforto. E há um certo regresso ao tribalismo, que leva ao paradoxo dos muros que se elevam, enquanto as fronteiras tendem a desaparecer. A proteção e a compaixão, mais do que o ódio e a divisão, reportam-se aos mais próximos, enquanto os outros devem ficar à distância. A proteção social deveria assim ser reservada aos nossos, mais do que aos outros. No fundo, uma visão protecionista parece prevalecer - por exemplo, quem chega de fora não tem lugar, ocupa não-lugares.

 

UM LUGAR “SEM LUGAR”…
“O mundo que é o nosso não lhes reserva qualquer lugar, mas eles ocupam provisoriamente o coração dos nossos bairros”. Encontrar-se perante essas pessoas “sem-lugar” significa tomar contacto direto com realidades inesperadas, de efeitos secundários indesejáveis. Um lugar que era conhecido, torna-se inesperadamente desconhecido, e daí a tentação de fechar as fronteiras desse território antigo, para recuperar a situação anteriormente conhecida, ignorando que são as novas circunstâncias responsáveis pela situação agora vivida. Trata-se de procurar viver a ilusão de manter distante uma realidade que existe e que não podemos ignorar. Entretanto as desigualdades agravam-se. Na viragem para o atual século, o valor acrescentado gerado pelo crescimento económico reverteu basicamente para os mais ricos, enquanto a restante população viu a riqueza escapar-se-lhe – o que se agravou com a crise financeira de 2007-2008. Os números são esclarecedores e preocupantes: a metade da população mundial com menos rendimentos (3,5 mil milhões de pessoas) detém apenas 1% da riqueza mundial total, ou seja, exatamente o mesmo que é detido pelas 85 pessoas mais ricas do planeta… Z. Bauman fala-nos de dois tipos de injustiças sentidas pelas populações: as habituais, há muito consideradas e de algum modo aceites; e as novas, cuja proporção aumentou significativamente, as quais sendo porventura de injustiça inferior às outras, assumem um carácter mais chocante pela novidade, podendo dar lugar à revolta… De facto, na Idade Média não foram as injustiças mais chocantes, como o não pagamento de remuneração, que levaram à rebelião dos servos, mas o facto de os terra-tenentes terem exigido mais do que anteriormente. Assim, o momento presente, suscita preocupações e perplexidades que poderão gerar tensões sociais com consequências imprevisíveis.

 

COMO ENCARAR A REALIDADE PRESENTE?
O autor de “Retrotopia” refere, assim, uma consciência cosmopolítica, que abre as portas à união e à cooperação. Em vez da procura de um inimigo ou da divisão entre “nós e eles”, o desafio do nosso tempo consiste em conceber, pela primeira vez na história da humanidade uma ideia que não se apoie na lógica da separação. Nós habitantes humanos da terra vivemos uma situação perfeitamente clara, na qual somos obrigados a optar entre duas alternativas – a cooperação à escala planetária ou as valas comuns… Como a sociedade líquida, a retrotopia não representa, porém, solução para o futuro. Olhem-se os problemas mais graves com que nos debatemos: a defesa do primado da lei; os fenómenos migratórios; a qualidade da democracia; a cultura da paz; o combate ao aquecimento global; a proteção do meio ambiente; o desenvolvimento sustentável; a cooperação contra a pobreza; a equidade intergeracional; a ciber-segurança; a evolução do mundo digital e a preservação da diversidade cultural – eis o que se impõe, em lugar de planos rígidos ou soluções baseadas na inércia, uma estratégia baseada, em instituições que favoreçam a representação, a participação e a mediação centradas numa cidadania livre, responsável e ativa. Trata-se, no fundo, de fortalecer os elos da sociedade, a coesão social e a regulação, a sustentabilidade e a justiça, superando a guerra anónima de todos contra todos, privilegiando o respeito mútuo, a confiança e a responsabilidade. Mais que “indivíduos competitivos” precisamos de cidadãos ativos, na sociedade, na escola, no trabalho, não autossuficientes, mas solidários e cooperativos, capazes de ligar o mérito e a justiça, a atenção e o cuidado, a experiência e o exemplo, a aprendizagem, o conhecimento e a sabedoria, a clareza e a complexidade. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - II

 

Minha Princesa de mim:

 

   Coisa nenhuma nos custa sempre equivalente esforço - e menos ainda o mesmo dom - neste tempo de vida. Todos somos afeitos a caprichos de idades, com seus modos e tempos, bem diferentes, de sonhos e sabedorias, quiçá anseios e saudades tão insinuantes...que até nos fazem tomar-nos então e assim por nós mesmos, como se estar fora de qualquer circunstância em cada momento fosse a nossa habitação.

 

   É difícil - será sempre um desafio a sermos nós e para além de nós - esta consciência do humano que vive no tempo e fora dele. Nunca me curei desta loucura. Já há quase vinte anos, lembro bem, enviei-te por sms (short message service), como hoje se diz na nossa cultura anglosaxofónica, uma mensagem escrita no meu telemóvel, enquanto passeava no paredão de Cascais, refletindo essa funda impressão de intemporalidade de mim, da minha vida, que tantas vezes se me apodera. Todavia, desde pequeno que sou um maníaco da pontualidade, uma espécie de controlador do tempo cronológico. Sempre tive uma consciência aguda da minha situação no espaço-tempo, como minha mensurabilidade. Simultaneamente, um qualquer íntimo de mim recusa-se à medida, só vive e se sente vivo na intemporalidade. As minhas angústias não são pertinentes ao ignoto, no sentido deste as tornar necessariamente aflitas, frustrantes ou até depressivas, antes serão paradoxalmente alegres, felizes como aberturas sobre espaços infinitos e tempos incomensuráveis, logo impensáveis por nós enquanto tais. Esta manhã, acordei recordado de notícias dum universo em expansão contínua, de galáxias com milhões de estrelas solares, tão imenso e infinito que dele outra consciência não posso ter do que a da minha própria pequenez. Contudo, não me assusto perante essa dimensão que ultrapassa o meu próprio entendimento e sua capacidade, mas contemplo-a e, como diria o Ungaretti, ilumino-me, alumio-me de imenso. E é tão profunda e serena a alegria que habita esta minha íntima casa, moradia que o sentimento de intemporalidade me edificou... Acredito, aliás, que tal sentimento de estar bem no tempo que me é dado - partilhando modos e crises da existência humana - por nos "sabermos" simultaneamente fora dele, não é privilégio meu, mas uma certeza moral intimamente deparada por miríades de humanos da minha mesma condição, na consciência de que pertencem, desde já, ao intemporal do espaço infinito.

 

   Nota bem, Princesa de mim, que não estou a argumentar: apenas meramente vou narrando uma experiência de vida interior. Talvez por ser humano, o único ser capaz de viver e sobreviver fora da sua circunstância. Creio que a razão pela qual tanto e tantas vezes nos revoltamos é sermos paradoxo, o nosso próprio paradoxo. Nenhum animal é ateu, planta tampouco, e mineral nem sequer pensassente. Só nós, humanos, o podemos ser, isto é, podemos negar Deus, talvez, precisamente, porque também o podemos anunciar, já que, geneticamente, recebemos a ideia e o anseio do divino, nome que damos à transcendência do infinito intemporal. Na verdade, se não tem medida, nem tempo nem espaço, como poderá caber na nossa "cabeça"?  Afinal, "surfando" ondas hodiernas, não fará sentido perguntar se a fé é uma questão genética? Mas poderá tal questão ser respondida cientificamente ou, como há milénios, apenas nos resta, pacientemente, aguardar uma visão apocalíptica? [É curioso, cabe nota-lo aqui, que apocalipse tem, para muitos, o significado de catástrofe final, quando todavia quer dizer uma última alegria: revelação, descoberta.

 

  Deixo-te a interrogação a pairar, mas proponho-te uma meditação sobre dois testemunhos que talvez saibas referir a essa questão: o de uma certa forma de religião, ou religiosidade, respigado do livro História do Ateísmo em Portugal (Guerra e Paz Editores, Lisboa, 2010), de Luís F. Rodrigues; e o de tempos da morte, retirado de Un temps pour mourir (Fayard, Paris, 2018) de Nicolas Diat:

 

   1.- O último grande momento de religiosidade nacional sucedeu em 2004, aquando da participação do país no campeonato europeu de futebol. Por estranho que pareça, foi aqui que desaguaram, de forma evidente, todos os tiques, toda a essência da identidade portuguesa na sua mais profunda espiritualidade: fizeram-se promessas, rogou-se aos céus, idolatraram-se futebolistas, juntaram-se comunidades (em Portugal e na diáspora), reuniram-se famílias. Portugal fundiu-se numa única entidade monista, bem patente na febre de bandeiras nacionais desfraldadas em cada edifício.

 

   É óbvio que o desempenho devocional não é suficiente para garantir resultados - como, infelizmente, para as ambições futebolísticas nacionais, não garantiu - no entanto, é importante que se perceba que a ausência de resultados em nada desmontou o processo agregador então gerado. Instalou-se na mente de todos os portugueses que algo se tinha conseguido: uma vitória moral, a união de todos os portugueses numa causa, momentos de êxtase até então nunca experimentados. Ora, tudo isto é, claramente religião. Interessa apenas o «estar lá», estar de corpo e alma num projeto que solicita, de cada um, envolvimento e empenho inquestionado (ou, quando questionado - por exemplo, o desempenho de um treinador ou jogador - isso em nada fere o princípio de devoção exigido para a «causa nacional».

 

   Este texto vale o que possa valer - não o avalio - cito-o por me parecer ilustrador de como qualquer sentimento de pura transcendência não consegue ter tradição na cultura portuguesa, onde tudo tem de caber nos limites do alcançável, seja este uma possibilidade de facto real, ou apenas compreensível ou imaginável, pelas capacidades da nossa inteligência ou só no contexto dos nossos onirismos. Nesta perspetiva, a "fé" religiosa é da mesma natureza da crença ou "fezada" em que me saia a sorte grande ou a seleção nacional seja campeã mundial de futebol. E tudo se passará na temporalidade atual das vidas, as nossas fantasias, pessoais e coletivas, podem ser irrealistas (ou cheias de wishfulthinking) mas só teriam realidade possível no tempo/espaço em que sempre as situamos.

 

   2.- O grande passo é a finalidade de qualquer vida monástica, ponto sobre o qual frei Filipe sempre insistia. «A morte é o momento que esperamos. Morremos como vivemos. Também há situações extraordinárias. Acompanhei três dos nossos irmãos que se revelaram santos no momento da morte».

 

   Frei Filipe ficava feliz e comovido ao falar-me dos monges desaparecidos que tinham contado na sua vida. À medida em que a narrativa avançava, ia-me parecendo um rosário de palavras correntes e sublimes.

 

   Em 2005, o irmão José Maria rendeu a alma aos oitenta e sete anos. Diabético e insulinodependente, despediu-se com hemorragias internas sucessivas. Suportava a doença sem nada mostrar do seu sofrimento. Um dia decidiu deixar de tomar analgésicos. «Eu arranjava muitas vezes tempo para conversar com ele. Tentava compreender a profundidade exata da sua dor. As respostas eram sempre as mesmas: "O corpo está morto, mas o espírito vive". Citava com frequência S. Paulo na epístola aos filipenses (3, 21): "Jesus voltará para transfigurar o nosso corpo de miséria e conformá-lo ao seu corpo glorioso".»

 

   A crueza das palavras de frei Filipe pode ser chocante. Ele não quer esconder seja o que for do inferno dos males físicos: «Por acaso descobri que o irmão José Maria tinha hemorragias. Ao lavá-lo, pensei que sofria de incontinência, mas o afluxo de sangue mostrou-me que o problema era mais grave. Percebi que tinha os dias contados. Nada mais podíamos fazer, além de recolher o sangue que regularmente se lhe escapava.»

 

   ... Certo dia, estava ele sozinho no quarto, disse-lhe frei Filipe: «Então, frei José Maria, vai para o céu?» A resposta, dita em voz gozada, foi esplêndida: «Claro que sim, e vai ser uma festa de arromba!» Frei José Maria estava mesmo a morrer e estava alegre. Três dias antes da sua morte, ainda confiou a frei Filipe: «Procurei viver o Evangelho».

 

   Já neste texto, em que a realidade atual do ser na sua própria circunstância surge inescapável e muito dolorosa, se descobre essa tal intimidade com o intemporal, de que te falava, Princesa de mim. Aqueles monges, mesmo moribundos, não fogem de nada, não fantasiam. Começam a viver plenamente na misteriosa intimidade que certo dia os cativou. Este relato, que te traduzi de Un temps pour mourir - derniers jours de la vie des moines, de Nicolas Diat, foi escrito na Abadia de Cister. O livro recolhe testemunhos de monges beneditinos, cistercienses, trapistas, e outros, como de eremitas do Mosteiro da Grande Cartuxa, a tal, creio eu, em que se filmou o Silêncio. O silêncio que, há quem diga, estava antes de todas as vozes e era Vida. Que virá depois e ainda, quiçá cobrindo-nos, qual noite da ode pessoana, com o seu manto franjado de infinito. Ao pensarsenti-lo assim, ocorre-me que ele é intemporal, memória sem fim. Como nesta meditação de François Cheng, o sino-francês da Académie Française de que tantas vezes já te falei, Princesa de mim (em Cinq méditations sur la mort, autrement dit sur la vie, Albin Michel, Paris 2013):

 

                                                Não te esqueças dos que estão no fundo do abismo,
                                                Privados de fogo, de candeia, de face consoladora,
                                                De mão que socorra... Não os esqueças,
                                                Pois que eles se lembram das luzes da infância,
                                                Dos brilhos da mocidade -  a vida em ecos
                                                Das fontes em rajadas do vento -, aonde irão eles
                                                Se os esqueceres, ó Deus da lembrança!

                                               

   A morte é silêncio e é lembrança, como a vida antes de si. Será arriscado pensar assim, mas como diz Bernanos, a dado passo dos seus Dialogues des Carmélites: Devemos correr o risco de ter medo, tal como se arrisca a vida, eis que em tal risco se reconhece a coragem. Nicolas Diat não deixa de citar este dito, em epígrafe do livro que talvez lhe tenha sido inspirado também por estas palavras de François Mitterrand, então doente terminal, no seu prefácio a La Mort intime de Marie de Hennezel (Paris, Robert Laffont, 1995): Jamais a relação à morte terá sido tão pobre como nestes tempos de seca espiritual em que os homens, com pressa de existir, parecem escamotear o mistério.

 

   Mas escrevi-te esta carta, Princesa, a pensar no frei Bernardo Domingues, que certamente sempre entenderia bem melhor do que eu tudo o te quis dizer.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

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