CADA ROCA COM SEU FUSO…
UMA EXTRAORDINÁRIA REVELAÇÃO
Na nota da última semana dei-vos conta do último livro de António Sousa Homem e da minha comunicação com ele, graças às qualidades mediúnicas de um outro amigo. Remeto para o que então disse, para quem tenha dúvidas. Hoje tenho o grande prazer de acolher um texto fundamental que me foi enviado com data de 29 de fevereiro de 2019 pelo meu Amigo Embaixador Francisco Seixas da Costa sobre uma figura fundamental do início do século passado, Augusto Maria de Saa – injustamente esquecido pela voragem dos tempos. Hoje tudo fica esclarecido. E para os que ficaram intrigados com o postal representando a Praça do Comércio que apresentei, esclareço que se trata do local do seu funesto e trágico passamento. Por uma coincidência quase irónica, mas certamente trágica, esclarecemos que esse histórico postal foi encontrado no bolso do casaco do malogrado herói. A Extraordinária Revelação é a de todos os pormenores que hoje se apresentam. E cabe-me ainda acrescentar o seguinte: há nas redes sociais (dizem-me…) a notícia falsa a correr de que Augusto Maria de Saa não existe. Posso asseverar-vos como fica demonstrado na amostra junta que a figura é mesmo das mais notáveis, das mais inolvidáveis, das mais perenes da nossa vida intelectual. E daí a sua vera efígie aqui apresentada. Fico muito grato ao Centro de Estudos Saaianos (em constituição) e aos seus mentores e dirigentes.
Agostinho de Morais
Daguerreótipo na Bahia em 1889.
SAA VIVE !
Ao comemorarem-se os 165 anos do seu nascimento, começa a agigantar-se no panteão da memória popular essa personagem ímpar da cidadania e da cultura, que deixou um rasto indelével que só muito recentemente começa a ser recuperado em toda a sua dimensão, e que deu pelo nome de Augusto Maria de Saa.
Augusto Maria de Saa nasceu, como é sabido, a 29 de Fevereiro de 1854, numa barraca de courela na zona de Lisboa que hoje se chama Olaias, ao tempo designada por Picheleira. Numa carta a sua irmã Ephygénia, Augusto ironizou um dia com a raridade da data: "Às vezes, até parece que não nasci". Mas nasceu, ao menos para a lenda e para a glória.
Seu pai chamava-se Joaquim Saa, camponês da Merceana, que havia vindo para a periferia de Lisboa à procura de um qualquer parco sustento, nesses tempos de fome posteriores às guerras liberais. Sua mãe, Maria das Neves, teve a triste sina de ser o resultado de um pecaminoso encontro entre um padre miguelista, refugiado numa quinta da Malveira, e uma antiga aia, recém-regressada do Brasil, de D. Carlota Joaquina. O Brasil começava a firmar-se no destino do nosso Augusto.
Maria das Neves tem um início de vida dramático. Levada pela mãe e pelos ventos do infortúnio para a zona da Mouraria, aí haveria de se desgraçar, seduzida por um rufião e, dali em diante, daria o corpo na luta pela vida, até ter conhecido Joaquim. Seria ele a resgatá-la daquela miséria e iria ser o pai da prole de 11 filhos, de que Augusto seria o "caçula".
O pai Joaquim não deu, porém, vida fácil a Maria das Neves. Propenso ao abuso do álcool, criou na família um constante ambiente de violência e agressão, que o afastou, sucessivamente, do carinho dos filhos, oferecendo à mulher um quotidiano de inferno. Também numa carta a Ephygenia, a irmã de quem era mais próximo, uma epistolografia onde hoje assenta o pouco que se conhece dos tempos da sua família lisboeta, Augusto relembra, com tristeza irónica, a frase que o pai, quando ébrio, repetia como lema da sua vida: "Homem que é homem, dá coça diária na mulher".
Chegado a este ponto, o leitor dificilmente imaginará como pôde nascer, deste ambiente de dissolução, um ser superior como Augusto Maria de Saa. Nem nós imaginamos.
Chamado pelo imperativo material da vida, o nosso Augusto partiu um dia para o Brasil, a sugestão do seu tio Zagalo, irmão do pai, que ali fizera vida.
Não vamos agora entrar em detalhes, porque eles ficariam sempre aquém da realidade, sobre o que foi o seu percurso notável nessas terras da colónia perdida. Fiquemos apenas com uma síntese indicativa do fresco renascentista que foi a sua vida de eleição: da literatura à pintura, da filologia à música, da medicina à arte das viagens, da antropologia à ciência náutica, da agricultura científica à enologia, da astrologia às ciências ocultas, da física à matemática, por quase tudo passou o nosso Augusto, em todas essas áreas deixou a marca da sua inteligência e perspicácia.
O Brasil deve-lhe muito, nós devemos-lhe a honra de ser nosso compatriota. Ele, a nós, deve-nos a morte. É que, imagine o leitor, Augusto viria a morrer, em Lisboa, de forma inglória, sobre a pedra fria da rua do Arsenal, na histórica e fatídica tarde de 1 de Fevereiro de 1908.
Talvez valha a pena saber um pouco mais sobre as condições dramáticas dessa sua desaparição do mundo dos vivos. “Só a essência perpétua da morte oferece digna guarida à graça efémera da vida”, diria, premonitório, esse grande clássico do nosso Augusto que foi o grande Crabtree*
Uma morte que resgata a vida
Um apelo dramático de família fizera Augusto regressar do Brasil a Portugal, em finais de 1907, para ver, pela última vez, pelo Natal, a sua querida irmã Ephygenia, a esvair-se da vida, numa tísica sem remissão, no palacete à Junqueira, construído com os ouros do seu trabalho no Brasil. Tinha 54 anos, o nosso Augusto, e eles começavam a pesar-lhe, confessava.
Nesse primeiro dia de Fevereiro, destroçado pelo espectáculo da crescente tragédia doméstica, Augusto toma uma caleche e decide apanhar o ar fresco do Terreiro do Paço, beber uma aguardente no Marinho da Arcada, que tanto alimentava as suas saudades nas tardes quentes das terras além do Atlântico. A essa hora, o Martinho regurgitava de caras que o nosso Augusto não conhecia, figurões dos ministérios a fumar horas da preguiça, algumas personagens jovens com ar circunspecto, chapéu negro na mão e papéis no sovaco, graves nas suas bigodaças, em cujos murmúrios se pressentiam conspirações e incontáveis intrigas. A República rondava, a vida política sentia-se espessa. Como que por contraponto, a certa altura, a notícia espalha-se: Suas Majestades estão a chegar de barca ao Terreiro do Paço, regressadas de Vila Viçosa !
O nosso Augusto vê, num segundo, o destino colocar-lhe perto, pela primeira vez, essas figuras que a História quisera símbolos do seu Portugal. No Brasil, o Império já se fora, a República estava vibrante, Augusto tinha ido com os ventos do tempo, mas a memória do Portugal eterno estava toda ali, nessas personagens que breve iriam atracar ao Cais das Colunas. Segue assim o grupo que abandona o Martinho sob impulso da notícia e cruza o Terreiro. Vai colocar-se, com alguns outros, na esquina com o Arsenal, na perspectiva de poder gozar a passagem das Majestades. Do poste onde se encostara, via ao longe o Rossio, onde prometera encontrar-se ao fim da tarde com gente amiga, antes de uma jantarada no Grémio, onde iria nessa noite.
Do lado do cais, o movimento adensa-se. Suas Majestades avançam na carruagem, escoltada pelos guardas a cavalo, chanfalho preso à cintura. Alvoroçado com esse inesperado encontro com a História, Augusto logo descortina o recorte avantajado do rei, nove anos mais novo do que ele próprio. Ao lado, a figura elegante da rainha D. Amélia, acenando com estudada displicência. De costas na carruagem, uma figura jovem agita a mão em direcção de aos populares que aplaudem. Deve ser o príncipe D. Luiz Filipe, pensa. Eram os seus Reis, estava a vê-los pela primeira vez, com um orgulho patriótico de expatriado a agitá-lo por dentro.
Quase sem tempo para se descobrir, para saudar a sua Realeza, o nosso Augusto é impelido a abeirar-se da rua, por uma pequena multidão que largou o conforto da arcada para ver, ainda mais de perto, os passantes Braganças. É esse escasso grupo de pessoas, quiçá mais movidas pela curiosidade do que pelo amor à Coroa, que agora faz quase alas à carruagem, roçadas pelos cavalos da Guarda, no curvar lento da saída do Terreiro.
O que se passa, de seguida, é tempo de segundos. Do lado contrário da rua, Augusto ouve o que lhe parece, distintamente, serem dois tiros, seguidos de um alvoroço surdo de gente. O rei parece-lhe cair prostrado, a cabeça pendente sobre o encosto. D. Amélia soergue-se, lívida, do banco. Mais tiros, vindos sabe-se lá de onde, cruzam a esquina da praça, misturados com gritos e imprecações. Augusto vê surgir lesta, ao seu lado, uma figura esguia, de capote, que avança com um revólver na mão, que aponta certeiro à figura de D. Luiz Filipe, que se deixa cair na base da carruagem. O tal homem continua, não desiste, aproxima-se mais das carruagem e D. Amélia, com a coragem da raiva, sacode-lhe o braço assassino com um ramo de flores. O braço desvia-se, o assassino desequilibra-se e do fuzil sai-lhe, enviezado, um último tiro, antes que um chanfalho da Guarda Real o atire ao solo. Esse tiro, o tiro errado, é o tiro certeiro que atravessa a nuca do nosso Augusto Maria de Saa.
A rua passa a um inferno de sangue e gritos. As reais figuras são rapidamente recolhidas no Arsenal, o Buíça e o Costa – os regicidas que a História acolheria nas suas páginas – são trucidados, nos minutos seguintes, pela raiva impotente da Guarda, com a ajuda de populares enfurecidos. Ninguém se preocupa com o corpo exangue de Augusto Maria de Saa, com a face na pedra suja, a sobrecasaca cinza manchada pelo vermelho do sangue português que o Brasil alimentara. Na confusão trágica dessa tarde, o país perdera o rei e o príncipe herdeiro, mas a Monarquia continuava, pelo menos por ora. O que acabara, de vez, era o destino de uma figura ímpar que a História iria esquecer por muito tempo: Augusto Maria de Saa.
A hora pública de Saa
A justiça chegou tarde, mas chegou ! O considerado programa "Ritornello", da Antena 2 da RDP, dirigido por Jorge Rodrigues, dedicou a sua emissão de 1 de Abril de 2005 à figura de Augusto Maria de Saa. Para muitos parecia um missão inviável: era lá possível que a obra de Saa fosse levada ao público português com esta expressão mediática ! Mas sim, era verdade, a Antena 2, em colaboração com a Rádio Cultura, de Brasília, sempre atenta ao grandes valores culturais que lhe cumpre preservar e promover, esteve à altura dos seus pergaminhos e, sob a batuta de Jorge Rodrigues, soube fazer-se eco da vida e obra desse gigante da cultura que foi Saa. Bem haja !
Durante quase duas horas, os dois países de língua portuguesa e o mundo foram brindados com depoimentos que trouxeram à tona da realidade cultural luso-brasileira aspectos importantíssimos do espólio de Saa. Um professor universitário brasileiro leu dois inspirados poemas do tempo tropical do nosso Augusto, prenhes da saudade lusa que marcou a sua aventura brasileira. Familiares de Saa, hoje perdidos na Rondónia, deram conta de como a sua memória continua a ser acarinhada na família índia que criou na Amazónia, onde hoje sobrevivem frutos luso-tropicais, que acabam por dar razão póstuma a Gilberto Freyre. Revelações sobre cartas de Eça de Queiroz a Saa, existentes nos arquivos de São Petersburgo foram feitas por um especialista em temas russos. Figuras do meio académico revelaram a explosão crescente de estudos saaianos que atravessa o Brasil, quiçá (melhor diríamos, "quissá"...) premonitórios da abertura próxima de um cátedra.
O programa trouxe ainda à tona os trabalhos sobre Saa em curso do Departamento de Linguística do polo experimental de Taguatinga, dependente da Universidade Católica de Abadiania Leste (UCAL). Além disso, foi referida a conhecida dedicação à temática do autor que ocupa o Professor Romário Ibirapuera, da Universidade de Rondónia, figura incontornável da investigação saaiana, em especial depois da iniciativa da reedição desse marco linguístico, há muito esgotado e objecto de especulação nos alfarrabistas, que é a "Recolha crítica de interjeições tupi", que Saa publicou, em edição do autor, em 1887.
O programa Ritornello prestou um inestimável serviço à memória cultural luso-brasileira, ao alertar para a necessidade de uma iniciativa forte que leve Saa ao povo, através da publicação das suas Obras Completas, se possível em edição de bolso. A questão tinha um sentido de urgência, porque acabava de ser tornado público que a editora francesa Gallimard estaria a processar a tradução urgente de toda a obra de Saa, a incluir nos seus clássicos da colecção "La Pléiade", publicação em papel bíblia, ao lado de Montesquieu, de Voltaire, de Hugo e de um único português, até agora, Fernando Pessoa, também de Lobo Antunes, no futuro. Se não nos adiantarmos, se não houver um choque das consciências lusas, não nos espantemos de ver as seguintes obras de Saa, entre muitas outras, com uma chancela parisiense:
- "Prolegómenos à teoria dinâmica do conflito", obra de ciências políticas, morais e antropológicas, publicada por Saa ao tempo em que dirigia a Gazeta Democrática de Paranoá;
- "Olhai a Europa!", opúsculo-manifesto onde, pela primeira vez, se refere uma possível "carta constitucional" europeia;
- "As volteaduras da musicalidade recorrente", texto de teoria musical que, curiosamente foi o tema central de um seminário interdiscipinar realizado pelo professor holandês Schopp Innkop, em Hobbart, na Tasmânia, organizado pelos "Círculos Musicais Heineken", com apoio da prestigiada "Fundação Foster";
- "O equilíbrio da ruptura no voltâmetro de potência suspeitada", obra no domínio da física que tem já uma edição em servo-croata, infelizmente esgotada.
Finalmente, caro leitor, a obra de Augusto Maria de Saa começa a reaparecer em toda a sua grandeza. Já não era sem tempo, mas, para os que lutaram ao longo destes anos para que tal acontecesse, ainda parece mentira !
Lisboa, 29 de fevereiro de 2019
Francisco Seixas da Costa
Embaixador e presidente do CES (Círculo de Estudos Saaianos), em formação.
*Crabtree, Joseph William, “The new global philosophy and the impact of the Cornwall school dissent”, London, Barley & Peacock, third ed, 1887, pg. 623
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