O MAIS JOVEM PÁRA-QUEDISTA DO MUNDO
Agora que Marcelo Rebelo de Sousa voltou a aproximar Angola e Portugal, pondo-nos nos braços uns dos outros, num daqueles kandandos apertados (que é como os caluandas chamam a um abraço amigo), veio-me à lembrança do luandense, que eu também sou, um episódio de sonho e inocência
Quando flutuam no céu não sei se parecem anjos se, longe e pequeninos, são mais alforrecas.
Em “O Dia Mais Longo”, invade-se a Normandia. Milhares de barcos tapam o mar, a multidão de soldados de infantaria chapinha na última onda da praia fugindo à metralha alemã. Entretanto, os pára-quedistas saltam atrás das linhas inimigas.
Recordo a aldeia de St. Mère Église. Os páras tinham os boches à espera. Vinham no ar e eram ceifados sem piedade. Um ficou preso no campanário da igrejinha. Fingiu-se morto e ficou pendurado, horas, os sinos a ensurdecer-lhe os ouvidos, vendo o morticínio dos camaradas. Episódio real, o pára sobreviveu no filme e na vida.
No filme mais fácil de assobiar de que os meus lábios se lembram, “A Ponte do Rio Kway”, saltam em território inimigo para sabotar a ponte que o prisioneiro Alec Guinness construiu para os japoneses. William Holden, o pára-quedista americano, salta com a alegre elasticidade moral yankee que o fez logo mais herói a meus olhos do que a sorumbática honradez do britânico Guinness.
Saí da matinée e, aos 7 anos, vi os primeiros páras saltar, num festival a que Luanda assistiu mal a guerra começou.
No ar, os velhos Nordatlas, chamados barrigas de jinguba, roncavam, preguiçosos. Abriram-se como torneiras e o azul celeste povoou-se de pontos negros caindo vertiginosos para a morte. De repente, nascia-lhes na cabeça uma salvadora e ampla cabeleira. Flutuavam, então, presos a esses alucinados lençóis de Deus.
Três amigos, 7 anos como eu, extasiaram. A imaginação exigiu-lhes igual cabeleira. Cortaram plásticos, novelos de fio grosso. Procuraram local propício: uma obra em construção. Subiram a um andar. No chão, dois montes da amarela areia do Bengo garantiam queda macia.
O resto é pura epopeia. Um amarrou ao pescoço o científico e improvisado pára-quedas. Os outros, em rígida continência, tributavam-lhe a coragem. Saltou. O plástico reagiu com eficácia newtoniana e abriu-se. Numa imparável cadeia de efeitos, a corda esticou e, ai meu Deus, o pescoço do mais jovem boina verde do mundo viu-se apertado. Faltou-lhe o ar e os olhos (mania que os olhos têm) esbugalharam-se, aflitos, para o mundo. Tentava gritar roucos sons intraduzíveis.
Os amigos foram amigos. Correram escadas, saltaram andaimes, trovejando “tem calma! tem calma!”, “já aterras! já aterras!”
Corriam desenfreados e pairava o herói em histérica majestade. Aterraram juntos: os dois maratonistas de andaimes esfolando-se no cimento, o atónito pára-quedista na areia dourada. Cinema puro: terminava com um fio de sangue, suor tropical e sem lágrimas a aventura militar de um trio empreendedor e aberto à experimentação científica.
Muito estremeceu depois o céu de Angola, mas já não com a valente inocência de uns principezinhos sem asas.
Manuel S. Fonseca