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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - I

 

Minha Princesa de mim:

 

    Entre os escritos demasiados e múltiplos que fui guardando - e ocasionalmente destruindo - vão sempre ficando uns rascunhos e alguns textos arquivados daquele meu projeto, em português, de uma "História Dual da Igreja Católica" (de que já te falei) e dum livro, já acabado, em francês: Éloge de la Jouissance. Tem este duas partes: Les Menus Plaisirs e La Grandeur de la Joie. A primeira estende-se por três capítulos (Les Innocents; Les Malicieux; Les Inesperés), em que vou "moralizando" acontecimentos e feitos da vida quotidiana, desde conversas e tertúlias de amigos, almoços e vinhos bem saboreados, feitiços namoradeiros, aos prazeres do campo e do mar, da leitura, das artes e da música, ou desde momentos de gozada malícia ou gratuito humor às surpresas que nos oferecem gestos próprios ou alheios de generosidade e de carinho humano. Já a parte segunda, talvez um pouco mística, contempla a alegria como trindade: La Joie de vivre la Vie, dans l´Amour et la Mort.     

 

   Finalmente, um apêndice discorre sobre a lembrança e o esquecimento: La Joie du Souvenir et l´Artifice de l´Oubli.  Muito do que ali está dito em francês já terá sido escrito no português familiar e chão das cartas que, por tantos anos, te fui escrevendo. Não direi que esta, agora, seja o último segredo ao ouvido da tua leitura, mas faz certamente parte das minhas derradeiras confidências, alimentadas por pedaços do meu pensarsentir, colhidos no tal acervo de escritos meus que te nomeio acima, sem sequer nele aí os localizar, pois, muito provavelmente, logo de seguida irei destruir os respetivos textos originais. O que doravante te vou enviando poderá, assim, ser ou não novidade para ti, mas nada terá de construído. Apenas será um último aceno de memórias ou lembranças que apenas vou revendo porque delas me despeço. Dizendo-lhes, como os antigos no fim de um auto teatral: acta est fabula!


   Longe de mim qualquer intento de recordar ou registar algo para quaisquer galerias, antes pelo contrário pretendo apenas  -  sempre guardadas as evidentes distâncias intelectuais, e não só - emular o retrato de Michel de Montaigne, que Stefan Zweig pinta assim: Poucos homens se bateram com mais dedicação e empenho para preservar o seu eu mais íntimo, a sua essência, de qualquer mistura, de qualquer atentado vindo da espuma perturbadora e malévola da agitação dos tempos, e poucos terão conseguido salvar do tempo, e para sempre, o que eles viveram, o seu eu mais profundo. 

 

   Montaigne travou tal combate para salvaguardar a sua liberdade interior, e esse terá sido, talvez, o mais consciente e tenaz jamais travado por um espírito humano, sem ter em si nada de patético nem de heroico.

 

   Seria violência a Montaigne força-lo a pertencer ao grupo de poetas e pensadores que verbalmente combateram pela «liberdade da Humanidade». Ele nada tem dos discursos inflamados nem das explosões de Schiller ou Lord Byron, nem tão pouco da causticidade de Voltaire. Fá-lo-ia sorrir a ideia de querer transferir para outros seres humanos, e ainda mais para as massas, algo de tão pessoal como a liberdade interior. Detestou, com toda a alma, os reformadores profissionais do mundo, os teóricos, os mercadores de ideologias. Já sabia bem demais quanto custa o aturado trabalho de manter consigo, em si mesmo, a independência interior...

 

   ... Assim, não tem Montaigne uma biografia. Não se confronta seja com quem for, nunca se destacou, pois nunca quis contar com audiências nem aplausos.

 

   Eu tampouco, sem escamotear esse abismo que me separa dos merecimentos de Michel de Montaigne, que não tenho, nem sequer sonhei ter. A minha única obsessão, e contínua perseguição interior do dom da vida, foi a busca da independência da minha inquirição, como modo de ir percorrendo e discorrendo o tempo que me foi dado, no ato de um esforço alegre, na liberdade de filho de Deus. Sou visceralmente alérgico a vendilhões de dogmas e a gurus de tudo o que as culturas gripadas vendem como sendo política, económica, social, literária ou culturalmente correto. Por outro lado, fui sempre tentado a considerar que não é necessariamente necessário (pleonasmo voluntário e significante) ser-se muito inteligente, nem erudito, nem eloquente, para se ser culto ou, muito simplesmente, um pensador dedicado à procura de entendimento das coisas (pormenores de tudo) e, muito humanamente, de mim, de mim e da minha circunstância, de mim como o de mim que sou eu, de mim como o eu que cada um dos outros, enquanto ele mesmo, também é, em tudo o que a condição humana nos faz comuns. Também aí busco a inabalável raiz da minha fé católica: nessa comunhão com Aquele que é tudo em todos. Eis a grandeza, a raiz mística da Alegria.

 

   Muitas vezes te falei da fidelidade como coluna vertebral da pessoa moral, mas também te referi sempre que ela não é, não pode nem deve ser, um facto consumado: o ecossistema do ser moral não é um tempo parado, estagnado, como se a vida, movimento divino, pudesse parar. O que, por paradoxal que pareça, tampouco significa que o tempo moral seja uma continuidade, já que, como escreve Laure Barillas, interpretando o seu mestre Vladimir Jankélévitch, ele tem uma temporalidade própria, a do Súbito e da conversão: O tempo da moral só pode ser o da descontinuidade, feita de instantes que se opõem à mediação olvidável da duração. Afirma o próprio Jankélévitch no seu Le Pardon (Éditions Montaigne, 1967): A vida moral não é um processo, mas um drama, um drama pontuado por decisões custosas, O progresso moral só avança pelo propositado esforço de uma decisão intermitente e espasmódica e na tensão dum incansável recomeço; o querer, incessantemente querendo e voltando a querer, em caso algum conta com a inércia do movimento adquirido, nem nunca vive das rendas do mérito acumulado. E é assim que o progresso moral recomeça sempre do zero. Não há outra continuidade ética além dessa esgotante continuação do reimpulso e da retoma; o progresso moral é, portanto, mais laboriosamente continuado do que espontaneamente contínuo, assemelha-se mais a recriar do que a crescer.

 

   Neste contexto ganha o seu sentido aquela expressão do mesmo filósofo no seu Traité des Vertus (Flammarion, 1983-86): O que está feito está por fazer. E assim entendemos como, no tempo descontínuo da moral, tudo fica sempre por fazer, por ser retomado: Ce qui est humain ce n´est pas l´oubli mais la mémoire, la vigilance et la fidélité (em La Presse Nouvelle Hebdomadaire, 15 de junho de 1979).

 

   Tenho trazido comigo, como regra de oração e de vida, que manter-me humano e procurar ser mais cristão passa, necessariamente, pela identidade da minha memória, da minha vigília, da minha fidelidade a ser.

 

   Noutras cartas, Princesa de mim, talvez te traga reflexões, no tempo atual, sobre a diferença entre crime e pecado, esquecimento e perdão. E sobre a face dogmática e canónica da igreja clerical, dessa que lamentavelmente teima em permanecer como poderio temporal - ao ponto de até pretender que Jesus Cristo assim como tal a instituiu - e vai fechando os olhos e os ouvidos aos ensinamentos e profecias do Evangelho do Mestre. E, ainda infelizmente, reforçando a razão desse conceito de pecado (que tantas vezes te tenho referido): O pecado é a paixão dos nossos limites. Tal clerical instituição ganharia em reconhecer-se naquela máxima de Antoine de Saint-Exupéry que nos ensina que o ser humano se conhece pela medida do obstáculo que supera. A tal questão voltaremos, minha Princesa de mim. Até lá, deixa-me só, uma vez mais, recordar o "meu" Ortega, que tanto me fez refletir no ser e na circunstância (eu sou eu e a minha circunstância), para te dizer (ideia central da minha "História Dual da Igreja") que a igreja clerical, o instituto canónico e os seus funcionários, é a igreja circunstancial, que se foi arranjando com tempos e modos da história... A Igreja Católica, a assembleia universal dos fiéis que, na sua múltipla diversidade, constituem o corpo místico de Cristo - essa, sim, é a Igreja mesmo. E talvez tenha chegado a hora dos senhores clérigos começarem a pensar na Igreja, não como sua empresa ou seu estado político, algo que simplesmente dirijam ou em que "sacramentalmente" mandem, mas como povo em si mesmo sacerdotal. O grande desafio à Igreja hodierna é procurar pôr direito o muito que tem arrastado às avessas. Já agora, lembrados de Francisco de Assis, que viveu com tão grande alegria o exemplo evangélico de Jesus, que nunca quis fundar um organismo hierárquico, nem mostrou qualquer condescendência pelos que pretendiam ter primazia no Reino de Deus...

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira