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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Phyllida Barlow e o ‘Objeto para uma poltrona’.

 

The urgency to get something done is very important in my work. I make work very quickly. I then need ages to understand what I’ve done, and that is an odd paradox (...) You’ve put everything into the work, and you look at the thing and you haven’t got a clue what it is. You’re left with this very raw thing.’, Phyllida Barlow

 

Ao sermos confrontados diariamente com o desejo de ser em plenitude, de ser outro, de viver outra vida, o ‘Objeto para uma poltrona’ de Phyllida Barlow (1994) introduz uma outra realidade, uma nova possibilidade no interior de uma privacidade. É um corpo inesperado que se ergue. A estranheza que o objeto provoca elimina qualquer tipo de idealização e obriga-nos a aterrar na realidade daquela sala, daquele espaço específico.

 

A introdução do objeto, naquela intimidade, tenta encontrar o equilíbrio entre o belo e o obscuro, entre o confortável e o bruto, entre o agradável e o cru, o tudo e o nada.

 

A escultora Phyllida Barlow (1944), na sua obra, revela sempre uma curiosidade em relação a qualidades abstratas como o tempo, o peso, o equilíbrio, o ritmo, o colapso e a postura flexível. No fundo, interessa-se por tudo o que se relaciona com o estado (do real e do agora) em que as coisas se apresentam num determinado momento.

 

Neste caso, o ‘Objeto para uma poltrona’ está dobrado, apertado, constrangido, atado, colado, quase a rebentar e em equilíbrio instável. É como que um teste de duração, de resistência e de persistência. Aqui procura-se talvez por uma precaridade, por uma nudez, por uma dimensão submersa, espessa, escondida. E é esse não saber, não entender que se torna verdade e que abre a possibilidade para todos os saberes.

 

‘I like that sense of my own physicality being in competition with something that has no rational need to be in the world at all.’, Phyllida Barlow

 

Barlow manipula os materiais mais acessíveis e primários (madeira, cartão, gesso, cimento, rede metálica, tela e tinta) e é nessa ação e nessa imposição física do fazer, e que provoca um determinado comportamento, que os objetos vão adquirindo conteúdo. Muito mais do que um produto finalizado e visual, Phyllida Barlow procura por uma ação física, real, dinâmica e interminável.

 

And when I say I don’t know what the subject is, I really don’t know. Therefore there is an ongoing chase to find that. I sort of know what the content is. And I can know what the form is (...) But what the subject within that is, I don’t know.’, Phyllida Barlow

 

 

Ana Ruepp

UMA QUARESMA PARA O MUNDO

 

1. Uma ilustre Catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto entrou em contacto comigo, porque queria saber algo sobre a relação entre o jejum e a espiritualidade.

 

Lembrei-me então de que estamos na Quaresma. Ela é mais para os católicos, que durante 40 dias se preparam, pelo menos, deveriam fazê-lo, para a festa que constitui o centro do cristianismo, a Páscoa.  De qualquer forma, animam-na ou devem animá-la valores que são universais, de tal modo que poderíamos fazer a pergunta: Como seria o mundo, se tivesse anualmente a sua Quaresma, tendo na sua base esses valores: jejum, abstinência, oração, silêncio, esmola, sacrifício, conversão?

 

2. O que se segue é uma breve reflexão que tenta responder a esta pergunta. Começando pela urgência de um retiro. De facto, a Quaresma refere-se aos 40 anos que os judeus passaram no deserto a caminho da Terra Prometida e aos 40 dias que Jesus esteve no deserto, em retiro, preparando-se para a sua vida pública, na qual o centro seria a proclamação, por palavras e obras, do Evangelho, a mensagem da salvação de Deus para todos os homens e mulheres.

 

Aí está: retirar-se para meditar e reflectir. O que mais falta faz hoje. Quem se retira para fora do barulho e da confusão do mundo, para meditar e reflectir, ir mais fundo e mais longe, ao essencial? O sentido dos 40 anos e dos 40 dias: a libertação da opressão e da escravidão, a caminho da liberdade e, consequentemente, da dignidade. Para a felicidade, evidentemente.

 

Neste contexto, os valores da Quaresma.

 

2.1. Aí está o jejum. Diz o Evangelho que Jesus jejuou durante 40 dias e 40 noites e teve fome. O diabo — é uma maneira de figurar a tentação — tentou-o. Jesus respondeu-lhe: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que vem de Deus”.

 

Jejum e espiritualidade? Quem é que, andando em permanentes comezainas e bebedeiras, se vai sentar para meditar e continuar a escrever ou de outro modo qualquer realizar uma obra, entregar-se às coisas do espírito? São Paulo preveniu, na Carta aos Filipenses, contra aqueles cujo “fim é a perdição, o seu Deus é o ventre e gloriam-se da sua vergonha”. E alerta contra os beberrões e a sua degradação.

 

Mas o jejum não tem que ver apenas com a temperança no comer e no beber. Tem de haver jejum de tanta vaidade ridícula, jejum de tanta insensatez falaz, de tanta cobardia envergonhada, de tanta voracidade egoísta... Ao jejum está ligada a abstinência, que não é só da carne. É preciso abster-se da injustiça, das mentiras, dos interesses partidários e pessoais colocados acima dos interesses do bem comum, abster-se das medidas e dos programas político-partidários eleitoralistas com promessas que se sabe não vão ser cumpridas, de programas televisivos sem sentido e deletérios que degradam nomeadamente a mulher. E aí está uma das contradições brutais do nosso tempo, por causa das audiências e, em última análise, da idolatrização do deus Dinheiro: por um lado, e bem, há toda uma campanha para defender a mulher, mas, por outro lado, ela é humilhada concretamente nesses programas...

 

 Abster-se da corrupção... O Papa Francisco acaba de pedir uma “política sã”, alertando contra a corrupção: “A corrupção degrada a dignidade do indivíduo e destrói todos os ideais bons e belos. Com a ânsia de lucros rápidos e fáceis, na realidade empobrece a todos, minando a confiança, a transparência e a fiabilidade de todo o sistema”. A receita: “transparência e honestidade” para reconstruir “a relação de confiança entre o cidadão e as instituições, cuja dissolução é uma das manifestações mais sérias da crise da democracia.”

 

Hoje, sabemos que o jejum e a abstinência contribuem em grande medida para a saúde e até para a beleza. Quanto à espiritualidade, não há dúvida. Significativamente, a sabedoria de todas as religiões esteve sempre aberta ao jejum sadio.

 

2.2. A oração. Para colocar o ser humano em contacto com o Mistério último da realidade e da vida. Dialogar com o mais fundo da Vida. Estar ligado ao Fundamento, à Fonte, ao Sentido último. Para se não perder na dispersão, completamente desorientado, desorientada, sem referências, perigo maior do nosso tempo.

 

2.3. Mas a oração e o que é essencial exigem o salto para fora do barulho ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num tempo em que se é invadido e esmagado pelo tsunami das informações, entrando no mundo caótico da dispersão e da fragmentação, da “agitação paralisante e da paralisia agitante”, segundo a expressão do famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, é urgente parar, fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim, ouvir o silêncio. No meio da vertigem dos vendavais de palavras em que vivemos, que nos atordoam e paralisam, ouvir outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio. Só depois de ouvir o silêncio será possível falar, falar com sentido e palavras novas, seminais e iluminantes, criadoras. De verdade. Onde se acendem as palavras novas, seminais, iluminadas e iluminantes, criadoras, e a Poesia, senão no silêncio, talvez melhor, na Palavra originária que fala no silêncio? Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência, que sussurra ou grita no silêncio. Quem a ouve? Ouvir o quê? Ouvir música, a grande música, aquela que diz o indizível e nos transporta lá, lá, ao donde somos e para onde verdadeiramente queremos ir: a nossa morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria. Sócrates, o mártir da Filosofia, que só sabia que não sabia, consagrou a vida a confrontar a retórica sofística com a arrogância da ignorância e a urgência da busca da verdade. Falava, mas só depois de ouvir o seu daímon, a voz do divino e da consciência.

 

O grande filósofo A. Comte-Sponville é partidário de um “ateísmo místico”, no quadro de “uma espiritualidade sem Deus”. Constituinte dessa espiritualidade é precisamente o silêncio. “Silêncio do mar. Silêncio do vento. Silêncio do sábio, mesmo quando fala. Basta calar-se, ou, melhor, fazer silêncio em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é outra coisa), para que só haja verdade, que todo o discurso supõe, verdade que os contém a todos e que nenhum contém. Verdade do silêncio: silêncio da verdade.”

 

O problema está em que já Pascal, nos Pensamentos, se queixava: “Toda a desgraça dos homens provém de uma só coisa, que é não saber permanecer  em repouso num quarto.” Hoje é ainda pior do que no tempo de Pascal. Ninguém suporta o silêncio. Por isso, é preciso constantemente pedir com Sophia de Mello Breyner: “Deixai-me com as coisas/Fundadas no silêncio.”

 

2.4. Outra característica da Quaresma era a esmola.

 

Cá está. Quem fizer silêncio para ouvir o silêncio, também ouvirá os gemidos dos pobres, os gritos dos explorados, dos abandonados, dos que não podem falar, das vítimas das injustiças. E perceberá que se não pode dar como esmola o que pertence fazer como justiça.

 

E volta-se  à  corrupção e ao roubo e às injustiças estruturais e aos Bancos que abriram falência e que mataram vidas inteiras de gente que trabalhou e que se sacrificou e que poupou o que pôde e o que não podia e que, no fim, ficou espoliada do pouco que tinha... E, tirando o facto de os contribuintes continuarem a pagar até essas falências e roubos, mesmo que se minta dizendo que não custará aos contribuintes um cêntimo (afinal, quem é o Estado?), não acontece nada. Alguém mete a mão na consciência? Não. Porque já não há consciência... Onde estão os valores da honra e da dignidade?

 

E ainda perguntam para que poderia servir uma Quaresma para o mundo, incluindo para políticos e banqueiros?

 

2.5. O sacrifício. Digo sempre: o sacrifício pelo sacrifício não vale nada. Mas é preciso, a seguir, gritar bem alto, num tempo em que parece que só resta o hedonismo, o prazer imediato, confundindo a felicidade com a soma de prazeres: Nada de grande, de valioso, de humanamente digno se consegue sem sacrifício. Quem quiser realizar uma obra valiosa, viver um grande amor, realizar-se a si mesmo na dignidade livre e na liberdade com dignidade tem de saber que isso não é possível sem sacrifício. Aliás a palavra sacrifício di-lo no seu étimo: sacrum facere: fazer algo sagrado.

 

3. O que seria o mundo depois de uma Quaresma autêntica? O nosso mundo, o mundo de cada uma e de cada um? Dar-se-ia uma conversão, palavra-chave da Quaresma, que significa mudança de vida, com um novo horizonte de compreensão da existência, do mundo e da transcendência.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 24 MAR 2019