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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

A FANTÁSTICA OFERTA DO MAGNÍFICO PARA O PRÍNCIPE PERFEITO…
30 de abril de 2019

 

Faz no dia 2 de maio 5 séculos, se não contarmos o salto de 11 dias de 1582, em que se passou do calendário juliano ao calendário gregoriano, que o grande Leonardo morreu. Tenho por ele uma admiração incomensurável. Impulsionado pelo texto de Alexandra Carita no último “Expresso”, estive hoje toda a manhã à sua conta na minha biblioteca, subi e desci a escada e encontrei muito do que desejava sobre Florença e sobre Portugal. Tenho uma grande paixão por Florença. Considero que San Miniato al Monte é a fronteira do Paraíso. E descobri o que desde miúdo desconfiava, que o nosso D. João II (1455-1495) foi o modelo de Lourenço de Médici, e por isso este encomendou a Leonardo da Vinci (1452-1519) para oferecer ao Príncipe Perfeito uma tapeçaria de Flandres. O caso parece ter pouca importância, uma vez que a tapeçaria em ouro e seda nunca chegou a ser executada, no entanto o episódio significa muito sobre a admiração que Lourenço, o Magnífico votava ao nosso Rei. Aliás, quando lemos «O Príncipe», dedicado por Maquiavel ao Magnífico, não podemos deixar de associar o modelo escolhido pelo pensador italiano ao monarca português. Ora, mais de cem anos depois de o cartão não ter seguido para a Flandres, permanecendo na cidade do Arno, o certo é que estava em casa de Otaviano de Médici – e a partir de então não mais se conheceu o seu paradeiro. Giorgio Vasari (1511-1574) fala de Leonardo e da célebre encomenda: “Foi-lhe pedido um cartão de tapeçaria, retratando a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, que deveria ser feita na Flandres e depois enviada ao Rei de Portugal. Leonardo trabalhou o pincel com claro-escuro, irradiando de branco, um campo de ervas infinitas e alguns animais. Pode dizer-se que certamente, em diligência e naturalidade, nenhum divino intelecto possa imaginar igualar-se a este”. Vasari, o grande crítico e historiador de arte diz ter visto o cartão e descreve-o: “Há uma figueira, folhas e ramos executados com muito cuidado que a mente se deslumbra só de pensar como um homem poderia ter tanta paciência para o fazer. Há também uma palmeira executada cada dia com mais grandiosidade e maravilhosa arte, impossível de fazer se não fosse a paciência e a mente de Leonardo. Esta obra não foi terminada e encontra-se em Florença na afortunada casa do magnífico Otaviano Médici, doada não muito tempo depois de concluída pelo tio de Leonardo”. E ainda li em Vasari: “Além de uma beleza de corpo que nunca será suficientemente enaltecida, havia uma graça infinita em todas as suas ações, e o seu génio era tal, e de uma natureza tal, que fossem quais fossem as coisas difíceis a que se dedicasse, facilmente as resolvia”. É um deleite ler as apreciações de Giorgio Vasari em “As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos” (tenho a edição de 1568)… Fui ainda recordar a representação de “Rapariga lavando os pés a uma criança” (1480), que está na Faculdade de Belas-Artes do Porto, e recordei a confissão do grande Francisco de Holanda sobre ter na sua livraria um esboço de Leonardo: “Busto de Homem grotesco de perfil”…  É bom pensarmos como Lourenço de Médici só em Leonardo encontrou o digno artista para homenagear o mais completo dos Reis contemporâneos…

 

E depois de ter lembrado este bizarro episódio, não resisto à tentação de reproduzir uma fábula que encontrei, nas minhas andanças, da autoria do próprio Leonardo da Vinci – que bem merece uma meditação serena…   

 

«A Borboleta e a Chama

Uma borboleta multicor estava voando na escuridão da noite quando viu, ao longe, uma luz. Imediatamente voou naquela direção e ao aproximar-se da chama pôs-se a rodeá-la, olhando-a maravilhada.

Como era bonita!

Não satisfeita em admirá-la, a borboleta resolveu fazer o mesmo que fazia com as flores perfumadas. Afastou-se e em seguida voou em direção à chama e passou rente a ela.

Viu-se subitamente caída, estonteada pela luz e muito surpreendida por verificar que as pontas de suas asas estavam chamuscadas.

“Que aconteceu comigo?” – Pensou ela.

Mas não conseguiu entender. Era impossível crer que uma coisa tão bonita quanto a chama pudesse causar-lhe mal. E assim, depois de juntar um pouco de forças, sacudiu as asas e levantou voo novamente.

Rodou em círculos e mais uma vez dirigiu-se para a chama, pretendendo pousar sobre ela. E imediatamente caiu, queimada, no óleo que alimentava a brilhante e pequenina chama.

- Maldita luz! – murmurou a borboleta agonizante – Pensei que ia encontrar a felicidade e em vez disso encontrei a morte. Arrependo-me desse tolo desejo, pois compreendi, tarde demais, para minha infelicidade, o quanto a chama é perigosa.

- Pobre borboleta! – respondeu a chama – Eu não sou o sol, como a borboleta tolamente pensou. Sou apenas luz. E aqueles que não conseguem aproximar-se de mim com cautela, são queimados.

Esta fábula é dedicada àqueles que, como a borboleta, são atraídos pelos prazeres mundanos, ignorando a verdade. E quando percebem o que perderam, já é tarde demais».

 

Agostinho de Morais

A VIDA DOS LIVROS

De 29 de abril a 5 de maio de 2019

 

 

«Jornal do Observador» de Vitorino Nemésio (reedição, INCM, 1999) reúne um conjunto de crónicas escritas na antiga revista “Observador”, dirigida por Artur Anselmo. Sobre muitos temas, aí se sente a ambiência do mestre da cultura portuguesa, aqui recordado.

 

IDENTIDADES E DIFERENÇAS
De que falamos na História da Cultura? De continuidades e de mudanças, de características singulares e convergências, de identidades e diferenças, de desafios e respostas. Não se trata apenas de seguir os acontecimentos, mas de compreender a lógica sincrónica e a perspetiva diacrónica. Não basta um sobrevoo da cultura geral, que mais não significa do que um contacto vazio e superficial com a criação e a arte, esquecido do que avança e progride e do que estagna. Assim, no ensino da Cultura Portuguesa, António Manuel Machado Pires tem recordado a preocupação que Vitorino Nemésio tinha com os seus discípulos, no sentido de abrir as suas mentes, ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e por que não, a O Malhadinhas de Aquilino?” (Cf. “Luz e Sombras no Século XIX em Portugal” de António M. Machado Pires, INCM, 2007). A cultura pressupõe diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e o que se pretende ver e entender numa relação sempre complexa entre a vida humana e a natureza que a rodeia. Daí a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada pelo próprio Nemésio – “Varanda de Pilatos”. Quando voltamos a ouvir as charlas televisivas de Nemésio, verificamos que estas corriam entre a intuição e a inteligência, entre a erudição e a capacidade de perceber o “mundo da vida”. O erudito e o professor falavam ao sabor da memória, usando as palavras, com um fio-condutor, um fito, um meio de prova, um vai-e-vem entre a memória e o acontecimento, a análise e a ironia. Afinal, refletir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva. Lembre-se o picaresco e o dramático no caleidoscópio de Fernão Mendes Pinto: “não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga coletiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar lição do tudo e nada da Vida”. Eis por que a ligação da Literatura, da Arte ou da Ciência são pontos de observação de eleição para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a mera ostentação de um saber ou de uma técnica. Assim, não compreenderemos, por exemplo, o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça de Queiroz (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério), Cesário (a contradição dos sentimentos), João de Deus (a lírica popular) ou Antero (a reflexão culta).

 

VITORINO NEMÉSIO E MACHADO PIRES
Nemésio e Machado Pires tinham, de facto, razão quando falavam de duas linhas de pensamento dominantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio. Ambas devem de ser consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois polos têm de estar presentes na definição do português e do “ser de Portugal”. A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par, como na análise de António José Saraiva, articulam-se com a construção de um imaginário. A experiência “madre de todas as cousas” (de Duarte Pacheco Pereira e de Camões), com os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna, a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo nos permite tentar perceber quem somos, donde vimos e o que nos motiva e desafia. Mas temos de recusar as simplificações e a tentação de levar a História da Cultura para uma mera sucessão de factos ou acontecimentos. Temos de perscrutar tendências, de suscitar criticamente diversas leituras, de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. Urge contrariar as simplificações, que se tornam caricaturais, não permitindo compreender uma realidade que é multifacetada e correspondente a um complexo melting-pot. Ligue-se, pois, a vontade ao fundo céltico, confronte-se a fixação e o transporte, contraponha-se o erudito ao castiço, compreenda-se as diferenças e as complementaridades entre Camões, a custódia de Belém e o galo de Barcelos. De facto, nossa cultura tanto é o “Auto da Lusitânia”, de Todo o Mundo e Ninguém, como o “Pranto de Maria Parda”, para só nos atermos a Mestre Gil. Estamos, como somos, nos dois registos tao diferentes.

 

CULTURA COMO CONVERGÊNCIA
Tem ainda razão Machado Pires quando diz que a «Cultura não é um “somatório” heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas, carreando um considerável conjunto de materiais para “forçar” a prova». O que deve estar em causa é a procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos, em resposta ao enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro. A Cultura é “uma perspetiva convergente e unitária de vários ramos do saber”. E eis o paradoxo, “se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino”. O pessimismo contrasta com o compromisso cívico. E assim, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e o desastre parecia anunciar-se, com o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, o desprestígio das instituições, a Geração que se evidenciara em 1870 não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, claramente demarcado do fatalismo: “vemos como o seu amor à Pátria, à História e à dignidade do homem social” não se perde e “define com grandeza uma obra vasta e diversa que termina significativamente numa trilogia patriótica e na busca de arquétipos da excelência portuguesa”. O autor refere-se a Oliveira Martins. Mas não podemos esquecer ainda “A Ilustre Casa de Ramires”, como alerta para um tempo novo. Ao contrário de considerações superficiais sobre um suposto “vencidismo”, A. M. Machado Pires (como, aliás, Eduardo Lourenço) demonstra o carácter complexo do pensamento de 1870, a atitude crítica e a reconfiguração dos mitos, orientadas num sentido emancipador, centrada na coerência fundamental, baseada nas preocupações ligadas à justiça e à criação de condições concretas para pôr o coração do país a bater ao ritmo da Europa e do que hoje designamos como desenvolvimento...

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - VII

 

Minha Princesa de mim:

 

   Não há testemunhas presenciais do levantamento de Jesus Cristo do chão dos mortos. Não há relatos, reportagens, desse momento fundamental, fundador, da fé cristã. As narrativas existentes do sucesso, ou acontecimento, dessa Ressurreição apenas nos contam a descoberta do sepulcro vazio. O capítulo XVI do Evangelho de Marcos - que a seguir te transcrevo na tradução de Frederico Lourenço - é curta, incisiva, interrogadora, quiçá cheia de uma verdade que, todavia, para a condição humana do leitor, poderá não ser assim tão evidente:

 

   Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram perfumes para irem embalsamá-lo. E muito cedo de manhã, no primeiro dia da semana, elas vão até ao sepulcro tendo já nascido o sol.

 

   E diziam entre si: «Quem rolará para nós a pedra da entrada do sepulcro?» E tendo olhado à sua volta, veem que a pedra tinha sido rolada para o lado; e era muito grande. E entrando elas no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca, e ficaram apavoradas.

 

   Ele diz-lhes: «Não vos assusteis. É Jesus, o Nazareno, que procurais, o crucificado? Ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o depuseram. Mas ide e dizei aos seus discípulos e a Pedro: "Ele vai à vossa frente, a caminho da Galileia; lá o vereis, tal como ele vos disse.»

 

   E elas, saindo, fugiram do sepulcro, pois dominava-as um tremor e um êxtase. E nada disseram a ninguém: tinham medo, pois.

  

   Assim termina uma das quatro narrativas canónicas da Boa Nova de Jesus Cristo, esta sendo, provavelmente, a mais antiga. Como se fossem todos saduceus ou, noutra hipótese, considerassem que a ressurreição dos mortos fosse algo só imaginável no após fim do mundo, do tempo e do espaço, quando rebentassem inúmeras catástrofes. Tinham medo dos fantasmas, como todos nós, nas nossas culturas, ao longo de milénios... Qualquer contacto com os espíritos dos mortos seria necessariamente obra do maligno, ou como descer aos infernos, ao Hades donde nem Orfeu logrou tirar Eurídice, mas apenas o castigo que o levou a quedar-se explodido na abóboda estelar...

 

   Já o mais tardio dos evangelhos, o de João, no seu penúltimo capítulo (o XX), reportando embora o túmulo vazio e a ausência imediata de Jesus, conta que Maria Madalena desatou a correr e foi ter com Pedro e o discípulo que Jesus amava: «Levaram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram!» Ambos então acorreram ao local, entraram no túmulo e encontraram e viram que os panos que envolviam o corpo estavam depostos, e o sudário que estivera à volta da cabeça dele não jazia juntamente com os panos, mas dobrado à parte em lugar próprio. Então, o outro discípulo, que chegara primeiro ao túmulo, entrou e viu e acreditou. Ainda não conheciam o trecho da Escritura, segundo o qual ele tinha de ressuscitar dos mortos. Os discípulos voltaram de novo para junto dos seus. E o Evangelho segundo S. João prossegue o relato da cena que nos deixa adivinhar o mistério da Ressurreição e nos põe a interroga-lo. Não só sobre o que será ou possa ser ressurgir dos mortos, mas, desde logo, sobre os modos como nos poderemos relacionar com essa eventualidade anunciada. Todos e qualquer de nós, mesmo quem tenha ou creia ter fé. Os textos de João Evangelista que seguidamente transcrevo (sempre na versão de Frederico Lourenço) são bem elucidativos do paradoxo da fé:

 

   Maria Madalena ficou de pé a chorar no exterior do túmulo. Enquanto chorava, espreitou para dentro do túmulo e viu dois anjos sentados, vestidos de branco, um à cabeça, outro aos pés, no sítio onde jazera o corpo de Jesus. E eles dizem-lhe: «Mulher, porque choras?» Ela diz-lhes: «Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. Enquanto ela dizia isto, voltou-se para trás e viu Jesus e pé e não sabia que era Jesus. Jesus diz-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que ele é o jardineiro, diz-lhe: «Senhor, se o levaste, diz-me onde o puseste e eu levo-o.» Diz-lhe Jesus: «Maria!» Ela, voltando-se, diz-lhe em hebraico: «Rabounî!» (o que quer dizer Mestre). Jesus diz-lhe: «Não me toques. Ainda não ascendi para o Pai. Vai para junto dos meus irmãos e diz-lhes: "Subo para meu Pai e vosso, Deus meu e Deus vosso".» Chega Maria Madalena anunciando aos discípulos que «vi o Senhor!» e as coisas que ele lhe disse.

 

   Antes de passar ao trecho seguinte - para voltarmos aos diferentes modos da fé - deixa-me, Princesa de mim, fazer sobre este um comentário linguístico e trazer-te uma recordação pictórica. O primeiro manifesta a minha maior simpatia por outra tradução da expressão grega "mé mo hapto": não me retenhas! Em vez de não me toques, como na latina da Vulgata, por que é sobejamente conhecida, noli me tangere. Dir-te-ei porquê, ao comentar duas representações da mesma cena: a de Hans Holbein Júnior e a de Lavínia Fontana, uma hoje presente na galeria real de Hampton Court, perto de Londres, onde a visitei com os meus netos, outra nos Uffizi de Florença, que também contemplei em tempos mais meus... À primeira, curiosamente e sem machismo algum, chamam-lhe Noli me tangere; à segunda, pintada por uma mulher, chamam Aparição de Cristo Ressuscitado a Maria Madalena...


   Jean-Luc Nancy, filósofo, escreve no seu Noli Me Tangere (Paris, Bayard, 2003): Na maioria das suas representações pictóricas, Noli me tangere dá azo a notáveis jogos de mãos: aproximação e designação do outro, arabesco de dedos afinados, prece e bênção, esboço de um toque, de um afago, indicação de prudência ou de um aviso. Todas essas mãos desenham uma promessa tenção ou retenção, de se ligarem uma às outras: na verdade, estão, muitas vezes, não só bem no centro do desenho, mas como se fossem o próprio desenho, como as mãos do pintor que diligencia e manipula o desligar dos seus dedos e das suas palmas...   ... Na verdade, essas mãos são signos e sinais da intriga de uma chegada (a de Madalena) e de uma partida (a de Jesus), mãos prontas a juntarem-se, mas já disjuntas, e tão distantes quanto a sombra da luz, mãos que trocam saudações mescladas de desejos, mãos que apontam os corpos tanto quanto designam o céu...

 

   No quadro de Holbein o Jovem, Jesus e Maria estão ambos de pé, mas ela, segurando o vaso de bálsamo com a mão esquerda, inclina-se para a frente, estendendo a direita, como para tocar em Jesus e certificar-se de que ali está mesmo o seu Mestre. Este, pelo contrário, inclina-se para trás, frustrando-se à mão que o procura, e atirando para a frente os seus dois braços, como que a mandá-la parar.

 

   Na pintura de Lavínia Fontana, também do século XVI, Jesus, vestido de jardineiro, com chapéu de palha na cabeça e uma pá ou sacho na mão esquerda, estende a direita sobre a cabeça de Madalena ajoelhada a seus pés, de braços abertos e vaso perfumador na sua mão esquerda, enquanto a direita revela uma íntima ação de graças, como se o gesto suspenso do Mestre, que não lhe toca, fosse simultaneamente uma bênção de despedida e uma promessa.

 

   Apesar das suas muitas diferenças, ambas estas representações ilustram a mesma narrativa evangélica, são a sua reportagem pictórica. Comumente, Cristo Ressuscitado é mais representado vestido de luminoso tecido branco e segurando na mão esquerda um estandarte, de semelhante alvura, sobre a qual surge uma cruz vermelha, e por vezes parece lança espetada sobre o túmulo da própria morte, pois só esta agora ali se encontra, como celebração do triunfo do Ressuscitado. Nestas duas que temos vindo a ver, apenas se conta um episódio, não há qualquer retrato de um corpo ressuscitado. A este sói chamar-se corpo glorioso, quiçá para o diferenciar dos fantasmas imaginários que tanto assombramento causam. Talvez para vencer o medo que o desconhecido sempre nos mete cá dentro. Seja o que for, se até deste mundo sabemos muito pouco, apesar de o situarmos no espaço/tempo que nos permita entendê-lo, que poderemos dizer do outro, infinito e intemporal? Assim, a glória, tal como suas derivadas verbalizações e adjetivações, são apenas conceitos que criamos, neste caso, para designar o indesignável: a realidade (que não é condicionada) da imortalidade, e o seu lugar (que ou é nenhures ou omnipresente).

 

   A fé na Ressurreição não é, pois, não pode ser, o conhecimento, nem sequer a imaginação, de algo palpável. Cristo ressuscitado já não pode continuar entre nós em condição humana, pois esta é periclitante e terminal. Muitos gostaríamos de poder retê-lo e tocar-lhe. Mas, desde o início do seu ensino, Jesus diz-nos que terá de padecer, morrer e ressuscitar para voltar para o Pai. E, em troca da sua ausência necessária, deixa-nos a memória de si e o Espírito de Vida. Deus não está connosco como se o Transcendente pudesse existir submetido à condição humana. Veio uma vez e revolucionou a nossa vida, em sentido próprio: deu-lhe a volta completa para nos pôr, a nós, outra vez, no início do mundo. Agora já como seu Corpo Místico, celebrado na ação de graças que é a Eucaristia, mas vivificado pelo Espírito Paráclito que anima o sacramento cristão por excelência: amai-vos uns aos outros.

 

   O mesmíssimo capítulo XX do Evangelho de João conta-nos, depois da narrativa da Madalena que, sem sequer ter podido tocar o Senhor, o reconheceu e foi, correndo, contar aos discípulos fechados em medos que o tinha visto, a visita que Cristo Ressuscitado lhes faz, ali onde, temerosos, se tinham trancado: «Paz para vós». E dizendo-lhes isto, mostrou-lhes as mãos e o flanco. Então, os discípulos alegraram-se ao verem o Senhor...   ... Mas Tomé, um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos diziam-lhe: «Vimos o Senhor!» Mas ele disse-lhes: «A não ser que veja nas mãos dele a marca dos pregos e ponha o meu dedo na marca dos pregos e ponha a minha mão dentro do flanco dele, não acreditarei». E oito dias depois, os discípulos estavam de novo dentro, e Tomé estava com eles. Chega Jesus, estando trancadas as portas, e pôs-se de pé a meio e disse: «Paz para vós.» Depois diz a Tomé: «Aproxima o teu dedo daqui e vê as minhas mãos e aproxima a tua mão e põe-na no meu flanco e não te tornes descrente mas sim crente.» Tomé respondeu e disse-lhe: «Meu Senhor e meu Deus.» Diz-lhe Jesus: «Porque me viste, acreditaste? Bem aventurados os que não viram e acreditaram».

 

   Caravaggio, na sua Incredulidade de São Tomé (1600-1)que vi no Neues Palais, em Potsdam, pinta com intenso realismo físico o dedo do apóstolo a meter-se no lado lancetado do Mestre, cuja mão esquerda lhe segura e empurra a direita para que toque bem a ferida. Há uma força voluntarista e serena no rosto atento de Jesus, enquanto Tomé parece atónito e confuso, e outros dois apóstolos (Pedro e João?) se debruçam como quem quer certificar-se. Não surge sangue algum, um corpo ressuscitado já está livre de qualquer sinal ou atributo de vida carnal. E qualquer certeza física da Ressurreição parece aqui deslocada, quase absurda. Pertence já ao domínio da simples fé, substância das coisas que hão de vir.

 

   Outra tela do Caravaggio, coeva desta (1601), oferece-nos, na National Gallery, em Londres, A Ceia de Emaús, um conto neotestamentário que resume bem a herança que Jesus Cristo deixa depois de morto e ressuscitado. Sentado à mesa já composta para a ceia, o Senhor é figura central, cujo braço direito se ergue sobre os alimentos presentes, em que se reconhecem o pão e o vinho eucarísticos, num gesto de bênção e oferta. À sua esquerda senta-se um discípulo (Pedro?) que, com os braços abertos em cruz, se debruça como quem abraça o gesto do Mestre. Diante deste senta-se outro discípulo que, segurando-se com força ao seu assento, fita o mesmo gesto com o maravilhamento de quem assiste a uma revelação. De pé, quase por detrás de Jesus, o estalajadeiro, com semblante muito sério, contempla e escuta os gestos e palavras do celebrante, interrogando-se, talvez, sobre o que se está na realidade passando.

 

   E em 2019, por chuvosa semana de Páscoa a tornar mais verdejantes os campos largos que avisto, também eu, minha Princesa de mim, continuo a contemplar e interrogar um mistério, na esperança de que certo dia me seja desvendado.

 

Camilo Maria    

  
Camilo Martins de Oliveira

EVOCAÇÃO DOS 150 ANOS DO TEATRO GIL VICENTE DE CASCAIS

 

Há anos evocámos aqui o Teatro Gil Vicente de Cascais no âmbito de um Passeio de Domingo, série organizada pelo Centro Nacional de Cultura, numa visita que incluiu precisamente o Teatro Gil Vicente.

 

Ora, é oportuno agora recordar que esse magnifico edifício de Teatro, que se mantém em atividade, é de certo modo percursor de tantas salas de espetáculo construídas por todo o país. E, para alem do seu alto valor arquitetónico, constitui exemplo de permanência, atividade e rentabilidade cultural. Podemos aliás lembrar a lição que o então iniciático Teatro Experimental de Cascais - TEC, fundado por Carlos Avilez em 1965, e que o dirigiu até 1977, constituiu um referencial inovador da modernização do espetáculo teatral entre nós.

 

E ainda se deve acrescentar que entre tantos espetáculos e iniciativas no âmbito do teatro, realizaram-se também numerosos concertos e demais ações no âmbito dos Cursos Musicais de Verão da Costa do Sol, que nos anos 60/70 do século passado muito marcaram a atividade cultural.

 

Ora ocorre que este ano de 2019 assinala precisamente os 150 anos da fundação do Teatro Gil Vicente de Cascais, ocorrida em 1869.  

 

Sousa Bastos, no seu icónico e hoje clássico “Diccionário do Theatro Português” (1919), refere que os trabalhos de construção foram dirigidos por um “carpinteiro de Caparide”, assim mesmo, de seu nome José Vicente Costa.

 

E mais acrescenta que nos cenários previstos para essa primeira temporada constavam “três salas ricas, uma pobre, jardim, praça e mar, e deve ser magnífico pois foi ainda pintado por Rambois e Cinatti”. São realmente grandes nomes do teatro-espetáculo, numa perspetiva histórica...

 

Mas já tivemos ocasião de evocar a relevância do Teatro Gil Vicente desde a sua fundação. Citamos a propósito Maria José Barreira de Sousa que reproduz uma longa conversa do rei D. Luis recordando espetáculos no Gil Vicente (cfr. “Cascais- 1900” 2003).

     

E referimos que em 1915 estreou no Teatro Gil Vicente uma revista, composta e cantada por um futuro maestro que tanto viria a marcar a musica e as artes de espetáculo em Portugal: nada menos do que o então muito jovem Pedro de Freitas Branco (1896-1963), figura referencial na arte e na cultura portuguesa. (“Teatros de Portugal” ed. INAPA 2006).

 

Em suma: o Teatro Gil Vicente de Cascais mantém-se em atividade e concilia, ao longo destes anos, a expressão arquitetónica da época com uma sucessiva renovação de espetáculos, de repertórios e de elencos que muito marcam a História do Teatro Português. E isto, em sucessivas conciliações de repertório clássico e contemporâneo, de autores nacionais e estrangeiros e de dramaturgos, artistas plásticos, atores, encenadores - em suma, todos os que criam de uma forma ou de outra a arte do Teatro!

 

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XLVII - NEOLOGISMOS

 

Neologismo - “emprego de palavras novas, derivadas ou formadas de outras já existentes, na mesma língua ou não” (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa). 

 

Toda e qualquer língua viva está aberta a alterações. Daí que os neologismos, em si mesmos, não sejam um problema e dificilmente se podem encarar como uma “heresia”, uma vez serem um fator de vitalidade da língua, pelo que esta sem neologismos é tida como morta.   

 

Se esses neologismos forem apenas “estrangeirismos” ou “empréstimos”, ou seja, palavras importadas de outras línguas, necessitam de uma intervenção linguística que permita a sua integração harmoniosa na língua importadora. Essa realidade releva em especial quando se trata de palavras importadas de línguas que possuem sistemas fonológicos e morfológicos diversos dos da língua importadora e com convenções ortográficas notoriamente divergentes, como sucede com o inglês e o português. Por exemplo, há a importação de palavras inglesas que são escritas e pronunciadas como em inglês sem qualquer esforço de adaptação ao sistema fonológico e morfológico do português, caso de palavras como “site”, “on line”,”drive”, “farmodrive” em que a vogal “i” se lê “ai”. E que dizer da useira e vezeira utilização por escrito da palavra “shampoo”, em desfavor da bem portuguesa “champô”?!... 

 

Uma entrada maciça de palavras importadas pode levar à descaraterização do idioma de acolhimento e, por outro lado, a que a língua que importa indiscriminadamente deixe de ser usada em contextos de comunicação técnica e científica, conducente à perda do seu estatuto de língua de ciência e de cultura.

 

É necessária uma política de planificação linguística que permita que uma língua com o estatuto de comunicação quotidiana e de aprendizagem, transite para uma língua de comunicação científica e técnica, adaptada e apetrechada para qualquer situação.

 

Não existe em Portugal uma política de língua credível, nem de planificação linguística. Mesmo ao nível da CPLP é insuficiente, na medida em que ao pretender criar-se um espaço geopolítico, cujo principal elo de união é a língua, não se vislumbra uma estratégia suficientemente sólida e concertada para a desenvolver e promover o seu uso.

 

Há ausência de uma instituição credível encarregada de proceder à normalização do português e, em particular, dos seus neologismos, uma Academia com atribuições comparáveis às da Academia Francesa ou à do país vizinho.

 

Carecemos, ainda, de um efetivo investimento na produção de materiais que possibilitem o desenvolvimento e a promoção do nosso idioma, nomeadamente de dicionários bilingues, de terminologia mono e multilingue, materiais de ensino como língua estrangeira ou para fins específicos, além de um investimento sério e programado, incluindo via internet.

 

23.04.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

A RIBEIRA DA BALEIA tinha caminhos de condições muito precárias para lhe aceder. Tinha percursos estreitos com fortes subidas e descidas suspensas em fúrias de pedras que rolavam debaixo das ferraduras dos burros tão carregados que escorregavam e, ainda de vez em quando, lá levavam com um vergão para que se não temessem do que a memória já lhes devia ter retido de tantas idas e voltas à Ribeira da Baleia.

 

Por mim iria sempre à Ribeira da Baleia desde que a Ti Jaquina Pataca me convidasse a ir com ela a este local para mim, mágico. Também ia connosco o rebanho de ovelhas que nos seguiam os passos e que se confiavam a uma certa sonolência no descer das ravinas como se não olhar fosse atitude protectora ao não cair.

 

Chegadas à Ribeira hora e meia depois de sair da aldeia, as ovelhas corriam ao pasto, os burros eram descarregados e soltos, e lá se expunha a ribeira sempre envolta numa neblina de quem tenta fugir à luz expressa. A ti Jaquina começava a tratar da horta e a refrescá-la com a farta água da ribeira. A terra molhada deitava o cheiro que só a conjugação com o verão lhe era inigualável. Depois era a hora da sandes com chouriço. Sentávamo-nos as duas em pedras escolhidas à beira da água e como sempre a ti Joaquina perguntava-me

 

Então e hoje qual é a pergunta da menina?

 

A baleia foi atirada aqui pelo mar nas marés vivas?

 

Pois dizem que não. Ela veio vindo ao engano entrando na corrente em que a ribeira chega ao mar. A ribeira deve ter-se alargado naquela noite e o mar zás! empurrou-a para a livrar de por ali morrer encalhada. E ela veio vindo devagarinho, cansada e esvaída e aqui parou de vez junto à horta.

 

Que estranho como ela se perdeu assim terra dentro. A ti Jaquina viu-a?

 

Ah claro! era enorme, de boca aberta. Não se falava de outra coisa pelas terras. Todos diziam uma baleia deu à ribeira da ti Joaquina. E iam todos lá ver.

 

E espreitou-lhe a boca?

 

Ah claro! e o que eu vi…

 

Que viu?

 

Vi o princípio do seu mundo. Vi-lhe o coração.

 

O coração?

 

Sim menina. Quando se esteve entre vida e morte o coração tem certezas e vem dizê-las à boca de todos mesmo que se não ouça nada. Também acho que ela deitava um fumo que se confundia com a neblina e lá dentro dela era tudo negro, acho que do luto. Era uma baleia defunta e a podridão dela começava ali naquela água que fazia de cemitério.

 

Pois imagino, mas sem caixão que a baleia é bicho enorme. E diga-me novamente, e depois como foi?

 

Depois vim cá passados uns dias e nada havia na ribeira. Pus-me a pensar. Quem levou a baleia e como? se era tão grande e estava morta? Perguntei ali ao vizinho da horta e ele respondeu-me grosseiro que de nada sabia e continuou a cavar como se a pergunta fosse parva de tão tonta.

 

Não gosto de coisas segredosas das quais nada resta e ao mesmo tempo parecem mistérios mentirosos.

 

Sim, mas ainda há o coração.

 

Qual coração? O da baleia?

 

Sim. A menina não sabe, mas acordar não é de dentro, acordar é ter saída mesmo nem que seja para um fiapo de vida ou morte. Tenho esta coisa comigo e fui lá dentro da boca buscar o coração da baleia. Dei-lhe campa, é no lugar das alfaces e dos cheiros que se veem, ali mesmo ao fundo. Só eu sei que está lá o coração que se enganou no caminho. E as pessoas julgam que de cima dos telhados vêm tudo…

 

Ah já sei, como lhe salvou o coração ela deve ter voltado ao mar num forte impulso de corpo e aproveitando o redondo da forma, depois, no mar, os peixes comeram-na sem que soubessem que não comeram nunca o principal.

 

Pode ser assim ti Jaquina?

 

Pode menina.

 

Teresa Bracinha Vieira

ENTRE A SEXTA-FEIRA SANTA E A PÁSCOA: SÁBADO

 

Crentes ou não crentes — quem o disse foi George Steiner — é em Sábado que vivemos. Que é que isto quer dizer? Todos, de um modo ou outro, em nós mesmos e no mundo, constatamos e vivemos a Sexta-Feira Santa do sofrimento, do horror, da violência, do silêncio e da noite, e todos, de um modo ou outro, de forma mais explícita ou menos explícita, mais consciente ou menos, é pelo Domingo, o Domingo da Páscoa, que suspiramos e esperamos, a Páscoa da salvação.

 

O que nestes dias os cristãos celebram é este Sábado, que pertence ao núcleo da existência cristã, como disse São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã também a vossa fé. Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Evidentemente, a ressurreição implica por si mesma uma meditação sobre a morte e o sentido último da existência. Uma meditação sobre o Sábado, no qual vivemos.

 

1. Na história gigantesca do universo, com 13.700 milhões de anos, o sinal distintivo de que há Homem, não já simplesmente algo, mas alguém, são os rituais funerários. A partir daí, já não estamos em presença de um animal qualquer, mas do ser humano, que sabe que sabe, que tem consciência de si, consciência de que é mortal, e que, nem que seja de modo confuso, espera para lá da morte. A consciência da morte e a esperança constituem, portanto, na História do mundo, uma novidade essencial e radical.

 

Perante a morte e a mortalidade, surge a interrogação fundamental, que está na base das artes, das filosofias, das religiões: o que é o Homem? Sabemos que somos mortais, mas ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto. Face à morte, a linguagem falha. Assim, dizemos, perante o cadáver do pai ou da mãe, de um amigo: ele/ela está aqui morto/morta. Ora, o que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, pois o que ali está não passa de restos mortais e lixo biológico. Ou dizemos que os levamos à sua última morada. Ora, quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, um amigo? Também dizemos que os vamos visitar ao cemitério. Ora, nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. O Evangelho é cru: nos cemitérios, só há ossos e podridão. Então, o que há realmente nos cemitérios, para serem considerados lugares sagrados, de tal modo que a violação de uma sepultura constitui, em todas as culturas, uma profanação e um crime nefando? O que há nos cemitérios não é senão essa pergunta radical: O que e o Homem?, o que é ser Homem?

 

Mas hoje a morte é tabu. Disso pura e simplesmente não se fala. É de mau tom chamar o tema à conversa. Se, tradicionalmente, tabu era o sexo, actualmente, a morte é que é o tabu. Mente-se às crianças, evita-se o luto, pois a grande mentira-ignorância das sociedades contemporâneas, desenvolvidas, técnicas, é a morte. Pela primeira vez na história da Humanidade, temos uma sociedade que se funda no tabu da morte, com todas as consequências. De facto, não se pense que a morte já não é problema. Pelo contrário, numa sociedade que se julga omnipotente e é poderosíssima nos meios, mas sem finalidades humanas, de tal modo a morte é problema, o único problema para o qual não tem solução que a solução é precisamente ignorá-lo, viver como se ele não existisse.

 

As razões do tabu são múltiplas. Fundamentalmente, o que se passou é que a razão esqueceu as suas múltiplas dimensões, ficando reduzida à razão instrumental, à eficiência, ao cálculo, à técnica, e o que importa é o sucesso imediato, o êxito, a juventude, o prazer, a eficácia, o consumismo sem fim. Por outro lado, vai-se impondo a desafeição face à religião, a fé vai rareando. Ora, perante a morte, o Homem faz a experiência de que não é omnipotente, de que não pertence a si mesmo, mas ao Mistério. Assim, perante a erosão da fé, cada vez se acredita menos na vida eterna. Vivemos, pois, numa sociedade sem Eternidade. Ora, sem eternidade, desfaz-se o tecido do tempo, que já não faz texto, pois só ficam instantes que se devoram, na imediatidade do gozo do momento, que se segue a outro momento, na voragem da repetição, do tédio e do sem sentido.

 

A crise do nosso tempo é uma crise global: financeira, económica, social, política, moral, religiosa. Mas é fundamentalmente uma crise da morte. Esta sociedade, para ser o que é, teve de fazer da morte tabu, esquecê-la.

 

Para reencontrar a sabedoria, impõe-se voltar ao pensamento sadio da morte. Não para envenenar a vida, mas, pelo contrário, para viver humanamente e em autenticidade. O pensamento sadio da morte dá-nos a consciência do limite, obrigando, portanto, a viver intensamente cada momento como único. A existência e as suas decisões não admitem adiamentos. Por outro lado, perante a morte, somos remetidos para a liberdade e a ética e a urgência da existência autêntica, pois o confronto com a morte leva à distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. A consciência da mortalidade desperta para a compaixão e a consciência da fraternidade humana: somos mortais; logo, somos irmãos. Quem quiser saber o que vale um homem e o que orienta verdadeiramente a sua vida pergunte-lhe o que faria, se soubesse que ia morrer no dia seguinte.

 

2. Como disse Ernst Bloch, filósofo marxista, ao mesmo tempo ateu e religioso — ele que esperava que a última música que ouvisse não fosse a das pazadas de terra na sepultura —, “o cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’. Não propriamente graças ao Sermão da Montanha. No século I depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com Ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta anos (porque não dentro de cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?”

 

Outro grande filósofo alemão, J. G. Fichte, escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida que consistisse em “eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que brota do solo”; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta de “gerar seres semelhantes a mim, para que também eles comam e bebam e morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz? Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?”  

 

Assim, para o ser humano é tão próprio saber que é mortal como esperar para lá da morte. Há aquelas perguntas in-finitas: Porque há algo e não nada? Quem sou? Para onde vou? Onde estarei, quando cá já não estiver, como inquiria Tolstoi? É insuportável andar, na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada. Se tudo desembocasse no nada, que valor teria a distinção entre bem e mal, honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade, justiça e injustiça, já que, no fim, tudo se afundaria no nada e tudo seria o mesmo: precisamente nada?

 

Há aquela pergunta in-finita, que atravessa a História: quem fará justiça às vítimas inocentes? Há um clamor na História por causa da dívida para com as vítimas da injustiça e do horror. Quem pagará essa dívida? Quem pode fazer a reconciliação com tanta injustiça e sofrimento dos inocentes? Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, tão sensível às vítimas da História e à exigência de uma justiça universal cumprida, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra” convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna. Perante a alternativa do absurdo ou do mistério, é sensato optar, com razões, pelo Mistério que salva, entregando-se-lhe confiadamente na fé, na esperança e no amor.

 

A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e, lá no final, só há uma alternativa, porque todos caminhamos para a eternidade: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus.

 

O cristianismo mantém-se ou afunda-se pela verdade e a fé ou não no Jesus que foi crucificado e que é agora, para sempre, o Vivente em Deus. Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos“ e que tinham acreditado em Jesus como o Messias continuaram a crer nele, após a sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da sua vida e mensagem por palavras e obras até à morte: que Deus é Amor. Depois da crucifixão, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, como promessa e esperança de vida plena e eterna para todos. O Deus que tudo criou por amor a partir do nada, a quem Jesus se dirigia como Abbá (Pai/Mãe), não é um Deus de mortos, mas de vivos. E disso deram testemunho até à morte, testemunho que chegou até nós.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 20 ABR 2019

O CHINÊS QUE NOS FAZ FALTA

 

Falta um chi­nês ao “East of Eden” de Elia Kazan. A Europa sem­pre teve sonhos de Ori­ente e os poe­tas por­tu­gue­ses tam­bém, de Camões a Pes­sa­nha, Wen­ces­lau, o ópio de Pes­soa. Vol­tá­mos agora, paté­ti­cos, a sonhar com o chi­nês que nos falta.

 

Mas, enter­ne­cido com James Dean, Elia Kazan eli­diu o chi­nês do seu “East of Eden”. Não admira que tenha ficado ligei­ra­mente a leste do paraíso. No romance de John Stein­beck, que o filme adap­tou, havia um chi­nês. Lee não é só o cozi­nheiro e fiel secre­tá­rio de Adam Trask, o pai da per­so­na­gem de James Dean. Falando pid­gin, dizendo “amé­lica” em vez de “amé­rica” ou “pol­tu­gal” se no romance tivesse de dizer “por­tu­gal”, Lee, o cozi­nheiro chi­nês, é o sopro de vida que rea­nima Adam quando a mulher em fuga o deixa à morte. No romance de Stein­beck, o chi­nês Lee é a res­sur­rei­ção e a vida. Sub­til, subli­mi­nar, mas a segura âncora que evita a deriva e o nau­frá­gio do pai de James Dean.

 

Mais do que a impor­tan­tís­sima dis­cri­ção com que marca a trama do romance, Lee cons­ti­tui o seu cen­tro filo­só­fico. Num romance com uma tão forte carga de fata­li­dade, em que os pares de irmãos pare­cem nas­cer só para repe­tir o mito de Caim e Abel, Lee, obs­ti­nado lei­tor do “Gene­sis”, repete-lhes uma pala­vra que é pala­vra de reden­ção, “timshel”.

 

Somos os des­cen­den­tes de Caim, irmão assas­sino do seu irmão. Mas con­vém não esque­cer que no libelo acu­sa­tó­rio do velho Jeová con­tra Caim não res­soam ape­nas os tro­vões da culpa e da expi­a­ção. Esse Deus, que ainda traz nos lar­gos ouvi­dos o cla­mor do san­gue de Abel, parece pro­me­ter ou orde­nar que o assas­sino triunfe sobre o mal. Lee, o cozi­nheiro chi­nês, é um mineiro da pala­vra. Escava e revela, pri­meiro a Adam, o pai, depois a Caleb, o filho que no filme é James Dean, que Deus nem pro­me­teu, nem orde­nou. Deus diz “timshel” a esse homem que vai ser um fugi­tivo errante sobre a terra. O que quer dizer que ele pode, ou não, triun­far sobre o mal, con­forme queira e saiba a sua humana von­tade. “Timshel” é a pala­vra que, posta nas mãos do homem, lhe con­fere a esta­tura de um deus.

 

Tu podes. James Dean deve­ria no filme, como acon­tece a Caleb no livro, ouvir “tu podes” da boca do seu cozi­nheiro chi­nês. Sabe­ria assim que, desde o “Gene­sis”, nos é con­ce­dido esco­lher e deci­dir. O Caleb que James Dean é no filme de Kazan tortura-se, supondo que her­dou da mãe o mal que o cor­rói, o res­sen­ti­mento con­tra o pai, o ódio ao irmão. A fata­li­dade é a mais velha teo­ria da conspiração.

 

Tam­bém hoje, náu­fra­gos da crise, em pleno olho do fura­cão, somos ten­ta­dos a agarrar-nos ao des­tino, a velhas e novas teo­rias da cons­pi­ra­ção. Como ao James Dean de Kazan, falta-nos o cozi­nheiro chi­nês, exe­geta da Bíblia dos oci­den­tais, para nos vir dizer “tu podes”, devolvendo-nos a res­pon­sa­bi­li­dade da esco­lha que, sendo só humana, nos con­verte nos únicos deu­ses desta terra.

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 22 a 28 de abril de 2019

 

 

«Notre-Dame de Paris», de Victor Hugo, de 1831-32, foi escrito como um grito de alerta contra a degradação do monumento e o risco da sua destruição. A obra deve ser revisitada quando há dias presenciámos o trágico incêndio.

 

 

SUBLIME E MAJESTOSA
Se a Catedral de Notre-Dame era sublime e majestosa, o jovem Victor Hugo (1802-1885) não podia deixar de se indignar, ao lado do Abbé Gregoire, contra o vandalismo, “perante a degradação e as mutilações de todo o tipo que os homens e a passagem do tempo infligiram a este venerável monumento”. A publicação do romance constituiu o detonador de uma grande campanha, que culminaria em julho de 1845, com a aprovação de uma importante decisão no sentido do restauro e conservação da catedral, cuja concretização se deveu ao arquiteto Eugène Viollet-Le Duc (1814-1879). Victor Hugo escreveu o seu romance quando ainda não tinha trinta anos e foi inspirado por Walter Scott e pelas referências do romantismo. A história concebida pelo romancista situa-se na cidade de Paris, no ano de 1482, e é protagonizada pela própria Catedral e por um enredo centrado em Esmeralda, jovem cigana que dançava na praça fronteira à Catedral de Notre-Dame, no arcediago Claudio Frollo, que se deixa atrair pela beleza da bailarina e em Quasimodo, um homem disforme que vivia na catedral, onde fora abandonado em criança. O arcediago pede a Quasimodo que rapte a jovem, mas Esmeralda é salva por um grupo de soldados, comandado pelo capitão Phoebus de Châteaupers, por quem se deixa envolver amorosamente. Apesar de comprometido com Fleur de Lis, Phoebus fica seduzido pela cigana e marca um encontro para um local recôndito. Claudio Frollo surpreende-os, porém, nesse encontro e mata o capitão, apunhalando-o. Num sórdido processo de chantagem, Esmeralda é acusada de assassinato, mas recusa entregar-se a Frollo, ainda que essa fosse a única forma de escapar à pena capital. No momento terrível da execução, no átrio da catedral, aparece Quasimodo, que também ama a bailarina cigana, tomando-a nos braços e levando-a para dentro do templo, onde estaria protegida, segundo as leis da cidade. Quasimodo passa a noite a cuidar de Esmeralda. Contudo um grupo de amigos de Esmeralda vem libertá-la, forçando a entrada da Catedral. Quasimodo defende sozinho a igreja, com o que dispõe: pedras, barras de ferro, madeira e chumbo derretido. Mas Frollo aproveita-se do tumulto para fugir com Esmeralda, que resiste. Furioso com esta recusa, o arcediago entrega a jovem a uma velha considerada louca, que vivia no "buraco dos ratos". Ao invés de lhe fazer mal, a velha reconhece em Esmeralda a sua própria filha e a poupa-a. Mas esta não consegue desfrutar de uma paz muito longa. Os guardas da cidade encontram-na e encaminham-na novamente para o lugar da execução, na praça da catedral. Do alto da Notre Dame, Quasimodo e Claudio Frollo assistem à execução. Quasimodo, louco de desespero, atira o clérigo do alto da torre e desaparece para sempre. Muito tempo depois, ao ser aberto o ossário de Montfaucon, local onde Esmeralda foi sepultada, foram encontrados dois esqueletos abraçados; um deles, com uma visível deformação...

 

DEFENDER O PATRIMÓNIO CULTURAL
Haveria que preservar o património medieval e daí a escolha da Notre-Dame, sobretudo porque nesse tempo a Catedral estava ameaçada pelo vandalismo e pelos projetos de renovação da cidade. O grande sucesso do livro permitirá lançar a celebridade do seu jovem autor e suscitar a tomada de consciência para a necessidade absoluta do restauro desse património cultural de valor incalculável. Se lermos a literatura desse tempo, fácil é de verificar como Victor Hugo se tornou o grande defensor da Catedral, como coração da cidade de Paris. Michelet disse mesmo que, desejando falar da Notre-Dame, tinha de reconhecer que Victor Hugo definiu uma “marca de leão” para o monumento, a ponto de ninguém mais poder tocar-lhe, já que construiu ao lado da velha catedral uma verdadeira catedral de poesia, “tão firme como os fundamentos da outra, tão alta como as suas torres”. Também Nerval escreveu no incerto ano de 1830: “A Notre-Dame é bem antiga, mas vê-la-emos talvez enterrar Paris, a cidade que a viu nascer”. E imagina as pessoas daqui a mil anos a virem contemplar o monumento, relendo a obra de Hugo. Théophile Gautier (em 1838) em “La Comédie de la Mort” invoca a glória desse lugar que « permite alargar a alma ». E Paul Claudel, em “Ma Conversion” (1913), considera, porém, que Hugo de certo modo tira espiritualidade à Catedral – fazendo dela cenário de um romance cheio de paixões mundanas. Foi na Catedral de Notre-Dame, em lugar que perfeitamente se conhece, que ocorreu a célebre conversão religiosa do poeta, em 25 de dezembro de 1886, com 18 anos, tocado por uma “revelação inefável”. Também Charles Péguy, no célebre poema sobre a Esperança, tão justamente invocado por João Bénard da Costa, enumera os santos padroeiros de Paris esculpidos nos portais da Catedral. Não devendo esquecer-se ainda Louis Aragon, em “Paris 42” e em “Aurélien”, que identifica a Notre-Dame, ela mesma, como “catedral de poesia”.

 

UMA HISTÓRIA CONTRA A INDIFERENÇA
Mas a história da Notre-Dame está cheia de vicissitudes – que começam antes do século XII, quando foi decidido edificá-la, uma vez que está construída num campo com profundas raízes histórico-religiosas, gaulesas, romanas, merovíngias. Sem cuidar duma existência medieval muito rica, lembremo-nos apenas da história recente. Em 1793, em plena Revolução Francesa, vinte oito estátuas representando os reis de Judá, que ornavam a fachada, foram decapitadas. Ainda na Revolução, a Catedral foi fugazmente consagrada como Templo da Razão durante a Convenção, voltando a ter uso religioso no Consulado, após a assinatura em 1801 da Concordata com o Papa Pio VII. Como se vê no célebre quadro de Jacques Louis David, aí tem lugar a sagração de Napoleão como Imperador dos franceses. Mas, sendo um tempo de incertezas, o muito jovem Victor-Hugo em 1825 dirá: “há duas coisas num edifício, o seu uso e a sua beleza: o seu uso pertence ao proprietário; a sua beleza a todos, a vós, a mim, a nós”. E é a partir daqui que empreende uma guerra contra os “demolidores”, que se preparavam para sacrificar essa joia insubstituível. E é neste ponto que Victor-Hugo, à maneira romântica, transforma a Catedral em personagem, tornando-a verdadeiro exemplo de um património comum dos franceses. Com o tempo, viria a ser reconhecida como Património da Humanidade, pela UNESCO – sendo naturalmente Património comum europeu, de acordo com os objetivos da Convenção de Faro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea. E o exemplo da Notre-Dame é pioneiro. Na sequência da campanha do jovem Hugo, referência maior do romantismo europeu, Prosper Merimée (1803-1870) é nomeado Inspetor-Geral dos Monumentos Históricos e o arquiteto Eugène Viollet-le-Duc dirige as obras de restauro e reconstrução da Notre-Dame a partir de 1843, durante a monarquia de julho. As orientações do arquiteto não são isentas de crítica, mas assentam num pensamento baseado na necessidade de valorizar o Património Cultural (que entre nós é partilhado por Gerrett e Herculano). Aumenta o número de gárgulas, com exuberância decorativa, nasce o pináculo de madeira coberta de chumbo, que agora ficou destruído – e define-se um novo cânon para a salvaguarda do património. Mas a relação política da França para com a Catedral vai ser ambígua. É certo que a valorização da Notre-Dame se insere no ambicioso plano urbanístico de Haussmann. Napoleão III casa-se na Catedral em 1853 com Eugénia de Montijo, mas a III República vai ignorar o monumento, que apesar de tudo admira, mas de que desconfia ao mesmo tempo. Mesmo a sociedade laica respeita, contudo, o lugar de memória – que lembra as raízes mais profundas e ricas da identidade nacional. O general Charles De Gaulle na célebre jornada de 26 de agosto de 1944, na libertação de Paris, fez celebrar uma cerimónia religiosa na Notre-Dame, na condição de não ser presidida pelo então Cardeal Arcebispo de Paris, Emmanuel Suhard, dadas as suas simpatias colaboracionistas. De Gaulle e Mitterrand terão as suas exéquias na Catedral de Notre-Dame, o que constitui uma exceção. No caso de François Mitterrand, só as cerimónias oficiais aí tiveram lugar, distinguindo as esferas pública e privada. E Françoise Giroud disse: “houve qualquer coisa de extraordinário no facto de o único discurso pronunciado ao longo desses dias de luto ter sido a homília do Cardeal Lustiger, como se a República não tivesse outros meios para honrar os seus grandes mortos senão o de os confiar à Igreja”. Porque decerto pesou o lugar de memória… Notre-Dame está, assim, bem presente na memória de todos – a sua reconstrução constitui um dever de fidelidade à História e à Cultura…  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - VI

 

Minha Princesa de mim:

 

   No início da celebração desta Páscoa cristã, em Domingo de Ramos, antes da narrativa evangélica da Paixão de Jesus (que em cada ano é recolhida dum dos três sinópticos, Mateus, Marcos ou Lucas), somos sempre chamados a meditá-la com a ajuda de dois textos bíblicos, cuja leitura precede aquela: o primeiro, extraído do Livro de Isaías, vem lembrar-nos a virtude da fortaleza ; o segundo, tirado da Carta de São Paulo aos Filipenses, irá concluir que a auto aniquilação em serviço dos outros é sinal de vitória do bem sobre o mal, e razão de glória. Não é fraqueza, é fortaleza suprema. Vejamos cada um deles:

 

   Isaías - O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, para eu escutar como escutam os discípulos. O Senhor Deus abriu-me os ouvidos, e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o rosto dos que me insultavam ou cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio, e por isso não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido.

 

   Não consta haver aqui qualquer tibieza. Apenas força e profunda consciência dela como dom e aprendizagem.

 

   Paulo - Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte, e morte na cruz. Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e que toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.

 

   Repara bem, minha Princesa de mim: não há vida sem morte, nem qualquer possível glória sem padecimento e obediência. Por não ter entendido isto do mesmo modo, o Islão primitivo logo se distingue do Cristianismo: apesar de acolher Jesus como um dos seus profetas maiores, e também celebrar Maria como sua mãe sempre virgem, o Corão negará bem expressamente a crucifixão e morte de Jesus, pois que admiti-las seria como aceitar a fraqueza de Deus. As primeiras comunidades cristãs, pelo contrário, desde muito cedo comemoram a Paixão e Morte de Jesus Cristo, sendo o dia aniversário desta, Sexta Feira Santa, dia de muita celebração religiosa, sobretudo na própria comunidade de Jerusalém. Na verdade, aí se situam os lugares dos próprios autos narrados no evangelho de João, cuja leitura é hoje feita na liturgia da Palavra de Sexta Feira Santa, que também compreende mais um trecho do "Servo do Senhor" de Isaías e um passo da carta de Paulo aos Hebreus, assim retomando as lições de Domingo de Ramos ou da Paixão. E nessa tarde da crucifixão e morte do Senhor, esta é lembrada como redentora (a morte de Cristo é a morte da morte) e suscita uma oração universal que confia todos os seres à obra dessa Redenção. Os participantes em tal liturgia vão ainda adorar a cruz como seu símbolo triunfante, rezar o Pai Nosso e comungar no Corpo de Cristo.

 

   Já no sábado imediato, ficam os lugares de culto silenciosos e vazios, como os seus próprios tabernáculos. É dia de silêncio a alimentar a esperança que na Vigília Pascal explodirá em alegria e cânticos de aleluia. Nesse dia, sempre contemplo e medito a descida à mansão dos mortos. Faço-o no mesmo modo em que olhando, por dias sombrios de Inverno, a aparente desolação de campos mudos e tristes, escuto o silêncio a dizer-me que há muita vida ali esconsa, vida que verei quando, colorida e alegre, estalar a Primavera.  E é disso que te quero falar hoje. Pertence a uma tradição muito antiga da piedade cristã, sem todavia ter qualquer fundamentação bíblica, com exceção, talvez, de um passo da 1.ª carta de S. Pedro (3, 18-19): O próprio Cristo morreu uma vez só pelos pecados - o Justo pelos injustos - para vos levar a Deus. Morreu segundo a carne, mas voltou à vida pelo Espírito. Foi por este Espírito que ele foi pregar às almas que estavam na prisão da morte... Só um século depois, a literatura patrística comentará o tema. Começo por citar Santo Ireneu de Lyon, e continuarei com as observações de Éliane e Régis Burnet (Décoder un tableau religieux, Paris, Le Cerf, 2018) sobre o fresco de Andrea da Firenze, reproduzido no livro, que representa a descida de Cristo aos limbos ou, se preferires, aos infernos, em Sábado Santo, pintado entre 1365-1368, e que pude ver na capela espanhola de Santa Maria Novella, em Florença). Escreve, na sua Contra as Heresias, IV, 27, 1, aquele Padre da Igreja, do século IV:

 

O Senhor, o Santo de Israel, pensou nos seus mortos, que dormiam em seus túmulos, e desceu até eles para anunciar a salvação, para os tirar de lá e libertá-los... Continua o casal Burnet: Entretanto, Santo Efrém, o Sírio (+373), acrescenta, num hino litúrgico : «Glória a ti que desceste e mergulhaste nas profundezas, para ali ires buscar Adão, que libertaste do Hades, a fim de o conduzires ao Paraíso!» (Carmina Nisebena, 65). E todos os da minha geração se lembram ainda do Símbolo dos Apóstolos ou Credo que aprendemos a recitar ainda pequenos, e em que professávamos a fé em Jesus Cristo que padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos (hoje diz-se "à mansão dos mortos"), ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai, e donde virá julgar os vivos e os mortos...

 

   Continuam então os Burdet: Mas estes textos fornecem poucos elementos suscetíveis de dar lugar a representações iconográficas. Um pretexto virá com o «Evangelho de Nicodemos», obra do século IV:

 

   «Então, o Rei de Glória, esmagando sob a sua Majestade a Morte a seus pés, e prendendo Satanás, privou o inferno de todo o seu poder e reconduziu Adão à claridade da sua luz. E o Senhor, estendendo a mão, fez o sinal da cruz sobre Adão e todos os santos e, pegando na mão direita de Adão, ergueu-o dos infernos. Com todos os santos atrás dele.

 

   Eis aí todos os elementos que serão depois retomados: o esmagamento da Morte e de Satanás; o sinal da cruz sobre os santos; o pegar na mão direita de Adão e o cortejo dos santos em direção ao céu.

 

   Tudo isso é representado no fresco de Andrea da Firenze. E me faz pensarsentir um mistério com que vibro mais intensamente em dias de silêncio, quando o luto e a alegria entre si disputam o meu espaço mais íntimo: algo que me ensinaram quando menino, e dá pelo nome secreto de comunhão dos santos. Jovem ainda, parafraseava para os meus botões uns versos do Alexandre O´Neill que eu dizia assim: "Humanos somos nós todos / desde pequenos / Humanos somos nós todos / e nunca menos"... [Se não me falha a memória, como diria o Nemésio, os versos do O´Neill (eram, ou não dele?) rezavam assim: "Burgueses somos nós todos / desde pequenos / burgueses somos nós todos / ou ainda menos"... Como doutros, na minha memória, a ordem desses versos é arbitrária.]

 

   É claro que te falo de experiências vividas por mim na minha cultura. Mas marcaram-me, e continuo a vivê-las. Entretanto, também fui aprendendo que os primeiros cristãos - pese embora a proximidade histórica com o próprio Jesus Cristo, ou quiçá por isso mesmo - tiveram de ir aprendendo a reler a mensagem de Jesus, como apontado por Enrico Norelli (La Nascita del Cristianesimo, Il Mulino, Bolonha, 2014): Tal mensagem parecia estar ligada à perspetiva da eminência de um tempo em que Deus iria mudar radicalmente a condição dos pobres e dos excluídos. Tal expectativa foi completada pelos discípulos com a espera do regresso glorioso (a "parusia") de Jesus como enviado de Deus. Mas também se gorou esta expectativa, e os historiadores modernos facilmente atribuíram a tal «atraso da parusia» a profunda transformação da mensagem de Jesus: substituiu-se a tensão para a iminência do Reino de Deus pela adaptação temporária ao mundo, por tempo indeterminado, e criaram-se os instrumentos assim necessários. Por mim, Princesa, comecei a olhar pela perspetiva da comunhão dos santos para essa tão piedosa tradição que lembrava, em Sábado Santo, festa tumular, a descida de Jesus à mansão dos mortos, para os ir buscar e levar na sua Ressurreição. Uma grande e feliz Páscoa para os humanos que a morte fez esquecer...

 

   Feliz Páscoa, digo, demos todos nós também esse feliz passo para além, minha Princesa de mim!

 

 Camilo Maria

  

P.S. - A notícia, violenta e súbita, do incêndio destruidor de Notre Dame de Paris, vem realçar a lembrança de que vivemos no efémero, bem como, paradoxalmente, ao efémero sempre nos atemos, em busca da permanência... A catedral de Paris, por exemplo, esteve para ser demolida, propositadamente, devido ao estado de abandono e decrepitude em que se encontrava, no segundo quartel do século XIX. Salvou-a a popularidade que lhe conseguiu o romance de Victor Hugo, em que Nostradamus e Esmeralda viveram os seus amores no refúgio de um terraço superior do templo. Creio que foi em 1843, que começaram, então, as obras de restauração do monumento antes condenado, agora com a flecha central, creio eu, arquitetada por Viollet Le Duc. Parece que, agora, o incêndio terá começado precisamente em estruturas de novas obras de restauração... Esta memória leva-me a visitar, por fotografias e filmes, já que não posso mais viajar, a exposição Tu me fais revivre, da pintora e pastora protestante Beatrice Hollard-Beau, patente no claustro das Billettes, em Paris, de 11 a 23 deste mês de abril. Diz a própria artista: Reviver é uma longa experiência. É recair e voltar a subir e, a dada altura, tomar consciência de que, quando pensávamos reviver graças às nossas próprias forças, não revivemos sozinhos...   ... Reviver é Deus que nos encontra no meio da Cruz, no meio das nossas cruzes. Deus que nos dá um projeto mais forte do que imagináramos. Creio que é no fundo da Cruz e nas coisas piores que podem acontecer as mais bonitas. É preciso ir até lá, mesmo até à morte. Porque é a morte que nos dá a esperança viva do Cristo vivo.

Camilo Martins de Oliveira

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