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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

QUE NÃO SE JEJUE NO AMOR!

 

O Padre Anselmo Borges publicou aqui a 27 de março do corrente um texto de entrançadas e acutilantes reflexões, nomeadamente sobre o jejum, o silêncio, a espiritualidade, entre outras temáticas que certeiramente acudiram às relações que estabeleceu para refletir sobre Quaresma e mundo.

 

Imaginei um mastro e as velas à volta dele, amarradas por sua própria diligência numa autossubmissão total. Imaginei que o próprio mastro era líquido como se nem o próprio Caos tivesse morada para onde se enviassem as orações a um deus cristão. Registei o quanto as tempestades atuais não se anunciam pois já vivem acomodadas, silenciosas dentro de cada um, e, sem fúria que as faça explodir antes que provoquem dor e morte ao sol nascituro.

 

Registo cada vez mais o quanto ninguém suporta o silêncio por não ser ele ruído bastante ao próprio não-ser da vida que se aceita tal qual, indecifrada e acerada. Reconhecer que o silêncio é o da natureza no diálogo com o nosso interior, seria saber o quanto a Poesia é a fala do silêncio que leva os homens a viverem altaneiros e não escravos.

 

E a perceção transtorna-se quando a espiritualidade que se atinge é de facto aquela que faz sentir que a soma dos prazeres seja o sinónimo de felicidade. Assim as hierarquias vão preferindo os apáticos e os abúlicos que se conformam até com os cânones dos Bancos que, abrindo falências por vontades óbvias, codificam a ordem social, insaciados do mal que nos fazem e afinal, nunca perseguidos nem exemplarmente aniquilados os que por seus atos os representaram ou representam. E tudo tem a sua ligação ao tal silêncio das tempestades, à tal espiritualidade de fácil aquisição em hora de saldos. 

 

O pó nefasto e inclemente não aborrece nem fustiga as ideias, parece que se entrou há muito, num doravante, um doravante que é o não medo e a não esperança que liberta os homens de uma tarefa perigosa: a de sondarem razões.

 

E imagino de novo a vida como um mastro liquido exposto a um céu pedrado, permitindo por frestas um sol enganador e sob ele as testas dos homens a bronzearem vaidades, hipocrisias, invejas, cobardias, minudências, jejuns de excessos, aguas indivisas de solidariedade, enfim tudo o que infecta e é presente e justifica a razão de se jejuar sim, até no amor, como se este jejum não fosse o da queda explícita das relações da humanidade que prefere ser bastarda de um rei a dar a mão revoltada à condição comum que a identifica como criada à sombra da fórmula despida de qualquer senso.

 

Olho pela janela do texto do Padre Anselmo e dali envio-lhe a ave que se perdeu do mundo e que na minha porta hoje vacilou, numa vertigem. Quanta injustiça! A solidão acompanhada não lhe zela o sofrer; nós no mundo a fazer-lhe crer os deuses bons; as indiferenças homéricas atiraram-na à Sorte, àquela que umas vezes escuta as preces face aos holocaustos, outras não.

 

E só sei que jejuar no amor não é desocultá-lo. E só sei que à minha volta devo saber interpretar este universo miniaturizado. Também só sei que a palavra não pode ser como mise en abyme; e também só sei que convoco a ideia, aquela que se possa coabitar e por ela se saiba distender o tempo buscando aquele que se perdeu.

 

Teresa Bracinha Vieira