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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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COLÓQUIO SOBRE GARRETT E O TEATRO DE D. MARIA II

 

Em 15 de abril último, a SHIP organizou um colóquio sobre “O Teatro Nacional D. Maria II e Almeida Garrett”, assim intitulado e abrangendo temas relevantes na época e ainda hoje. Porque, para além da qualidade em si mesma da dramaturgia de Garrett, nada mais adequado do que evocar e analisar a importância da sua obra e da sua atividade literária mas também, como sabemos, política e social, tudo isto na introdução do romantismo.

 

Tive o gosto de participar nesse colóquio, que precedeu a inauguração de uma placa alusiva à permanência do escritor no que é hoje o Palácio da Independência. Foi-me solicitada uma intervenção sobre “Garrett e a Renovação do Teatro Português”.  Tema vasto e envolvente, sobretudo na perspetiva da renovação que efetivamente Garrett trouxe à cena e à dramaturgia, tendo sobretudo em vista três fatores determinantes: a qualidade, a inovação da linguagem e o sentido de espetáculo.

 

Outros participantes foram José Alarcão Troni, Presidente da SHIP, Annabela Rita, Fernando Larcher e Pedro Saraiva. E foi inaugurada uma placa alusiva a Garrett.

 

Referimos as três características da dramaturgia garrettiana - qualidade, inovação, sentido do espetáculo -  tendo em vista, entretanto, que a obra dramatúrgica que chegou até nós constitui quase um resquício daquilo que o autor ao longo da vida imaginou e de que restam, além das peças conhecidas e consagradas, para cima de mais 15 títulos.

 

Sabe-se que Garrett se interessou pelo teatro desde os 12 anos, aí por 1813. Ele próprio o assume, no prefácio da “Mérope” (1819), primeira peça que chegou até nós. Segue-se o “Catão” (1821), e em ambas concilia, de forma notável, a tradição clássica com uma força já característica da renovação romântica do teatro de Garrett, como tal iniciático entre nós.

 

Essa força romântica é pois patente mesmo nestes textos que modelam mas renovam o modelo da tradição clássica. E essa renovação consubstancia-se sobretudo a partir de “Um Auto de Gil Vicente”, de 1838, peça iniciática do teatro romântico português. Aí encontramos a conciliação do tema histórico com uma inovação linguística e estilística que marcará, durante décadas, o romantismo no nosso teatro.

 

E mais: a conciliação do tema histórico em si mesmo com a força sentimental do romantismo, abre portas a uma nova e renovadora abordagem do teatro português, na conciliação da perspetiva histórica dos temas e dos personagens, com a então atualidade/modernidade do sentimento, que cobre da tragédia à comédia, da História à atualidade.

 

E tudo isto numa perspetiva de reivindicação dos valores na época como hoje impositivos da liberdade. Mesmo nas peças históricas que rigorosamente situam o envolvimento epocal, mas nem por isso abrem mão dos valores dominantes da liberdade: e esses valores conferem a cada uma das peças um pujante sentido de atualidade, isto para lá da qualidade de escrita, de linguagem e de espetáculo.

 

Mesmo quando assume o classicismo histórico: mas de forma totalmente conciliada com o estilo romântico. Veja-se designadamente as iniciáticas “Mérope” e “Catão”, para não falar nas peças que mergulham diretamente no temário da História de Portugal.

 

E desde logo o próprio “Frei Luís de Sousa” mas também expressões da história e da cultura, como são por exemplo notável “Um Auto de Gil Vicente”, “D. Filipa de Vilhena” “O Alfageme de Santarém” ou “A Sobrinha do Marquês” que constituirá, nesse aspeto, talvez o mais peculiar da dramaturgia de Garrett.

 

Veremos, em próximos artigos, outros aspetos da dramaturgia renovadora de Almeida Garrett.

 


DUARTE IVO CRUZ 
 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XLVI - CAMÕES E O BRASIL

 

A língua portuguesa é um idioma global, intercontinental e transnacional, com centenas de milhões de falantes disseminados por várias latitudes.

 

Tendo tido como ponto de partida a Europa, está essencialmente implantada, nos dias de hoje, em espaços fora do continente europeu, com especial densidade no continente americano e africano.  

 

Indicia-se que o futuro global da futura globalização do nosso idioma será protagonizado e revitalizado de fora da Europa, nomeadamente através do continente sul-americano, via Brasil (o “imenso Portugal”, cantado por Chico Buarque), um país de escala continental e potência emergente.

 

Os emigrantes que a Europa recebe e de que necessita, também operarão essa revitalização.        

 

Tendo como referência a liderança dos Estados Unidos, com a projeção e prestígio global do inglês, são os descendentes da velha Europa imperial os novos impérios linguísticos do futuro, o que, por agora, se aplica ao Brasil, no que toca ao português. 

 

Todavia, o poema épico por excelência que canta as façanhas e os feitos dos portugueses (“Os Lusíadas”) é omisso quanto ao Brasil.

 

Camões celebra a epopeia portuguesa em África e na Ásia, mas não na América.   Sendo Os Lusíadas   parte integrante do imaginário nacional, assinalando e cantando a história do Portugal guerreiro e marinheiro, falta-lhe assinalar, cantar e priorizar as navegações portuguesas que nos levaram até ao Brasil.  

 

Há em Camões e no seu poema épico um Portugal marinheiro omitido, não cantado, nem celebrado, atenta a enorme importância do Brasil para Portugal e para a nossa história, pois embora a viagem de Vasco da Gama seja o motivo central, o assunto principal d`Os Lusíadas é toda a história de Portugal (não a viagem do Gama à Índia). 

 

Nos tempos atuais, para nós, portugueses, a importância do Brasil, por confronto com a Índia, é incomparavelmente superior, fazendo parte do nosso imaginário.

 

Será que esta amputação terá contribuído para um certo alheamento entre Portugal e Brasil, que foi atenuada séculos depois pela fuga da família real portuguesa às invasões napoleónicas?

 

Um promissor estudo de caso (case study).

 

16.04.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

A VIDA, O SEU TERMO, O SONHO, A NÃO ESPERANÇA: EIS A SUA MATÉRIA

 

A desproporção de forças infetantes que se reproduzem sucessivamente, a grande praga que dizima os seres, que carcome as rochas, os ares, as águas e vaza os lixos na vida, refugo letal onde se adormece um sono, assim a Absurdidade comunica os seus poderes termiteiros e mercantis, somatórios ávidos do ter.

 

A profundidade a que todos, de um modo ou de outro, permitimos que no mundo se venceria pela força do que constrange e obnubila, permitiu que os domínios interditos de quem mata a espessura da vida fosse contada, e mesmo exposta, sem que uma multidão em número e vontade excedesse a soma das forças de todos os que fizeram chegar o mundo ao nível do lixo como desígnio.

 

Todavia as silenciosas contas bancárias dos responsáveis pelo suposto não saber dos atos criminosos que provocaram e provocam, elevam os rendimentos ao limite superior do possível e reduzem ao mínimo qualquer custo de manutenção do esconder dos seus atos, agindo como inimputáveis pois a máquina construída os protegerá passo a passo.

 

A terra continua a ser devastada pela violência dos monstros que alcatroam mandos de morte com a finalidade de que, à superfície, o cenário tenha brilho e atraia aparências de vidas que não denunciam o simulacro do que lhes é dado viver já que no imediato nem o reconhecem como tal.

 

Na fotografia, este menino dorme e desconhece que também lhe simularam o céu sob o qual adormeceu.

 

Sonhará este menino com o abrir de uma caixa própria, uma caixa de algo que lhe é muito precioso e o embala até a encontrar vazia e do sonho acordará num sem número de pesadelos reais?

 

Desconheço as contabilidades que se fazem neste pseudo mundo que troca capital por lixo e no qual adormecem crianças em nojentos colchões que boiam nas lixeiras, lixeiras criadas pelos manipuladores dos fátuos fogos que obscurecem até o futuro das luzes das estrelas.

 

Promove-se a guerra de todos contra todos: assim Hobbes, assim o emaranhamento das corrupções, teia de submissões articuladas no plexo do lixo.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Neutelings Riedijk e as iconografias volumétricas.

 

‘Laziness, one of the seven cardinal sins, is one of an architect’s most useful characteristics. The combination of diligence and ambition is highly dangerous; the combination of laziness and ambition ensures a pleasing balance, which often leads to happy results because compensating for laziness requires the application of ingenuity.’, W. J. Neutelings

 

Para Neutelings Riedijk os edifícios são acima de tudo esculturas na cidade. Por isso, são objetos devem ter um forte carácter, ser facilmente identificáveis, concretizar um programa específico e conseguir expressar as intenções mais subjetivas. As formas esculpidas na cidade criam, para Neutelings Riedijk, necessariamente iconografias volumétricas, e estas são conseguidas através de:

 

Persuasão - é ao arquiteto que compete convencer o cliente a renunciar à ideia de que a construção é um fim em si mesmo e é o único modo de criar valor acrescentado.

 

‘It seems to me that more laziness amongst Dutch designers is the only cure for the thundering avalanche of ever more cheerful street furniture, inimitable public works of art, constantly changing traffic situations and a succession of incomprehensible town plans.’, W. J. Neutelings

 

Contextualização - para garantir qualidade de vida, contacto físico direto com o dia a dia do indivíduo, é muito importante afirmar como certa, uma relação aberta, do objeto construído com a restante cidade e o seu espaço público envolvente.

 

Reutilização de edifícios - este instrumento ecológico, no processo de projeto, pode ser muito eficaz e durável ao revelar a necessidade de construir muito pouco ou até mesmo revelar a possibilidade de reciclar por inteiro um edifício preexistente.

 

Reutilização de tipologias e conceitos - a ação de retirar da história da arquitetura exemplos e experiências, pode trazer uma riqueza interminável de soluções.

 

Organização matemática do programa - permite constituir uma sólida base racional, funcional e programática capaz de conduzir todo o processo conceptual (que muitas vezes se manifesta irracional e intuitivo).

 

Escavação - projetar sempre através de maquete (a várias escalas) é o método utilizado por Neutelings Riedijk para determinar uma forma escultural. É ao arquiteto que compete retirar, encontrar e escavar a forma que já está dentro do bloco a esculpir para a maquete.

 

Materialização - a expressão volumétrica e a contextualização de um edifício é conseguida através de uma investigação aturada de adequados materiais para cada projeto - essa investigação pode até gerar a imaginação e a invenção de materiais completamente novos. A estrutura muito contribui para assegurar e consolidar a matéria do objeto.

 

Determinação do restante não especificado - nos dias de hoje, qualquer encomenda para um edifício vem sempre acompanhado por um grosso livro que especifica o programa até ao último detalhe. Sendo assim, parece que todo o espaço está já absolutamente concebido e estabelecido. Porém, para Neutelings Riedijk, é o arquiteto que determina e dá forma a tudo aquilo que não apresenta requerimento algum.

 

Caracterização - o trabalho de Neutelings Riedijk é muitas vezes apresentado através de desenhos que acentuam exageradamente o carácter dos edifícios. Ora esta maneira de comunicar afirma uma enorme vontade de simplificar e descodificar a arquitetura - todo o processo de projeto é difícil mas o objeto já construído deverá ser sempre de fácil entendimento e utilização.

 

Nevertheless, no matter how successful laziness might be as a method, it still has a great disadvantage: it requires a lot of effort.’, W. J. Neutelings

 

Ana Ruepp

A PAIXÃO DO MUNDO

 

Pascal, o matemático, um dos maiores de sempre, e também um dos mais profundos cristãos de sempre, observou, nos Pensamentos: “Jesus estará em agonia até ao fim do mundo; é preciso não dormir durante esse tempo.”

 

Sim, a Paixão de Cristo continua e é preciso estar acordado e atento. Na Paixão de Cristo estamos todos.

 

1. Com uma vida a anunciar, por palavras e obras, o Deus que é Amor incondicional, Pai e Mãe, cujo único interesse é a realização plena de todos os seus filhos, a alegria e a felicidade de todos, a começar pelos mais pobres, humildes, abandonados, oprimidos, o que o colocava em confronto com os poderes opressores, religiosos, económicos, políticos..., Jesus, sabendo o que o esperava, ofereceu uma ceia, a Última Ceia, dizendo: “Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue, a minha vida entregue por vós”. Aquele pão e aquele vinho são a sua pessoa entregue para dar testemunho da Verdade e do Amor. Quando se reunissem, deveriam fazer isso em sua memória, lembrando o que ele fez e é.

 

2. A religião sacrificial e ritual do Templo teve papel decisivo neste enfrentamento. Quem primeiro o condenou foi a religião oficial, cujos sacerdotes não toleravam ver os seus privilégios postos em causa: “Ide aprender o que isto quer dizer: eu não quero sacrifícios, mas justiça e misericórdia”, diz Deus. Do mais indigno que há: viver de e para uma religião que humilha e oprime em nome de Deus.

 

3. No Getsémani, Jesus entrou em pavor e angústia, “pôs-se a rezar mais instantemente, e o suor tornou-se-lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra”. Deus não atendeu a sua súplica e até os discípulos mais íntimos adormeceram. “Porque dormis? Levantai-vos e orai, para que não entreis na tentação.” Todos passámos ou passaremos, de um modo ou outro, por horas de dúvidas, de horror e de solidão atroz.

 

4. Judas era discípulo de Jesus, mas incorreu num equívoco: esperava um Messias político, que Jesus não era. Assim, não o entregou com a intenção de traí-lo e obter dinheiro. Estava era convicto de que Jesus, no confronto directo com os poderes vigentes, iria ele próprio tomar o poder, para libertar o povo. Por isso, quando viu o sucedido, foi, desesperado, entregar as moedas de prata. No meio do seu desespero, ninguém o compreendeu nem ajudou: “Isso é lá contigo”, disseram os sacerdotes. E ele enforcou-se. Ninguém lhe deu a mão.

 

5. Com medo de que a relação com os romanos se agravasse por causa da actuação de Jesus, o sumo sacerdote Caifás dera este conselho: “Interessa que morra um só homem pelo povo”. Aí está a presença de tantos inocentes que ao longo dos séculos foram vítimas da razão de Estado.

 

6. Pedro era um homem bom, amigo e generoso. Tinha prometido ir com Jesus fosse para onde fosse e nunca o abandonar. Mas bastou uma criada dar a entender, por causa da fala de galileu, que ele também devia ser um discípulo, para logo negar. Acobardou-se e negou o Mestre três vezes. Depois, o galo cantou, e ele lembrou-se das palavras de Jesus: “Antes de o galo cantar, negar-me-ás três vezes.” “E, vindo para fora chorou amargamente.” Até onde chega a nossa amizade e a nossa cobardia? São Pedro foi o primeiro Papa, mas ainda hoje a torre das igrejas católicas é encimada por um galo, a lembrar como a Igreja, assente na fé de Pedro, está sempre ameaçada por perigos sem conta e traições.

 

7. O conselho dos anciãos do povo, sumos sacerdotes e escribas julgaram e condenaram Jesus, mas não tinham poder para executá-lo. Entregaram-no, portanto, a Pilatos, representante do Império. Ele ter-se-á apercebido da inocência de Jesus, mas também teve medo de perder o poder, pois o povo clamava e podiam acusá-lo ao imperador. Então, lavou as mãos e mandou que Jesus fosse crucificado. Pilatos: outra vítima da cobardia. E sempre por causa do poder. O seu nome é dos nomes mais pronunciados ao longo da História, por causa do Credo: “crucificado sob Pôncio Pilatos”. Mas ainda hoje, para referir alguém que está num lugar que não é o seu, se diz: “Está ali como Pilatos no Credo.”

 

8. Ao tomar conhecimento de que Jesus era galileu, Pilatos remeteu-o para Herodes, que naqueles dias também se encontrava em Jerusalém. Jesus, tratado com desprezo, não respondeu a nenhuma das suas perguntas. Nesse dia, “Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois eram inimigos um do outro.” Em política ou sempre que se trata de poder, seja ele qual for, é o que mais se tem visto: interesses comuns, políticos, económicos, de geoestratégia, tanto podem levar ao corte de relações como à amizade. Evidentemente, amizade hipócrita, interesseira.

 

9. As multidões não são fiáveis, são volúveis, com facilidade se submetem à manipulação. No julgamento de Jesus, a multidão gritava: “Crucifica-o, crucifica-o”. Os mesmos que no Domingo de Ramos o tinham aclamado triunfalmente: “Hossana, hossana ao filho de David!”

 

10. Um tal Simão de Cirene foi obrigado a carregar com a cruz de Jesus. O seu nome está associado a tantos cireneus que vamos encontrando na vida. No meio da dor, da incompreensão, da cruz, pode haver um cireneu que chega e apoia. Talvez forçado, mas apoia.

 

11. Os soldados riam-se, troçavam, fizeram chacota. Afinal, eles próprios não tinham uma vida feliz. Já alguém se lembrou de perguntar a um terrorista se alguma vez se sentiu amado?

 

12. Só as mulheres não fugiram, mantendo-se sem medo junto à cruz. Talvez percebam mais da vida e das suas dores e também amem mais.

 

13. Mesmo no final da existência e no supremo sofrimento, os comportamentos das pessoas não são necessariamente iguais. Com Jesus, foram crucificados dois malfeitores, talvez dois terroristas. Um continuou a blasfemar enquanto o outro reflectiu e pediu a Jesus que se lembrasse dele no seu Reino. O centurião deu glória a Deus: “Verdadeiramente este Jesus era um justo”.

 

14. Quem preside no Calvário, no meio do abandono total, é Jesus, que perdoou a quem o matava e que gritou, do alto da cruz, perguntando, aquela oração que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?” Deus não respondeu, mas Jesus continuou a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”

 

15. Jesus morreu crucificado, a morte que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele Jesus crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que esse Jesus crucificado está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos, e acreditaram porque Deus é Amor, e deram a vida por essa fé, que chegou até nós. Mas, na expressão de George Steiner, é em Sábado que vivemos: entre o horror da Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo da Páscoa da ressurreição.

 

A fé é um combate, como dá testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, a aproximar-se do seu próprio fim. Confessou recentemente que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: «Acreditas realmente na vida depois da morte?» E ele: «Sim, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. Vita mutatur, non tollitur: a vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo».

 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 14 ABR 2019

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

ESTAR DE SOBREAVISO NUM TEMPO DE FALSA INFORMAÇÃO
16 de abril de 2019

 

 

Alguém me dizia que desconfiava da transparência nos negócios públicos e que a política se quer com uma boa dose de segredo. Lembremo-nos do nosso D. João II que tudo fez com base no sigilo e não se deu mal com isso. O segredo é a alma do negócio. Mas vamos a ver se nos entendemos. A transparência tem a ver com a clareza das decisões e com a sua fundamentação. Tem a ver com o combate à discricionariedade e ao favor. Essa transparência é boa e necessária. Mas não é boa transparência o querer ver pelo buraco da fechadura e o misturar vida privada e vida pública. Eu sei que muitas vezes culpadas são as figuras públicas, na ânsia de se apresentarem, ficam-se nas fronteiras e depois queixam-se porque são elas mesmas que suscitam a curiosidade sórdida. Ninguém é célebre para o criado de quarto. Sabe-se que assim é. A Rainha Vitória quando visitava os Bairros Pobres de Londres levava as melhores joias, para marcar a distância e para se fazer admirar. A admiração e o respeito exigem, de facto, uma certa distância. Não confundamos, por isso, as coisas – a transparência deve existir para defender o bem comum e a justiça, não para alimentar a sordidez e a inveja. E o que vemos, a cada passo? O contrário disso mesmo. As chamadas redes sociais são circuitos fechados, que transmitem a má-língua, quando não a pura difamação. Longe de ser lugares de elevação são, na maior parte dos casos, lugares de conversa de subúrbios, de cloacas ou de sítios pouco recomendáveis. Cada qual apenas diz o que quer que os outros oiçam e só ouve o que deseja. A onda de “fake news” não é mais do que resultado dessa tentação dos círculos fechados, onde normalmente se manifesta uma atrevida ignorância. E depois gera-se um tremendo fenómeno: enquanto os tribunais deliberam condenações, com efeito limitado; as condenações das redes sociais ou da opinião pública são definitivas, permanentes e não pressupõem a recuperação e a integração. Ian Buruma foi afastado da “New York Review of Books” porque disse isto mesmo e porque os anunciantes não gostaram. Em nome da sobrevivência do jornal foi dispensado… Dir-se-ia que é a tirania cega do número que se impõe – tão má ou às vezes pior que os Big Brothers deste mundo. Ao menos, os tiranos podem ser vencidos e afastados. A cobardia e a pusilanimidade impõem-se neste populismo abjeto… A ilusão impõe-se. A manipulação torna-se regra. As pessoas são tratadas, no fundo, como cães de Pavlov.

 

E corri à estante, abri os Poemas de Nicolau Tolentino (1740-1811), e com algum esforço, encontrei a ilustração de como a ilusão nos vai enganando – e nós deixamo-nos arrastar por ela…

 

Fiei-me nas promessas que afetavas
Nas lágrimas fingidas que vertias,
Nas ternas expressões que me fazias,
Nessas mãos que as minhas apertavas.

Talvez, cruel, que, quando as animavas,
Que eram doutrem na ideia fingirias,
E que os olhos banhados mostrarias
De pranto, que por outrem derramavas.

Mas eu sou tal, ingrata, que, inda vendo
Os meus tristes amores mal seguros,
De amar-te nunca, nunca me arrependo.

Ainda adoro os olhos teus perjuros,
Ainda amo a quem me mata, ainda acendo
Em aras falsas, holocaustos puros.

 

Agostinho de Morais

A VIDA DOS LIVROS

De 15 a 21 de abril de 2019

 

A leitura da última obra de António Carlos Cortez, Voltar a Ler – Alguma Crítica Reunida (Sobre Poesia, Educação e Outros Ensaios) (Gradiva, 2019), permite-nos tomar contacto com um conjunto polifacetado de textos, com uma sólida complementaridade e uma coerência que merecem ser elogiadas.

 


A IMPORTÂNCIA DA LEITURA E DA LITERATURA
Alguém que já se afirmou como poeta, surge neste livro, essencialmente, como crítico, como pedagogo e como cidadão preocupado com a vida cultural. Tive o grande gosto de participar na apresentação pública do livro, com o autor, Lídia Jorge e Isabel Soares, e pudemos partilhar em análises sucintas o sentido crítico e pedagógico que António Carlos Cortez empresta aos textos que agora reúne, produzidos em colóquios, jornais e revistas, e que, em boa hora, vêm a lume num tomo que é mais do que uma reunião de participações avulsas, já que nos revela não só uma panóplia de diversos autores relevantes do nosso panorama literário, mas também uma análise crítica sobre o reconhecimento da importância da leitura e da literatura no tempo atual. Dir-se-ia, assim, que o “voltar a ler” tem um triplo significado: como releitura de textos publicados pelo autor ao longo do tempo; como apelo à reflexão e ao tempo da crítica, num momento tão dado à superficialidade e ao imediatismo; e como uma séria invetiva contra a mediocridade e contra o esquecimento e a indiferença relativamente ao livro e à leitura. Começando por falar-nos da urgência da literatura, António Carlos Cortez divide o livro em três partes: sobre os ensaístas, sobre voltar a ler (a propósito de poetas portugueses modernos e contemporâneos) e sobre educação e cultura. Estamos perante um rol muito rico, em que os ensaístas e os poetas nos levam a compreender o que António Ramos Rosa nos ensina; “a significação de um poema especificamente moderno depende tanto dele como de nós e que é precisamente desta colaboração profunda entre criador e leitor que uma significação pode surgir e atualizar-se”. E quando se fala do poema, podemos facilmente chegar ao ensaio, que participa da mesma força criadora e do mesmo sentido crítico relativamente à urgência da literatura. De facto, “um crítico literário ‘tem de ser um homem total, um homem de convicções e de princípios, e com conhecimento e experiência de vida’, diz-nos T.S. Eliot (…) e é por se falar de literatura e, transversalmente, de Humanismo ou de valor das Humanidades, que estes textos podem ser lidos como partilha dessas convicções e princípios, propondo ao leitor uma espécie de pacto ou de aperto de mão que define a própria relação entre quem lê e aquele que é lido”.

 

TEMAS E AUTORES
Texto a texto, encontramos referências de memória e de vida, num permanente apelo aos textos e aos seus ritmos: Antero de Quental, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Mário Dionísio, Sophia de Mello Breyner, David Mourão-Ferreira, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade… Mas chegamos ainda a Fernando Echevarría, Fernando Guimarães, Ruy Belo, Herberto Helder, João Rui de Sousa, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Armando Silva Carvalho, Manuel António Pina. E ainda encontramos naturalmente, como numa encruzilhada luminosa da República das Letras: Camões, Vasco Graça Moura, Eduardo Lourenço, Vítor Aguiar e Silva, Cleonice Berardinelli, Manuel Gusmão, Fernando Cabral Martins, Richard Zenith ou Paula Morão… E sente-se a cada passo a lição de Jacinto do Prado Coelho ou de Jorge de Sena, expressa por Fernando J.B. Martinho: “um dado acontecimento literário na diacronia da nossa historicidade tem sempre de ser compreendido à luz de um quadro mais vivo de marcos e referências”. O poeta e o ensaísta não estão sós, o mundo e a vida alimentam-nos, o que permite entender a pergunta bem presente na torre de Montaigne: Que sais-je? Uma pergunta, mais do que respostas - é esse quadro vivo que o autor procura desvendar, não a partir de elucubrações fantasiosas, mas sim segundo uma compreensão rigorosa dos textos. Que é a crítica senão o respeito escrupuloso pelo dito e pelo escrito? Afinal, qual é a melhor pedagogia das humanidades senão o apelo à leitura direta dos originais sem a falsificação dos intermediários ou dos resumistas… E chegamos à necessária pedagogia. Vítor Manuel de Aguiar e Silva ensina-nos que “é o texto poético que deve concentrar a relação ensino-aprendizagem nas aulas de língua materna, dando às crianças e jovens a memória histórica que lhes falta”. Não é preciso dizer muito mais, sendo que, no entanto, aqui está dito o que é mais difícil na função motivadora do mestre em humanidades. Não se trata de fechar a literatura sobre si mesma ou sobre simplificações, mas de abrir horizontes para vários saberes – entendendo o que Eliot dizia sobre o conhecimento perdido na informação, e a sabedoria perdida no conhecimento. Sophia insistia que não podemos distinguir as redondilhas de um alexandrino se não entendermos o movimento e o número, a arte e a ciência. Eduardo Lourenço, fio de Ariadne vigilante, afirma-nos por isso que “a poesia é a realidade enigmática e luminescente como a Esfinge ou como a face de um antigo deus”. E não se trata de um jogo de palavras, mas da compreensão exata de que só a visão crítica dos mitos nos permite perceber a relação entre vida e destino. E o poético “é o inefável que procura concretizar-se pela ação artística, espelho da História”. Daí a tentativa de Lourenço para construir “a dialética mítica da poesia moderna portuguesa”, subjacente à psicanálise do destino português. E assim a “Mensagem” de Pessoa passou a ter de ser lida de outro modo, como um Espelho mágico decifrador de estranhos enigmas…

 

LER E VOLTAR A LER
E eis-nos chegados a Antero de Quental, supremo interrogador dos nossos enigmas. Pode dizer-se que em Voltar a Ler a referência central pode ser esta carta do genial poeta a Jaime Magalhães de Lima: “A natureza tinha-me talhado para romântico descabelado, pessimista, satânico, que sei eu? Mas tinha-me dado, ao mesmo tempo, por singular contradição, razão e sentimento moral para muito mais e melhor. Daí o conflito, a guerra civil, a luta interior. Essa luta foi a minha vida, e é o que explica a aparente singularidade (que reconheço ser grande) e a esterilidade dela. O que venceu em mim foi a razão e o sentimento moral; mas a imaginação e a paixão, embora vencidas, não se submeteram. Ora não é essa a razão, mas a imaginação e a paixão que fazem o poeta (…) os últimos vinte sonetos do meu livrinho são uma coisa nova, a nota cristalina duma poesia nova, de verdadeira poesia (ouso dizê-lo) do futuro”. O percurso biográfico, o caminho do poeta confirma como a literatura é chave da arte de aprender. De facto, a poesia concilia palavra e pensamento, sendo para Antero (com a sua tragédia) “a possibilidade de viver” uma “partícula de pó das estrelas num paraíso perdido que só a Poesia, suprema arte pode tornar real”… Eis por que razão António Carlos Cortez tem razão no apelo fundamental que faz: “Discutindo-se o lugar do livro na escola, raramente se diz o que muitos sabem: a única estratégia de combate contra a ‘nova ignorância’ (no fundo velha, se virmos bem…) passa por trazer de novo o livro para a Escola e a Universidade…”   

 


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - V

 

Minha Princesa de mim:

 

   Mona Ozouf, historiadora, professora universitária francesa e bretã (o bretão foi a sua língua materna), em entrevista recente a Jean Birnbaum, para o jornal Le Monde, quando a Flammarion publica um livro que amigos vários lhe dedicam, pelos seus 88 anos de idade (Mona Ozouf. Portrait d´une historienne), faz declarações que profundamente me tocam, até pela proximidade com temas, caminhos e interrogações que há muitos anos venho percorrendo. Traduzo-te, mais abaixo, uma pergunta que Birnbaum lhe faz e a pertinente resposta da historiadora. Mas deixa-me, antes, destacar desta uma frase que especialmente me atingiu, verás porquê: Para além das semelhanças, há todavia uma diferença fundamental entre 1789 e o atual movimento dos «coletes amarelos»: estes não sonham com futuro, estão na imediatidade. Esta palavra, pela qual traduzo immédiateté, não aparece em dicionários da língua portuguesa, mas atrevo-me a ela por me soar a um conceito distinto de imediatismo, no sentido de mais envolvente, como cultura. Talvez sem razão. Creio já te ter contado que, a seguir a um dos meus jantares com o Rogério Martins, ali no Grémio Literário, talvez um ou dois anos antes da sua morte, subindo a pé a rua Garrett, o nosso diálogo se preocupava com a esterilidade e tacanhez de grande parte da conversa política portuguesa. E eu lembrava ao Rogério os anos derradeiros do Estado Novo, os movimentos em que nos esforçávamos por sair do pântano em que se afundava a vida nacional, procurávamos abrir portas e janelas, para deixar entrar e respirar ar, ideias e projetos. Entristecia-me falar de tudo isso como se fosse já passado estéril, pois tínhamos sonhado com outro futuro coletivo, para hoje, afinal, darmos connosco a debater-nos na confusão de interesses imediatos. Foi então que o meu Amigo e Mestre, parou, pôs a mão no meu ombro e disse esta verdade simples: Nós tínhamos esperança, Camilo, vivíamos dela! Nas cartas que te fui enviando por estes tantos anos de utopias já varridas, tal como noutros escritos meus, de uma ou doutra forma andei quixotescamente lanceando fantasmas e velas de vento... Pelo menos assim julgaram muitos, quiçá menos atentos à insídia de forças mascaradas que vão transformando a bondade de ideias inspiradoras de bem fazer, e de propósitos motivadores das obras possíveis, em andaimes de construções destinadas ao bem estar de alguns. E tal aflige muito, quando nos descobrimos num mundo que insiste em orientar-se pela imediatidade (e imediação) do lucro e do prazer, proposta universalmente veiculada pela robotização da, ainda assim, chamada «comunicação». Perceberás melhor agora, minha Princesa de mim, porque me tocou cá dentro o trecho da referida entrevista que ora traduzo da secção Idées de Le Monde de 25/03/2019: porque põe em cena a imediatidade como cultura, isto é, como meio ambiente ou circunstância do pensarsentir hoje predominante. À pergunta:

 

- «Nós queremos igualdade real ou morte!», resumia o revolucionário Gracchus Babeuf. Quando temos na cabeça a memória de 1789, devemos ter especial atenção ao movimento dos «coletes amarelos», ou não? - responde:

 

    Os «coletes amarelos», na verdade, inscrevem-se na reivindicação da igualdade real. O problema é que a igualdade real é uma quimera. Não podemos «realizá-la» num mundo onde a natureza e a história semeiam desigualdades de toda a espécie.

 

A igualdade, portanto, só pode ser um horizonte, a tal ponto que os verdadeiros defensores da igualdade são aqueles que se propõem, não proclamar a igualdade real, o que está ao alcance de cada qual, mas reduzir laboriosamente as desigualdades, o que é completamente diferente.

 

   Quanto ao resto, lá que os «coletes amarelos» recuperam uma linguagem, uma simbólica e problemas que me remetem para a Revolução Francesa, é evidente que sim! Pense só nas queixas ou no problema da representação, que é concomitante à Revolução, quando a gente dos Estados Gerais chega a Versailles, com os bolsos cheios de reivindicações locais. Tal continua sendo, para mim, o mistério da Revolução: como é possível que essa gente, portadora de reivindicações contra os abusos da justiça senhorial ou a favor da abertura de um caminho vicinal, pode tão depressa batizar-se «Assembleia Nacional»?

 

   Ora, a partir do momento em que o faz, deixa de ser mandatária, essencialmente encarregada de levar até "lá acima" a reivindicação. Abre-se então a distância entre representados e representantes, o que continua a ser, hoje em dia, o nosso problema. Trata-se de saber como vamos conseguir proteger os representados da arrogância dos representantes, e estes da vindicta daqueles... Para além das semelhanças, há todavia uma diferença fundamental entre 1789 e o atual movimento dos «coletes amarelos» : estes não sonham o futuro, estão na imediatidade. As mulheres e os homens que entravam em revolução em 1789 herdavam das Luzes e tinham grandes ideias sobre o que poderia ser uma sociedade perfeita.

 

   Todos nós, afinal, com mais ou menos luzes, temos ideias sobre como e quão perfeita poderia ser uma sociedade... Mas "poderia" talvez mais queira dizer pudesse do que ser possível... A subtileza de tal distinção remete-me para essa saudade súbita da frase do Rogério Martins que dizia: Nós tínhamos esperança! Então busco por aí esperanças perdidas - não no sentido de serem já desesperos, mas porque não as encontramos logo, perdidas que estão entre a algazarra tão ruidosa das propagandas que dão pelo nome politicamente correto de "informação". São utopias bonitas de gente que sonha e quer construir futuros pelo humano, com o humano, no humano. Algo que, por só ter sentido na consciência da nossa humanidade como condição comum a todos, consegue levantar do chão e movimentar mesmo quem pensava ter o sofrimento por destino, e agora descobre uma boa nova que liberta e pode construir as solidariedades que são abrigo e lareira da nossa humanidade. Em África, e noutras partes do hemisfério sul americano e asiático, há hoje gente que se organiza para que os seus povos, as suas comunidades, respirem mais livres de ditaduras do poder e do dinheiro. Ditaduras que soem ser sempre vistas como políticas, porque, afinal, nos esquecemos de que podem residir em nós próprios, que somos alimentados por uma cultura sem jeito de ser porque logo ferozmente preocupada com fazer e ter...

 

   E outra gente - bem mais jovem, até porque menos envelhecida pelo uso do materialismo soez que o nosso modelo socio económico quer impor - chega mesmo a manifestar-se urbi et orbi pela proteção devida à Terra, casa de todos nós! Toda esta gente tem esperança, não se perde nem gasta em tricas políticas para reivindicação do alcançável tostão a mais - para a satisfação dos egoísmos - mas põe o olhar e as forças da vontade nesse horizonte misterioso em que, sendo humanos, descobrimos sempre a terra prometida! A verdadeira raiz dos problemas que hoje mais nos afligem, mas também perturbam a ordem social estabelecida não se encontra, evidentemente, nessa mesma possível desestabilização - até porque esta muitas vezes se justificará como último recurso para uma concertação da justiça que, entretanto, tanta gente tem ignorado. Antes vem do facto de o solo donde tudo isto surge ter vindo a ser revolvido por uma cultura nefasta, materialista, gananciosa, hedonista e imediatista. A crise do sistema socioeconómico e, consequentemente, do regime político das democracias hodiernas deve-se à lógica desumana gerada pelo próprio funcionamento de sociedades e economias sem transcendência possível, viciosamente girando sobre si mesmas, na busca de um horizonte imediato de satisfações mensuráveis e generalizadas. Assim se vão os fins esgotando nos seus próprios meios, e por estes. O drama fulcral do materialismo é não entender que, por definição, a matéria se esgota ou se torna obsoleta, e é perecível, determinada pela própria circunstância do espaço-tempo em que, por definição, existe.

 

   Só o espírito liberta, pois só ele sabe contemplar o mistério e desafia-lo, inventar soluções novas e ter esperança no que não vê, em vez da ganância ilusória do aparentemente alcançável... Temos visto, minha Princesa de mim, no meio de tantas infelicidades e desgraças, acidentais ou consentidas, que afligem populações inteiras, muita solidariedade humana, gestos e feitos de grande generosidade. Aí deve fortalecer-se a nossa esperança em dias melhores para todos. Assim possa tão generosa gente ser também cada vez mais visionária, para melhor poder prever e acautelar o porvir: a justiça, o respeito da dignidade humana, da liberdade e igualdade dos filhos de Deus, não se obtêm apenas socorrendo ou acorrendo ao mal já acontecido, permitido ou provocado. São necessariamente obra fraterna, construída a partir da consciência inicial de que é impossível ao espírito ético negar aos outros - ou, mais simplesmente, não providenciar - que tenham aquilo que não consentimos nos seja negado ou retirado.

 

   Doutra perspetiva, poderemos falar de manifestações "à coletes amarelos", refletindo nelas como crises entre o apelo da Utopia, no sentido etimológico de Thomas More (isto é, Nenhures ou o Lugar inexistente) e o da Retrotopia, título feliz da última obra de Zigmunt Bauman (isto é o Lugar atrás, dantes, o Passado), cuja edição original, em inglês, é da Polity Press, em Janeiro de 2017. Desse tópico ou "lugar" anti utópico se alimentam os populismos hodiernos, desde o Brexit a outros nacionalismos xenófobos, com maiores ou menores, e mais ou menos argumentáveis, saudades de passadas grandezas... O primeiro apelo, o que aponta o tal lugar que não existe, mas que o nosso mais íntimo sentido do humano pede que exista, é a verdadeira utopia, evangélica até no sentido da vontade de renovação da face da terra. Muito me alegrou, por exemplo, ver tantos jovens, em todo o mundo, manifestarem-se pela necessidade urgente de acudirmos à saúde da casa de todos nós... Qualquer revolução, no sentido de conversão a melhor mundo e melhores gentes, só faz sentido na fraterna alegria da esperança

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

TEATROS E ARTISTAS NUMA COLEÇÃO DE BIOGRAFIAS DO TEATRO PORTUGUÊS

 

 

Foi muito recentemente publicado o oitavo volume da coleção de Biografias do Teatro Português, este dedicado ao ator António Pinheiro, num estudo da autoria de Eugénia Vasques. Trata-se de um coletivo de biografias de personalidades e entidades ligadas à arte teatral, entre escritores, editoras, empresas e administrações dos próprios Teatros, numa coordenação que envolve entre demais entidades a INCM e os Teatros de Dona Maria II e São João.

 

Assinalamos aqui esta série de estudos, que referem desde dramaturgos a empresas e edifícios teatrais, atores, encenadores e demais participantes em espetáculos de teatro, numa envolvência que corresponde em si mesma à complexidade da arte e do espetáculo, na perspetiva de quem o faz e onde o faz: repita-se, atores, dramaturgos, edifícios teatrais, críticos, historiadores, zonas urbanas...

 

E será então oportuno destacar os livros sobre atores e demais participantes diretos no espetáculo, pois a transitoriedade da arte do teatro tenderá a conduzir ao esquecimento.

 

 Precisamente: quem hoje se lembrará do ator António Pinheiro (1867-1943). E no entanto, a sua carreira foi determinante na época, mas sobretudo na renovação e modernização da arte do espetáculo.

 

O livro sobre António Pinheiro, da autoria de Eugénia Vasques, contem assim uma abordagem global do que foi na época a renovação do teatro em Portugal. E como referem Maria João Brilhante e Ana Isabel Vasconcelos, no texto introdutório, a sua atividade artística e profissional muito contribuiu para a renovação do teatro-espetáculo português.

 

E também no que concerne a edifícios de teatro. Sem pretender ser aqui exaustivo, sempre citaremos, no estudo, referências a teatros, muitos deles hoje desaparecidos e esquecidos, mas que tiveram durante dezenas de anos uma relevância assinalável. E como tal muitos deles já aqui antes referidos. E essa enumeração abrange também agora não só edifícios como por vezes companhias e/ou movimentos de expressão teatral.

 

Cita-se pois, no livro em análise:

 

Teatro do Príncipe Real; Teatro do Ginásio; Teatro Livre e Teatro Moderno; Teatro Novo instalado no Tivoli; Teatro Juvénia no Parque Mayer; Teatro Castilho; Teatro Ginásio; Teatro do Príncipe Real; Teatro D. Afonso; Teatro da Rua dos Condes; Teatro D.Maria II; Teatro São Luis; Teatro da Trindade; Teatro São Luis; Teatro Avenida; Teatro da Politécnica; Conservatório de Lisboa; Teatro António Pinheiro...

 

E tantos mais, que aqui temos citado e iremos citando, em releituras deste notável estudo: até porque transcreve numerosos textos e documentos que ilustram bem o que foi a expansão do teatro e dos Teatros neste período – e por vezes até hoje!

 

(cfr. Eugénia Vasques “António Pinheiro” prefácio de Maria João Brilhante e Ana Isabel Vasconcelos in “Biografias do Teatro Português” nº 8 -  INCM 2019).

 

DUARTE IVO CRUZ 

 

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

 

15. GERIR DEPENDÊNCIAS E ANTECIPAR ESTRATÉGIAS CULTURAIS

 

Quanto a influências exteriores e à importação do que vem de fora, é sempre positivo, para alguns, revelando a nossa grande capacidade de apropriação e absorção, sendo negativo, para outros, porque sintoma de uma subserviência acrítica, por vezes excessiva.

 

Há que encontrar um equilíbrio, expurgando extremos, pelo facto de não podermos ser imunes ao que vem do exterior e termos o dever de preservar o que nos particulariza e faz sobressair pela positiva perante os outros.

 

Estando na era da globalização, não nos podemos acomodar, pelo que temos de antecipar estratégias a nível ambiental, económico, social, sem nunca esquecer a vertente cultural, tendo presente que somos um país não exclusivamente  eurocêntrico, pois além de europeus, sempre tivemos uma ligação forte com outros continentes, através dos oceanos Atlântico e Índico, não podendo, de repente, no presente, virar as costas a um passado histórico e construir um futuro que privilegie tão só a Europa, a União Europeia ou uma aproximação ibérica.   

 

Daí a importância de uma aposta na diversificação das dependências, sobrevivendo sabendo-as gerir, via relações a todos os níveis.

 

No plano cultural há uma necessidade premente de consagrarmos o que somos pela imagem, pela força condensada e cada vez mais velocista e universal do audiovisual.

 

É inquietante a ausência de filmes e séries sobre figuras da nossa história, algumas delas evocadas e homenageadas mundialmente, como os navegadores portugueses Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães no museu da navegação da cidade portuária de Hamburgo, na Alemanha, onde estão os seus bustos, entre os sete grandes navegadores de todos os tempos aí recordados e reconhecidos (em paralelo com o viking Leif Eriksson, o chinês Zheng He, o inglês James Cook e Colombo). 

 

Outros podem ser lembrados, e são muitos, desde Viriato, Afonso Henriques, D. Dinis, Nuno Álvares Pereira, D. João I, D. Filipa de Lencastre, a Ínclita Geração (Infantes D. Duarte, D. Pedro, D. Henrique, D. João, D. Fernando e a Infanta Isabel de Portugal, Duquesa da Borgonha), Gil Eanes, Diogo Cão, Duarte Pacheco Pereira, os irmãos Corte-Real, Pedro Álvares Cabral, Diogo Álvares Correia (Caramuru), Catarina Álvares Caramuru (Paraguaçú), Damião de Gois, João de Barros, Garcia de Orta, Pedro Nunes, D. João II, Afonso de Paiva, Pero da Covilhã, D. Leonor (fundadora das Misericórdias), D. Manuel I, D. Lourenço de Almeida, D. Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, Tristão da Cunha (uma ilha que descobriu, ainda hoje tem o seu nome), Jorge Álvares, Tomé Pires, Fernão Mendes Pinto, padre António de Andrade (Tibete), D. João IV, entre muitos da literatura, ciência, política e outra áreas (por exemplo, São João de Deus e a ordem dos Hospitaleiros), muitos de prioridade estratégica nacional e universal. Todos eles suportes da presença portuguesa no mundo. 

 

Com o argumento da ausência de dinheiro para a cultura, para frivolidades, ninharias ou coisas fúteis, abdicamos a favor de outros o testemunho da nossa História, tantas vezes tratada com desdém ou sobranceria, ao arrepio da verdade histórica, como na série britânica “Os Tudor”, em que a corte do reinado de D. Manuel I é representada como um albergue acolhedor de seres exóticos, atrasados e bafientos.   

 

Cada vez mais, nos tempos atuais, um país sem imagens é um país “ausente e “sem história”.        

 

09.04.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício