Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - VIII

 

Minha Princesa de mim:

 

   Em oitava de Páscoa, na cultura em que respiramos, interrogamos e debatemos, até a incréus acontece - se acaso convivem de perto com pessoas já idosas que sofram degeneração implacável das suas faculdades de concentração e de memória, sobretudo no imediato ou a curto prazo - refletir mais sentidamente nesse mistério da nossa vida e morte, a que Milan Kundera chamaria, apesar de poder pesar-nos, a insustentável leveza do ser. Na verdade, lembrados da nossa infância ou já confortados pelo espetáculo oferecido por netos e bisnetos, sempre recordamos primeiros passos e, desde logo, a extraordinária e gratificante aventura da curiosidade humana como motor de procura. Meninos, até à nossa custa vamos aprendendo a descobrir o mundo, as pessoas, a comunicação. E alegram-se-nos os corações com tal e tanta empresa milhentas vezes repetida, mas em cada uma delas sempre animada pelo impulso de uma ressurreição interior em dialética com a progressiva descoberta do mundo...

 

   Por isso a princípio nos inquieta e entristece a cena de quem já não entende porque não percebe nem sabe distinguir, nem mais nada consegue guardar por que já não se fixa nem sabe registar. Eis uma experiência de vida e convívio que será desanimadora e dolorosa, mas que em período pascal também poderá ser embarque para nova viagem. Pois que nessa idade em que o descobrimento vai dando lugar ao encobrimento, e o discorrer ao confundir, também tudo parece cobrir-se de noite, daquela noite que tantas vezes evoco nos versos de Álvaro de Campos, como sabes. E, neste final de tarde de Pascoela, vejo bem, e com incontida ternura, esta figura de mulher cujo olhar se vai enchendo da penumbra que cresce lá fora e vem entrando pela janela vasta, aberta sobre os campos e que, ajoelhada num sofá macio, ela perdidamente contempla... Não deverá lembrar-se - para os ir recitando - dos versos do Poeta que, todavia, talvez dissessem aquilo que ela simultaneamente vai vendo, perdendo e profundamente sentindo:

     

      Vem, vagamente,
      vem, levemente,
      vem sozinha, solene, com as mãos caídas
      ao teu lado, vem
      e traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
      funde num campo teu todos os campos que vejo,
      faze da montanha um bloco só do teu corpo,
      apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
      todas as estradas que a sobem,
      todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
      todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
      e deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
      na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
      na distância subitamente impossível de percorrer.

 

   A alma ali ajoelhada talvez já não saiba, nem sequer pensa nessa oculta vontade de soluçar que, todavia, sente a tentar trepar-lhe pelo íntimo de si. Terá agora, pensossinto eu, outra sageza, talvez porque a alma é grande e a vida é pequena, / e todos os gestos não saem do nosso corpo / e só alcançamos onde o nosso braço chega, / e só vemos até onde chega o nosso olhar...

 

   Assim me imagino a genufletir a seu lado, rezando, diante da noite que sobre nós vai caindo, com as palavras suplicantes do Poeta:

 

      Vem, Noite silenciosa e extática,
      vem envolver na noite manto branco
      o meu coração...
      Serenamente, como uma brisa na tarde leve,
      tranquilamente, como um gesto materno afagando,
      com as estrelas luzindo nas tuas mãos
      e a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
      Todos os sons soam de outra maneira
      quando tu vens.
      Quando tu entras baixam todas as vozes,
      ninguém te vê entrar,
      ninguém sabe quando entraste,
      senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
      que tudo perde as arestas e as cores,
      e que no alto céu ainda claramente azul
      já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

 

      a lua começa a ser real.

 

   Esta ode do Pessoa Álvaro de Campos, muitas vezes a leio e recito como oração à morte in hora mortis. Aliás, até posso substituir, em quase todos os versos, a palavra noite por morte. Ambas têm cinco letras, três delas idênticas e na mesma posição. Mas, no último verso, lembro-me da lumen vitae, e digo a vida começa a ser real. Aí, afinal, escrevo a morada da minha, da nossa, esperança. Porque somos inquietos por natureza, muitas vezes insatisfeitos só por precipitação, há em nós essa propensão ao descontentamento: resmungamos, ou disparatamos, ou desesperamos, vamo-nos pondo a jeito de nos ocultarmos esse pisca-pisca interior que nos avisa de que a paragem é um convite à paciência. A partir de certa idade, quiçá mais difícil connosco do que para com os outros... Ao ponto de até nos esquecermos de que a substância da nossa esperança é, precisamente, a nossa vida, esta sendo um facto evidente. Nem será necessário recorrermos ao que poderia chamar-se, por contraposição à intuição metafisica, a conclusão biológica do António Damásio quando nos fala na perseverança celular do ser vivo. Em momentos difíceis, recordo muitas vezes a primeira quadra de um fado de Coimbra que, há seis décadas atrás, ouvi em serenata frente à Sé Velha de Coimbra ao Fernando Machado Soares:

 

      A vida é negra, tão negra,
      como a noite nos pinhais!
      Mas é nas noites mais negras
      que as estrelas brilham mais!

 

   Até qualquer passado romantismo nos pode ensinar que tudo é graça... Tal como o Livro do Apocalipse de S. João nos diz: Mas ele pousou a mão direita sobre mim e disse-me: «Não temas. Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive. Estive morto, mas eis-me vivo»... Pelos tempos que correm, talvez nos fizesse bem voltar ao treino da contemplação dos mistérios.

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira