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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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OUVIR UM CORPO

 

 

A música é de Georges Delerue, o rabo é de Brigitte Bardot, o desmesurado olhar é o nosso embora finjamos que é o de Michel Piccoli, o filme é “Le Mépris” de Godard.

 

O cinema deu-nos intensas cenas físicas. De mil escolho uma: em “Sea of Love”, Ellen Barkin e Al Pacino apalpam o corpo um do outro com uma tactilidade desenfreada que envergonharia o mais zeloso polícia apalpador de aeroporto. “Le Mépris” não precisa de mãos.

 

No Ocidente, a história das artes é a disfarçada história da tensão e da tentação de mostrar a mulher nua. Mas a mulher nua talvez nunca tenha sido dita como Godard pediu a Bardot e a Piccoli que a dissessem nesta sequência que abre “Le Mépris”.

 

O primeiro professor de francês que tive, voz rouca e o que então me parecia uma terceira idade de quase cinquenta anos, não sabia, e eu ainda menos, que os penosos rudimentos de impronunciáveis “la table” e “la fenêtre” serviam apenas para rasgar nos meus ouvidos o tapete por onde deslizaria a voz de Bardot a perguntar: “tu les trouve jolies mes fesses?”

 

Já voltamos às redondas nádegas de Brigitte. Passemos antes pela “petite histoire” do filme.

 

“Le Mépris” é, como os filmes de Godard, um díptico: num está o cinema, no outro a vida. A personagem de Piccoli tem na re-escrita do argumento de um filme, que pretende adaptar a “Odisseia”, a oportunidade profissional da sua vida. Vai trabalhar com e contra um realizador famoso (um Fritz Lang a fazer de Fritz Lang) por encomenda de um americano colérico que é produtor por orgulho, “como todos os produtores”, diria Godard.

 

Essa é uma tela do díptico. Na outra, Godard dá-nos as cores do casamento de Piccoli com uma Bardot morena como uma Carmen que fosse tranquilamente imprevisível. A cor final dessa relação há-de ser a cor do desprezo.

 

“Le Mépris” foi o filme em que Godard esteve mais perto de entrar na indústria americana e o que dela mais longe o pôs. Joseph E. Levine , o produtor americano, ao ver a versão final, atirou-se a Godard, exigindo-lhe nus de Bardot para vender o filme. Godard acedeu e filmou o plano-sequência de abertura.

 

Bardot está nua, deitada de costas, na cama. Piccoli em segundo plano, contempla-a. Palavra a palavra, pela boca de Bardot, com o complacente acordo de Piccoli, é-nos dito cada centímetro do corpo dela. Ouvimos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Ouvimos os tornozelos, as coxas, o rabo, os joelhos. Ouvimos o corpo de Bardot, como se ouvíssemos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros vermelhos e azuis, utilizados por Godard, mais reforçam. Ainda temos os ouvidos nas redondas e tão belas nádegas e já Bardot nos pergunta “o que preferes, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabemos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Delerue. Experimentem ouvir.

 

Manuel S. Fonseca