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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - IX

 

Minha Princesa de mim:

 

   Porém se eu ousasse e as minhas palavras tivessem muitas cãs, elas abririam este coração onde jazem algumas coisas que sente, e a tenra idade não quer que diga... Este misterioso passo da Crónica do Imperador Clarimundo de João de Barros, o  autor das Décadas da Índia, surge-me do século XVI e faz-me pensarsentir em dantes e muito para além do episódio daquele romance de cavalaria, em que o imaginário imperador da Hungria e raiz da linhagem dos reis de Portugal, recebe um escudo pintado, como assim resume Eduardo Lourenço no seu Clarimundo: simbologia imperial e saudade (em Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade (Gradiva, 1999): Fanimor enviara a Clarimundo um escudo pintado, tendo no centro uma ilha escondida por nuvens, alegoria do império do mar, ainda por vir. Agora, na última parte fá-lo passar pelos Açores e aí lhe anuncia que um dia estas ilhas pertencerão a um senhor do seu sangue. É nesta ocasião que Barros se refere com insistência à figura mais misteriosa da sua narrativa, àquele que ele chama «o filho do bravo leão e da mansa cordeira», que, em princípio, só pode ser o infante Dom Henrique. Como sabes, e sobre tal já te escrevi, não sou um adepto da tecelagem de considerações sobre qualquer identidade nacional entendida como fruto da ou a própria constituição histórica duma personalidade a que chamamos nação ou raça. Daí que possa subscrever sem hesitação o seguinte trecho de Eduardo Lourenço:

 

   É tentador assimilar o destino de um povo ao do indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O tempo do indivíduo, a leitura que ele faz do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo de surgimento, afirmação e desaparição. Um povo tem igualmente uma história e, por comodidade hermenêutica, pode ser tentado a ler o seu percurso em termos subjetivos de afirmação de si, de presença mais ou menos forte entre os outros ou de existência precária ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas o tempo dessa história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como finito e irreversível. O tempo de um povo é trans-histórico na própria medida em que é «historicidade», jogo imprevisível com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente, e que o futuro reorganizará de maneira misteriosa.

 

   Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino.

 

   Creio ser importante repetirmo-nos, nos dias hodiernos, esta frase, como motor e meta de meditação. Por duas razões fundamentais: antes do mais, porque a nossa identidade comunitária, enquanto povo e nação, deverá, necessariamente, orientar-se e definir-se em função de um projeto de vida e justiça comum; depois, porque a própria legitimidade da nossa existência política (como estado-nação organizado) já não é atributo nem consequência de linhagem, mas justifica-se pela vontade democrática de construção da casa comum. Hoje, nenhum português pretenderá radicar a linhagem nacional num qualquer Borgonha filho do imperador Clarimundo e de sua mulher Clarinda, por via da qual ele será feito imperador de Bizâncio, sucedendo a seu sogro. Nem romano algum tratará mais do que como ficção literária ou artística a pretensa ascendência da genealogia lendária de Roma ao navegante Eneias. Não há passado verdadeiramente constitutivo da unidade política de um povo se não houver projeto de destino comum de e para quem vive hoje aqui. Pensossinto que uma nação tem necessariamente, como Janus, duas faces: uma vira-se para trás e olha o caminho percorrido; outra está voltada para a frente, perscruta o porvir, em busca da Cidade onde todos poderão conviver melhor e encontrar a felicidade possível.

 

   Por isso também as propostas desses movimentos nacionalistas xenófobos que por aí vêm pululando me parecem, muitas vezes, não só injustas mas violadoras de princípios elementares da cultura de inspiração cristã que ainda nos anima. Além de que, ansiosos por acordarem fantasmas que depois possam espantar incarnados em pessoas, geram muita confusão e pouco tino. Na verdade, a «descristianização do ocidente» não é obra de imigrantes oriundos de outras culturas, senão desgaste nosso. A mutação das nossas paisagens demográficas tampouco se pode fundamentalmente atribuir à presença de outros entre nós, pois mais decorre da nossa baixa natalidade e envelhecimento das populações nativas. E se nos pensarmos dentro da humanidade como um todo, talvez sintamos mais gravosa e preocupante a submissão das nossas sociedades (até incluindo nestas os recém vindos) ao materialismo consumista reinante do que a oportunidade de trabalharmos em aculturações de valores humanos e tradições diferentes. Aliás, tal tarefa é hoje inevitável, dada a trama alastrante das redes de informação e comunicação, de contactos e trocas várias em todo o mundo. Não mais vivemos em período de descobrimentos e conquistas europeias pelo mundo fora, nem de proposição e imposição de valores religiosos, éticos ou culturais do "Ocidente", ou das suas instituições jurídicas e políticas, em todo os lados da terra. Mas se muito de tudo isso foi ficando por toda a parte, também por lá muito o "Ocidente" descobriu e adotou. Aos encantos orientais do nosso século XIX - fascínios do Egipto, da Mesopotâmia, Magrebe ou Palestina, bem como da Índia, da China e do Japão -, que entretiveram a curiosidade das nossas sociedades abastadas e diletantes, sucederam já as modas assimiladas do ioga, da filosofia e da gastronomia extremo orientais... Para não contarmos agora os astros chineses e japoneses da nossa música clássica (maestros, cantores, pianistas, violinos, etc.) E para não falarmos do êxito, nos nossos países, da música latino-americana ou, mais simples e genuinamente, africana. São hoje inúmeros os exemplos de inculturação, e ainda bem que assim é: aprendemos todos, uns com os outros. E há mais: a revista mensal Books, por exemplo, na sua edição deste mês de maio de 2019, faz uma resenha da versão francesa (L´Âge de la colère. Une histoire du présent) do último livro do ensaísta indiano Pankaj Mishra, e refere os elogios que o mesmo recebe do universitário paquistanês (repara, Princesa de mim, paquistanês e muçulmano) Ali Ahmed, no jornal diário Dawn:

 

   «Tendo tido a vantagem de crescer num mundo (perpetuamente) em desenvolvimento, compreendo a modernidade, tal como Mishra, como podendo ser um projeto não viável se perseguir o interesse pessoal quebrando todos os laços de fraternidade».

 

   E eu pergunto: não estaremos todos nós, afinal, a viver num mundo em vias de desenvolvimento? Já ninguém leva a sério as teorias do fim da História. Esta continua, num mundo composto de mudança, tomando sempre novas qualidades... Por vezes surpreendentes! As resistências ao surto e assimilação de uma nova cultura comum a todos -  ou, se preferires, à inculturação de valores constituintes de uma ética de referência para o futuro - surge, por vezes, de onde menos se espera. O filósofo André Comte-Sponville assina, na revista Le Monde des Religions de maio-junho deste ano, um artigo intitulado Dieu est Femme, donde te traduzo alguns trechos: Cada um de nós sabe bem que não é suposto Deus ter um corpo e, portanto, um sexo. Mas todos falamos dele no masculino, e a língua, como sempre, estrutura o imaginário. As deusas, para nós, fazem parte da mitologia, isto é, do passado. Deus, do presente ou da eternidade. Eis um dos raros pontos em que o monoteísmo opera uma espécie de regressão, pela exclusão de qualquer divindade feminina. «Pai Nosso que estais no céu...» Nesse céu mais não vemos do que uma metáfora. Mas quanto à paternidade divina? Porque não «Mãe Nossa»? Tal seria perfeitamente concebível teologicamente. Na prática, todavia, não é nada assim. Cada uma das três «pessoas» da Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) se dizem também no masculino. Poderão objetar que a Virgem Santíssima... Mas eis que esta, precisamente, não é Deus: contenta-se com ser virgem e mãe, o que diz muito sobre o ideal feminino que a Igreja veicula...   ...Entre os crentes, as mulheres são, pelo menos, tantas quanto os homens, e muitas vezes mais praticantes; mas quase sempre em situação de inferioridade ou de subordinação hierárquica no seio das instituições religiosas. Assim se fecha a ratoeira: numa sociedade patriarcal, atribui-se a Deus uma ilusória masculinidade; depois, faz-se da masculinidade, em matéria de culto, uma espécie de privilégio que reforça o patriarcado. «Senhor Padre» («Mon Père», em francês, ou «Meu Pai»), assim falamos ao padre católico, e também isso diz muito, tal como a tola recusa, tantas vezes reiterada, de ordenar mulheres...   ... «A mulher é o futuro do homem», dizia Aragon. E, por aí também, o futuro das religiões. Tanto pior para aquelas que não o quiserem compreender, ou o compreenderão tarde demais.

 

   Virginie Larousse, chefe da redação da mesma revista, escreve em editorial da edição citada: «Há grandeza em ser-se apóstolo. Eles eram eminentes por causa das suas obras, por causa do seu êxito. Glória a eles! Quão grande deve ter sido a sageza desta mulher, para ser considerada digna do título de apóstolo.» Não, não estamos a sonhar: trata-se mesmo de uma mulher apóstolo, de acordo com as próprias palavras de S. João Crisóstomo (344-407), arcebispo de Constantinopla e doutor da Igreja. A mulher a que se refere é citada por Paulo na sua Epístola aos Romanos. No final dessa carta, o apóstolo saúda muitas pessoas que deram uma boa mão à Igreja nascente. «Saudai Andrónico e Júnia, meus parentes e companheiros de cativeiro: são apóstolos marcantes que me precederam em Cristo» (Rom.16, 7).

 

   Nunca ouviram falar desta mulher? Era de esperar, porque a tradição foi progressivamente fazendo dela um homem... Todavia, durante séculos se soube que Júnia era mulher - como assim o provam as palavras de João Crisóstomo. Até que, no século XIX, sábios entendessem ser impossível considerar «apóstolo» uma pessoa do sexo fraco. E começa-se a transformar o nome próprio dela em «Junias», patronímico masculino, e até a propor-se uma nova tradução -incorreta gramaticalmente - daquele passo da Epístola (cf. o estudo de Eldon Jay Epp, professor na Divinity School da Universidade de Harvard, Junia, uma mulher apóstolo ressuscitada pela exegese, em Labor et Fides, 2014).

 

   Os tempos e modos hodiernos, contudo, não parecem muito entusiastas na defesa do patriarcado, eufemismo significando superioridade masculina, mesmo no seio do Vaticano: veja-se, por exemplo, a demissão, por iniciativa própria, da equipa de redatoras do suplemento feminino do Osservatore Romano, Donne Chiesa Mondo. Tal como, curiosamente, nos devemos recordar de que, apesar de todos os preconceitos respeitantes à condição feminina ainda ativos no mundo islâmico, muito, ali também, vai mudando. Designadamente nas comunidades residentes em democracias plurais, que procuram identificar-se nessas circunstâncias. Apesar de, já há 1400 anos, o Islão autorizar mulheres imãs, isto é, presidentes e condutoras de assembleias de orantes, só muito recentemente se tem assistido ao revigorar dessa prática, designadamente pela fundação de mesquitas com espaços de oração comuns a ambos os sexos, cuidando embora da disposição dos participantes, já que o exercício físico das preces muçulmanas a tal precaução aconselhará... Os respetivos imãs (chamemos-lhes "párocos") tanto podem ser homens como mulheres que se revezam, como só homens ou só mulheres. Seja como for, esta prática, não só abre às mulheres uma participação mais ativa e igualitária na vida religiosa comunitária, como, finalmente, lhe reconhece um estatuto social que poderá repercutir-se na sua vida empresarial e política.

 

   Confesso que me é difícil entender como é que a Igreja Católica, maioritária em sociedades onde tantas mulheres exercem já funções dirigentes, na política, empresas, magistratura, forças armadas e tantas profissões, continua a vedar-lhes o acesso a funções pastorais...

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira