MACHADO DE ASSIS
O AUTOR COMPLETO DOS LIMITES SEM LIMITE!
O SEU LIVRO “A CASA VELHA” OU A HIPOCRISIA DAS CLASSES BURGUESAS
Ao reler Casa Velha de Machado de Assis, livro publicado em 1944, depois da sua morte, encontro ainda mais clara a similitude de significado entre um drama de família e a realidade política/histórica que se vive em sociedade no cerco e pelas limitações desta. Surgem-nos os acontecimentos políticos drapeados pelo pensar das gentes que os reflectem, e se deitarmos mão ao pressentir neste livro de um esboço de Dom Casmurro, entãotodas as entrelinhas são questões políticas de relevo, disfarçadas de histórias românticas, mesclando-se ambas em confidências acutilantes de verdade.
Neste livro, a narrativa é feita por um padre que por razões de fazer pesquisa na biblioteca de uma casa muito antiga e fidalga, nela encontra dados inerentes ao imperador Pedro II, bem como a seus altos membros de governo, cuja vida privada, mesquinha e devassa, permite a Machado de Assis a crítica aguda aos costumes sociais, aos seus jogos de interesse, religiosos ou não, a feiras de vaidades descritas numa fusão de interpretações, pertença única de Machado de Assis em palavras plenas de verdadeira essência anímica. E neste conto uma narrativa também de amor.
Diz-se que surge neste livro a descrição da primeira relação entre irmãos que se apaixonam desconhecendo os seus laços de sangue, temática posteriormente muito utilizada na literatura.
Lalau, moça de olhos largos de pureza-criança, amava como se o amor fosse a puberdade do espírito mas, assumindo-se como mulher neste sentimento, sendo que fingia acreditar que a leitura de Deus, por ser a mais velha, seria a melhor, num tempo em que para ela, tudo nunca era a aproximação sequer de quase tudo.
As travessuras da bela Lalau eram tão desafiantes que era sua a vontade de ver um desastre por dentro a fim de conhecer bem essa realidade, não podendo descortinar o malabarismo que lhe era feito pela sociedade, para que um qualquer fardado lhe parecesse rei. Ainda assim o rasgo pueril de achar prazer em qualquer coisa fazia-a dizer ao padre que se ele não pudesse conversar com ela, lhe agradecia se a deixasse ficar ali, a olhar para as paredes da biblioteca onde este fazia a pesquisa de dados históricos e políticos, pois ela também estava bem daquele modo: as paredes sempre lhe tinham contado muitas coisas.
E estas confissões de Lalau fizeram o padre descobrir-se a si mesmo de um outro modo, sobretudo quando foi o ciúme do amor de Lalau por Félix que o esclareceu de um acontecer que por Deus!, enquanto homem nunca poderia ter sido realidade diferente da que o levou ao respeito divino.
Haveria sim que assumir o compromisso da consciência antiga de sentir Lalau como mais do que uma criatura, ela era a sociedade humana se por aquele abismo que lhe preparavam, a sua decisão fosse a de arriscar sem mais. Havia que o evitar. A imperatriz da Casa Velha, D. Antónia gostaria de ter sido imperatriz nalgum ponto mínimo da terra que fosse, e ainda que tivesse oferecido educação a Lalau, não queria, nem sequer permitia que o padre reverendíssimo questionasse as suas decisões em relação ao futuro da moça. As ideias certas da casa velha eram as de que por ali ninguém vivia no mundo da lua e todos se haveriam de fazer às proximidades régias nem que não fossem dignas sequer de teimarias.
No dia em que Lalau falou pelo silêncio depois de lhe ter sido desmentido o laço de sangue a Félix, a vida humana foi para ela capital mendiga de tudo.
A verdade? Que verdade? Ex-ministros, criadas, escravos, os egoísmos de letrados, a claridade de que uma anedota era sempre algo político, os coronéis e a vida derramada que abrangia todos os recantos para os controlar e justificar poder de mando, mesmo quando quem baralhava as cartas, pudesse ser também uma casa velha, seca, nos rituais das novenas diárias, dentro da qual, a capela deitava missa cantada ou rezada, consoante as visitas da casa fidalga. Seria a missa mais solene, seguramente, desde que o governo mandasse fuzilar todos os legais que se achassem. E o fuzilamento poderia ser o de um amor entre seres que, supostamente, o não poderiam sentir. Só há que inventar. Só há que confundir! E o poder abre caminho sem esforço.
Um dia, depois de passadas as grandes tormentas, vi de relance Lalau, diz o padre narrador que os olhos de Lalau eram uma edição do vento que não vai às bibliotecas: era uma edição à qual se fechou a janela. E o que venceu não foi o amor, mas o valor pessoal.
Na Casa Velha multiplicaram-se as visitas e no limar das arestas, abriam-se mais entradas, totalmente discriminatórias, e cada qual sabia por onde entrar e sair. As soluções acomodatícias ligadas às emergências dos interesses e dos valores das actividades comerciais e financeiras e seus agentes estavam no auge. Além das entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho avesso que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos. D. Antónia não tinha de o percorrer, nem de se encher de pó para chegar à reza. O seu local era uma reserva vitalícia junto ao altar com bênção mais forte do padre pois que a distancia dela, contava em atribuições.
O Cônego, homem por natureza, tinha o seu álibi, em nome de Deus e o seu meio para ser.
Afinal as poucas coisas que não eram velhas na Casa, além de Lalau, eram os livros de Voltaire e Rousseau e deles uma busca de independência num mundo que deixava pouca margem para isso. Enfim, a viagem dos comboios é muito diferente da que fazem os rios.
Um século antes de Casa Velha, foi dito que o homem nasce livre, mas encontra-se sempre aprisionado.
Teresa Bracinha Vieira