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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - X

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    Minha Princesa de mim:

 

  Quando passo dias de aturo de nevralgias, mialgias e outras algias roedoras, acontece-me pensar como nem a lenta duração do tempo nos ajuda sequer a adivinhar o que virá aí. Em situações de incómodo ou aflição, a ânsia de um alívio é sempre mais autoritária do que a imaginação de qualquer outro porvir. E, entretanto, será também mais paliativa a evocação ou recordação de recuperações e confortos passados, ainda que assim se possa confundir a força expressiva do desejo com a imaginação que nos constrói um pretérito cujo regresso desejamos precisamente porque o revestimos de curativas bondades. Aliás, quase nos sói dizer "já passei por pior e aqui estou, e bem melhor do que dantes!", ou, ainda, "estou como novo, é sempre assim!".  As fezadas talvez não sejam ingénuas, mas tão somente inocentes. Certo é que lá vamos vivendo e desaborrecendo o nosso anjo de serviço que, lá em cima, vai sorrindo por achar graça a resmungões resignados... Muito embora, e todavia, nova resmunguice nos vá minando ao pensarsentir que muita gente à nossa volta é mal agradecida, pois nem se dá conta de como vamos, briosos, calando ou, mais eufemísticos, mascarando tantas e tão justas queixas...

 

  Imagina tu agora, Princesa de mim, como se sentirá qualquer de nós se, em vez de se ver ao espelho de si ou de olhar para o retrovisor, abrir a vista para o que tem à sua frente, o imediato tangível, o nevoeiro próximo, o além desconhecido. Desde logo nos desconcentramos de nós próprios e vamos perdendo peso, não será tão depressa que nos afundaremos. E, logo também, o tangível se torna palavra e acto ao nosso alcance, sobretudo consciência e caminho de relação com coisas e gente que dão vida ao mundo, a este mundo a que pertencemos e a cuja obra somos chamados. A seguir, perscrutamos a neblina próxima, que vai recuando como se a intensidade concentrada do nosso olhar a empurrasse para libertação da nossa descoberta. E quando finalmente chegamos ao início do invisível, paramos para o contemplar, livres do peso de nós, feitos só interrogação. Muitas vezes pensossinto, Princesa de mim, que então se consciencializa a quintessência desta condição humana: quando já não é uma voz a perguntar-me Quo vadis?, mas o íntimo de mim que me questiona: Quo vado?

 

  Chova ou faça sol, sofra eu ou regozije-me, nada disso tem sentido em si. Ainda que pareça teimosia, só esse convívio anímico com tal interrogação me traz sentido à vida: para onde vou? Como se eu fosse fora de mim e no caminho da vida me encontrasse.

 

      Camilo Maria   

 

Camilo Martins de Oliveira