CRÓNICA DA CULTURA
(…) naquela casa houve sempre neve a agudizar o frio: verão ou inverno os seres eram recrutados ao horizonte.
Bruno, meu amigo, minha tão jovem vaidade;
Só posso responder à tua carta dizendo-te que naquela casa, tanto quanto me recordo, houve sempre neve. Neve, lá mesmo dentro da casa. Diria que em certos dias havia neve dentro do próprio forno de lenha. Fora arrendada essa casa aos caseiros da quinta da tua avó. Recordas-te? Caía nela em charcos, a água das chuvas, a neve, em despedaçados e pesados flocos, fustigava-a com a ajuda do vento e tudo tão suportado pela casa estoica e pelos seus habitantes. Tenho a certeza de que era assim para que eles pudessem ser seres do mundo. Agora tenho outra certeza: mesmo no verão, no tempo dos milhos, o tempo, caía pelo buraco do teto da cozinha de chão de terra e, feito neblina, a qualquer hora, furava todas as velhas rachas da casa e expandia-se no ar, fazendo-nos sentir necessidade de algum agasalho. A casa era uma casa de aldeia, rural, marcada pelas pedras cinzentas e pelos sequeiros de pedra cinzentos e pela eira de pedra cinzenta. A casa era o bater do coração do ti Aires que a achava um mistério fundo, ou não guardasse ela, gentes e bichos, num orgulho de casa conforme a todas as necessidades, assim ele a descrevia. Confirmo-te que a tia São fazia o tal arroz de feijão no tacho, assente na grelha dos três pés, e, não havia melhor cheiro no mundo do que aquele que vivia no fumegar deste tacho ou na abertura da tampa do forno de lenha, onde, assada estava a galinha e cozido o pão, ambos a espreitar-nos como um vestido aberto às cerejas. E nós, Bruno, nós lá íamos perguntando à Ti São, qual a razão do repasto e por entre as perguntas, as lágrimas que ela limpava dizendo sempre:
Maldita constipação! E fazia por tossir.
A ti São dava-nos sempre suspiros que fazia com as claras dos ovos que sobejavam dos almoços com os amigos do marido, vizinhos de ambos, e em cuja mesa – que era a própria arca salgadeira das carnes do porco - ela se não sentava nunca, apenas de pé e de prato de alumínio na mão só o arroz de feijão provava. Ainda assim, para nós, abria o forno, metia a pá e lá vinham eles, os suspiros direitinhos provocar o nosso olhar.
Vá levai alguns, dizia-nos num sorriso de ternura.
Nós lá íamos para casa felizes com aquelas guloseimas únicas. No outro dia, ou melhor, em mais outro dia, seguia a ti São às 5h da manhã para o campo, de onde só regressava de novo por volta da meia hora, como quem diz, a um outro meio-dia e meia. Regressava para pôr no lume a sopa a fazer. Esta sopa levava couves e um pouco de gordura da barriga do porco e comiam-na com broa saída das mãos da Ti São. A nós ela deitava os olhos e dizia-nos:
Vá ide almoçar, isto não é para os meninos.
E tu reparavas que eles nunca falavam um com o outro durante o almoço, ou, falava o ti Aires por gestos secos, conhecidos da ti São depois de 50 anos de matrimónio. Talvez por isso havia sempre neve na casa. Talvez por isso o fulgor do mundo entrara há 50 anos, quando o tempo das promessas lhes obedecia, e, depois, rapidamente as fartas hortas foram ficando nuas, o quarto do casal com lençóis mais gelados, os porcos a engordarem sempre o mesmo e os secos polvos do Natal cada vez mais tesos e magros.
E o ti Aires lá seguia para a empa de pés nus e gretados enfiados nas botas velhas, e, a ti São de joelhos, lavava a roupa no riacho partindo previamente com as mãos o gelo da superfície da água; depois lavava a roupa, esfregava-a na pedra como se não tivesse chagas nas mãos. Num sol qualquer corava a roupa exposta no chão; puxava os bois à fonte, enchia os colchões de capas de milho, deitava semente ao lavrado e vinha para casa dar comida às galinhas e aos coelhos e com a tal constipação que a fazia chorar, cortava um pouco da barriga do porco que cozera na sopa do almoço, e acompanhava-a com batatas cozidas, evitando que fossem solteiras de acompanhamento. Para nós, lá vinha mais um suspiro.
Tudo em silêncio, ou quase.
E tens razão Bruno, nunca compreendemos porque chegada a quase noite, o ti Aires lhe batia, e lhe batia até com cordas. Depois bebia, dizendo que era para esquecer ou aquecer e deitava-se.
Nós e os suspiros de que falas. Nós que tanto gostávamos de passar o dia a brincar à volta daquela casa, e a dizer adeus à ti São, nós, olhávamos para os suspiros e esmigalhávamo-los nas mãos a cada chibatada do ti Aires na Ti São, e o que caia das nossa mãos era neve. Naquela casa houve sempre neve, houve sempre muito frio.
E a cebola no tacho também fazia chorar a ti São: e nós miúdos confundidos.
Bruno há sempre um envolvimento na reflexão a respeito de tudo e com a nossa atual idade tem de haver decantação. Alguns acontecimentos que referiste poderiam parecer-nos, nos dias de hoje, insignificantes, e, afinal surgem com um significado que no momento não pensámos ter sido tão violento por muito que esmigalhássemos os suspiros nas mãos. Vivemos naquela casa episódios lúdicos e presenciámos forças ensombradas, forças daquelas que impressionavam os olhos a chorar de tão brutas serem. Digo-te: é bom que te não queiras perdido daquele tempo. É bom que queiras que o criador tenha que optar.
É bom que saibas que tanto quanto me recordo, e tu te aproximas, naquela casa houve sempre neve a agudizar o frio: verão ou inverno os seres eram recrutados ao horizonte. E enfim, a indiferença, essa, em que os faziam jogar a própria vida…era, é…
Saudades te envio
Isa
Teresa Bracinha Vieira