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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - XI

 

 

Minha Princesa de mim:

 

   Escreves-me, em resposta à minha última carta, que te pareci adoentado e pessimista... Dizes mal: na verdade, continuo afligido por dores e maleitas velhinhas e não me refugio em sonhos de recuperações passadas que, próprias de outras idades e viços, não creio que possam repetir-se. Mas, se dou comigo a cair em tentações de lástima ou resmunguice, logo tento eu mesmo entrar em dialética com a vida, neste tempo atual e em modos possíveis. Esqueço o que me pesa, tampouco olho para trás, procuro descortinar na realidade presente a substância das coisas por vir. Ganho a leveza necessária para, em vez de me prender ao que fui, voar até onde não estive ainda.

 

   Entrar em dialética com a vida que anima o mundo das pessoas e das coisas visíveis e invisíveis é como estabelecer uma relação de contacto e afeto com a realidade, isso a que, quiçá, muitas vezes chamamos progresso. Costumo, aliás, dizer para comigo que a diferença entre essa minha perspetiva dialética e a hegeliana, ou a marxista, é que a minha não é obsessivamente determinável, nem necessariamente fatal, antes se desenrola numa dinâmica de liberdade, isto é, em animação do espírito criador.

 

   E a talho deste, calha falar-te dum opúsculo de Paul Valéry, originalmente escrito em francês, mas para tradução em inglês e sua publicação na famosa e já antiga revista londrina Athenaeum - hoje dirigida por John Middleton Murry - em abril de 1919. Há um século... A Amazon, para comemorar tal centenário, edita agora, pela primeira vez, o original francês, intitulado La Crise de l´Esprit. O texto breve distribui-se por duas cartas, tendo a primeira sido publicada pela Athenaeum em 11 de abril de 1919, e a segunda em 2 de maio. Com um século, eis um documento profético, na medida em que já anuncia preocupações do nosso tempo, ecoadas em raros mas pertinazes passos de discursos e comentários hodiernos, no quadro desta campanha para as eleições europeias de 2019. Traduzo-te seguidamente alguns trechos das seculares cartas de Paul Valéry:

 

   Nós, as civilizações, sabemos agora que somos mortais.

 

   Ouvimos falar de mundos inteiramente desaparecidos, de impérios afundados a pique com todos os seus homens e engenhos; levados até ao fundo inexplorável dos séculos com os seus deuses e leis, as suas academias e as suas ciências puras e aplicadas; com as suas gramáticas, os seus dicionários, os seus clássicos, seus românticos e simbolistas, seus críticos e os críticos dos seus críticos. Sabemos bem que toda a terra aparente é feita de cinzas, que a cinza significa alguma coisa. Apercebemo-nos, através da espessura da história, dos fantasmas de imensos navios que vogavam cheios de riqueza e de espírito. Não podíamos contá-los. Mas esses naufrágios, ao fim e ao cabo, não eram de nossa conta.

 

   Elam, Nínive, Babilónia, eram belos nomes etéreos, e a ruína total desses mundos tinha para nós tão pouco significado como a sua própria existência. Mas França, Inglaterra, Rússia... seriam também belos nomes. Lusitânia também é um belo nome. E vemos agora que o abismo da história chega para todos. Sentimos que uma civilização é tão frágil quanto uma vida. As circunstâncias que atirariam as obras de Keats e de Baudelaire para o pé das obras de Meandro já não são inconcebíveis: vêm nos jornais. 

 

   ... ... Uma primeira ideia surge. A ideia de cultura, de inteligência, de obras magistrais, tem para nós uma relação muito antiga - tão antiga que raramente subimos até ela - com a ideia de Europa.

 

   Outras partes do mundo tiveram civilizações admiráveis, poetas de primeira ordem, construtores e até sábios. Mas nenhuma parte do mundo possuiu esta singular propriedade física: o mais intenso poder emissor unido ao mais intenso poder absorvente.

 

   Tudo veio à Europa e tudo dela veio. Ou quase tudo...

 

   Ora, no presente, levanta-se esta questão capital: irá a Europa conservar a sua preeminência em todos os géneros?

 

   Tornar-se-á a Europa no que, na realidade é: um pequeno cabo do continente asiático?

 

   Ou permanecerá a Europa aquilo que parece, ou seja: a parte preciosa do universo terrestre, a pérola da esfera, o cérebro de um vasto corpo?

 

 

   [Abro aqui um parêntese entre as citações de Valéry, para te lembrar, Princesa de mim, um passo de Os Lusíadas do nosso Camões (Canto III, 20):

 

                                       Eis aqui, quase cume da cabeça

                                       De Europa toda, o Reino Lusitano,

                                       Onde a terra se acaba e o mar começa

                                       E onde Febo repousa no Oceano.

                                       Este quis o Céu justo que floreça...

   Aí nos tens.]

 

   E termino as citações de La Crise de l´Esprit traduzindo o fim da segunda daquelas centenárias cartas do francês:

 

   Mas o Espírito europeu - ou, pelo menos, o que le tem de mais precioso - será totalmente difundível? O fenómeno da entrega do globo à exploração, o fenómeno da igualização das técnicas, o fenómeno democrático, que nos levam a prever uma deminutio capitis da Europa deverão ser considerados decisões absolutas do destino? Ou teremos nós ainda alguma liberdade de contrariar tal ameaçadora conjunção das coisas?

 

   Talvez procurando essa liberdade a criemos. Mas para tal procura será necessário abandonar por uns tempos a consideração dos conjuntos, e estudar no indivíduo pensante, a luta da vida pessoal com a vida social.

 

   E assim chego ao que te queria dizer. Como em cartas, mais recentes do que remotas, já te escrevi, a crise do mundo atual é, em sentido próprio, um ponto crítico, ou seja, um instante insistente, um momento em que se confrontam encruzilhadas, e caminhos parecem abrir-se como opções de orientação: não tenho nenhum dom profético, tampouco pensossinto que o profeta seja ou possa ser um adivinho... Mesmo profetizar é apenas anunciar que dado momento ou a presente hora é do apelo, da vocação, essa do chamamento que nos oriente, no íntimo de nós, para a via que nos aparece como a da virtude, isto é, da fortaleza na construção da cidade aberta a todos. Pois que não há convívio possível no mundo sem consciência da humanidade comum. E digo-te isto, minha Princesa de mim, não primeiramente por razão evangélica tão insistente nos escritos de S. João, mas por não poder, eu próprio, pensarsentir-me noutra condição que não seja essa, genética, comum a todos nós: Deus criou o Homem, e criou-o homem e mulher. Pertencemo-nos na nossa humanidade.

 

   Cada vez menos, e muito rapidamente, o mundo nosso habitat se divide entre centro e periferia, antes na ribalta vão surgindo povos e culturas clamando igualdade. Até o próprio fenómeno migratório massivo que todos os dias é invasivo mais não é do que um sintoma do impulso generalizado de emergência das gentes e da sua dignidade, a reclamarem o espaço de liberdade e progresso que perderam nas pátrias em que a ganância e o poderio de outros as submergiram.

 

   A urgência do momento atual não é equacionar poderes dominantes ou para tal vocacionados, é saber aceitar e compreender o diálogo como condição indispensável do convívio inevitável, para que este antes seja fator de construção de um mundo de justiça e paz. O Espírito da Europa - com a qual tudo foi ter, e da qual tudo, ou quase tudo veio - diz Valéry logo após o fim da Grande Guerra, talvez tenha essa missão de propor o caminho da liberdade, da tal liberdade que criamos quando a procuramos. Demanda só possível em jeito e amor de távola redonda dos povos todos, nos antípodas das tentações hegemónicas das grandes ou maiores potências ou das pretensões nacionalistas de pequenos satélites votados a sonhar com qualquer Retrotopia.  E, por falar nisto, fecho esta carta traduzindo-te trechos do final do livro de Sygmunt Bauman com o mesmo título (originalmente editado, em inglês, na versão que possuo, pela Polity Press, Cambridge, 2017):

 

   Todavia, há condições a respeitar para nos percebermos e tratarmos uns aos outros como ´válidos parceiros de diálogo´. As probabilidades de diálogo frutífero, tal como o Papa Francisco nos recorda, dependem do nosso recíproco respeito e a assumida, garantida e mutuamente reconhecida igualdade de estatuto:

 

   «A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É uma obrigação moral. Se quisermos repensar a nossa sociedade, precisamos de criar empregos dignificantes e bem pagos, especialmente para a gente nova. Fazê-lo requer conceber novos, mais inclusivos e igualitários modelos económicos, visando não só servir uns poucos mas beneficiar gente comum e a sociedade no seu conjunto. Isto chama-nos a passar de uma economia líquida para uma economia social.» 

 

   Não há atalhos para um regresso rápido, hábil e sem esforço à construção de diques contra a corrente - seja a Hobbes, às tribos, à desigualdade, ou ao ventre materno. Repito: a tarefa presente de se elevar a integração humana ao nível de toda a humanidade não terá provavelmente qualquer precedente, precisamente por se revelar tão árdua, onerosa e perturbante de perspetivar, realizar e completar. Temos que nos preparar para um longo período, marcado por mais perguntas do que respostas, mais problemas do que soluções, tal como para agirmos na penumbra de difíceis equilíbrios entre as probabilidades de êxitos e de derrotas. Mas neste caso - contrariamente aos casos em que Margaret Thatcher invocava falta de alternativas - o veredito de que "não há alternativa"

 

depressa perderá sentido e não beneficiará de qualquer apelo. Mais do que em quaisquer outros tempos, nós - habitantes humanos da Terra - estamos numa situação de ou/ou, assim ou assado: ou nos damos as mãos, ou iremos cair na mesma sepultura.

 

   As campanhas eleitorais europeias perderam mais uma oportunidade de suscitar uma reflexão cidadã.

 


Camilo Maria       

 

Camilo Martins de Oliveira