CRÓNICAS PLURICULTURAIS
30. PATERSON: ENTRE O TRIVIAL E A AUTOSSATISFAÇÃO POÉTICA
Paterson é motorista de autocarros e poeta.
Tem um trabalho que não dói, vida e afetos estáveis, uma domesticidade trivial.
A poesia é fundamental para Paterson, o autor, mas Paterson, a cidade, não é poética. Ele e a cidade de Paterson, New Jersey, nos Estados Unidos, partilham o mesmo nome.
Em casa tem livros de William Carlos Williams, entre os quais “Paterson”.
Ele e Laura amam-se e têm um buldogue inglês pacholas, ciumento e intruso.
A urbe que habitam é vulgar, trivial, apática, pouco cuidada.
Aparentemente não infunde poesia.
Mas a poesia está na rua e a rua na poesia.
A poesia está em casa e em casa a poesia.
Em coisas triviais, como a rotina diária do chofer que a observa e vê passar pelo espelho retrovisor. Os versos dos poemas, sem rima e em prosa, são banais e modestamente poéticos, falando de caixas de fósforos, copos de cerveja, conversas de passadouro.
Em Poema de Amor, lê-se:
“Temos imensos fósforos em nossa casa.
Mantemo-los sempre à mão.
Atualmente a nossa marca favorita é a Ohio Blue Tip (…)
Eles são excelentemente embalados, (…) com o texto em forma de megafone, (…) como que para dizer ainda mais alto ao mundo, “Eis o mais belo fósforo do mundo, (…) tão sóbrio e furioso e teimosamente pronto a explodir numa chama, acendendo, talvez, o cigarro da mulher que amas, pela primeira vez (…)”.
Poema em que Laura figura como musa:
“É isso que tu me deste, eu transformo-me no cigarro e tu no fósforo, ou eu no fósforo e tu no cigarro, resplandecendo em beijos que ardem em lume brando rumo ao paraíso”.
Os poemas são minimais, frugais, despretensiosos, humildes e não eruditos, como a vida citadina, pessoal, social e espartana que vive e rodeia Paterson:
“Quando somos crianças aprendemos que existem três dimensões: altura, largura e profundidade. Como uma caixa de sapatos.
E mais tarde compreendemos que existe uma quarta dimensão: tempo. Umm.
E há quem diga que podem ser cinco, seis, sete,…
Termino o trabalho, tomo uma cerveja no bar.
Olho para o copo e sinto-me contente”.
Poemas de coisas concretas, materializando a matéria de que é feita a poesia:
“A água cai do céu singelo.
Cai como cabelo, a cair dos ombros duma rapariga (…)”.
“Estou em casa.
Está agradável lá fora: quente.
Sol na neve fria.
Primeiro dia de primavera ou último de inverno”.
Poemas de pessoas em concreto, materializando o conteúdo de que é feita a poesia:
“Minha pequena abóbora,
às vezes gosto de pensar em outras raparigas,
mas a verdade é
se alguma vez me deixares
arranco o meu coração
e nunca mais volto a pô-lo no lugar.
Nunca existirá ninguém como tu.
Que embaraçoso”.
Por que não publicar os poemas? Têm de ser publicados! Sugere e sentencia Laura.
Paterson diz que sim, num permanente adiar, não os divulgando, não querendo que os leiam, até ao dia em que Marvin, o buldogue, os mastiga e tritura: “O cão comeu-me o tpc, o trabalho de casa”. O que aceitou como um facto consumado, qual gesto de autossatisfação. Sem paixão? E perda de orgulho em si próprio, porque eram apenas palavras escritas na água? O protagonista nunca se assumiu como poeta, apenas como motorista.
Paterson, filme do realizador japonês Jim Jarmusch, é um poema em prosa de aceitação da vida, onde pessoas boas, comuns, resignadas, cansadas, ensimesmadas, gabarolas, macambúzias e perdidas se confundem com a diversidade comum em uniformidade.
Onde a poesia é a sua imagem de marca por excelência, retratando e visando ultrapassar o trivial rumo a um equilíbrio de autossatisfação e de desejável felicidade, numa fusão de simplicidade e profundidade.
E o nome de Laura, a amada de Paterson, é igual ao da amada de Petrarca…
28.05.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício