Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Falta à Europa um imaginário europeu. Mas o imaginário europeu, no século do cinema, foi sobretudo um vulcão sem actividade. Por vezes, uma erupção. Marlene Dietrich quando foi anjo azul. Brigitte Bardot quando Vadim, que talvez fosse Deus, a criou. As italianas. A Anna Magnani de Rossellini e Roma, Cidade Aberta; Silvana Mangano, que o meu sogro ia ver ao cinema de bairro; a Loren e a Cardinale, que gostaríamos de ter visto onde mais ninguém nos visse.
Jeanne Moreau podia, mais do que a maioria das actrizes, ter inaugurado um imaginário de modernidade. Um imaginário ao mesmo tempo transgressor e lírico. Um imaginário amoroso sem servos ou servas, sem senhores ou senhoras. Um imaginário de tensões e contradições, que tanto afirma o corpo como o espírito. Num só filme mítico, "Jules et Jim", com uma personagem que nem entra no título, Jeanne Moreau deu-nos tudo isso como mais nenhuma mulher ou homem o terá conseguido no cinema europeu. Na boca, no olhar, nos gestos dela irrompe uma forma de amar europeia. Que o cinema que veio depois, quelle domage, não conseguiu continuar. Deixem-me lembrar esse filme, essa lição de educação sentimental a que Jeanne Moreau deu corpo. Não encontro melhor forma de a homenagear.
Ménage à trois A mulher americana começara a tomar a pílula havia quatro anos, faltavam outros quatro para que Maio de 68 pusesse De Gaulle com as calças a arder. Em 1964, Truffaut filmava “Jules e Jim”, história de um ménage à trois, gentil e pudico como todos os ménages à trois.
Em 1964, herdeiro mal lavado dos beatnicks Ginsberg e Kerouac, o movimento hippie começava a sua peregrinação pelos torcidos trilhos do amor livre, cultivando abundantes formas de promiscuidade física, sexual e intelectual. Muita lama, muita cama ou fosse onde fosse e muita contracultura. Mas o filme de Truffaut, como o próprio Truffaut, está nos antípodas dessa vaga de sexualidade exsudante, se me autorizam o transpirado qualificativo.
Truffaut gostava muito de um autor velhinho, Henri-Pierre Roché, que escrevera, aos 64 anos, os seus primeiros livros de sucesso. Um deles foi “Jules e Jim”. Trabalharam juntos na adaptação, mas aconteceu a Henri-Pierre o que acontece a todos os velhinhos: morreu. E Truffaut levou o romance para o que era a sua forma subtil de ver o mundo: estetização, elipse, refinadas sugestões, uma lírica educação sentimental.
Dois amigos, um francês e um alemão, ambos de fina cultura literária, livres de preconceitos como só se pode sê-lo quando o mundo os tem bem arreigados e firmes, partilham, na Belle Époque, o amor da Catherine, que é Jeanne Moreau. Todas as mulheres são mais bonitas do que Jeanne Moreau e, no entanto, nunca um rosto de mulher foi mais bonito do que o de Jeanne Moreau em “Jules e Jim”, nunca houve mulher com gestos tão graciosos e suspensos. Por causa dela pensamos que devia ser normal haver apenas ménages à trois e, entre cigarros e cognacs, passarem dois homens muitas noites a discutir a mulher que partilham, descobrindo que cada um ama uma diferente parte dela.
Era o que faríamos se fôssemos franceses e amigos de Henri-Pierre Roché. No pré-histórico começo do século XX, ele defendeu o que chamou “poligamia experimental”. Estou a exagerar: talvez só a tenha praticado. Passava as amadas ao seu melhor amigo e sustentou, ao mesmo tempo, quatro lares.
A tudo isso alude “Jules e Jim”. Mas, ou Truffaut não fosse Truffaut, nunca o sublinha. Terá Truffaut sido infiel ao velhinho autor que em vida amara?
Turbilhão de vida “Jules et Jim” é o filme em que François Truffaut se deu ao único verdadeiro luxo que a vida de um homem pode ter, o de ser, ao mesmo tempo, fiel e infiel. A quem? Não interessa? Interessa, sim. Já lá vamos.
No filme, inspirado, já disse, no livro autobiográfico de Henri-Pierre Roché, uma mulher ama em simultâneo dois homens, com o sossegado e emotivo consentimento dos três. Mas em “Jules et Jim”, os dois homens, um alemão e outro francês, são só silhuetas do turbilhão que foram em vida.
Jim é Henri-Pierre, o escritor, amigo da vanguarda parisiense, que convenceu Gertrud Stein a comprar as primeiras telas de Picasso. Inventou, se quiserem, o cubismo, metendo dólares nas bocas dos artistas, para lhes dar músculo ao braço que pinta. Foi o primeiro francês a ler “A Interpretação dos Sonhos” de Freud e escreveu-lhe até, a contar um sonho em que a própria mãe o violava.
Fora Franz Hessel, o Jules do filme, a revelar Freud a Jim. Era amigo de Walter Benjamin, com quem traduziu Proust para o alemão. Apaixonado pelos franceses, traduziu também Baudelaire e Stendhal. A estes Jules e Jim reais unia-os tanto a amorosa partilha de uma assembleia de mulheres, como a exaltada vivência da literatura e das artes. Não era lá serem cultos, era viverem aquilo: os livros, as telas, os espectáculos iam directos à veia. A actual ideia de uma cultura desvirilizada, paga por secretarias de Estado, ser-lhes-ia abominável. Neles, a cultura tinha de ser uma forma de tesão.
“Jules et Jim” não será completamente fiel a estes magníficos carroceiros das artes. Por ser de Truffaut, só é fiel a uma mulher. Jeanne Moreau, ou melhor, a boca, olhos, rosto, voz e cabelos gamam o filme e tomam conta dos nossos olhos.
Truffaut soube por carta que, ao filmar assim Jeanne Moreau, fora afinal fidelíssimo. A carta assinava-a uma desconhecida Helen Hessel, cujos 75 anos eram o que restava da mulher real amada pelos já falecidos Jules e Jim. Helen correra a ver o filme e, na sala escuríssima, vira “ressuscitar o que tinha vivido cegamente”. Perguntou a Truffaut: “Que afinidade o iluminou ao ponto de revelar o essencial das nossas reacções íntimas?” Há perguntas que valem mil elogios. E, hoje mais do que nunca, é da mais inteira justiça dizer que vem de Jeanne Moreau essa luminosa afinidade.
«Thomaz de Mello Breyner – Relatos de uma Época, do final da Monarquia ao Estado Novo» de Margarida de Magalhães Ramalho (Imprensa Nacional, 2018) é uma biografia elaborada com grande rigor cronológico e histórico, que permite compreender não só a vida do biografado e mas também a sua época.
UMA BIOGRAFIA EXEMPLAR A obra que agora nos chega só foi possível porque o biografado teve o cuidado de registar em cadernos e em agendas aquilo a que foi assistindo, bem como as pessoas com que se cruzava e se relacionava. Os primeiros cadernos respeitam ao período de 1880 a 1895, desde a frequência académica aos passeios, passando pelo namoro com Sophia Burnay, pela morte do pai ou pelo casamento do Príncipe Real. Teria sido o seu amigo conde de Sabugosa, um dos Vencidos da Vida, que o incentivou à prática memorialista – e quando este morreu (em 1924) teria feito uma promessa a si mesmo de que publicaria as suas “Memórias”, deixando o primeiro volume pronto (1930) e um segundo praticamente terminado. Infelizmente, porém, não chegaria a cumprir o seu desiderato, para além da infância e juventude, deixando, contudo materiais que foram preciosos para a elaboração desta obra. E quem aqui encontramos? Para Reinaldo dos Santos, “um príncipe do espírito” e para José Tomás Sousa Martins, insigne mestre de Medicina, “o melhor dos rapazes. Possui a nobre faculdade de admirar sinceramente (…) no sentir tem a mais absoluta indiferença pelo pedantismo triunfante, a mais rija indignação só lhe vem diante do egoísmo burguês”. Os onze capítulos do livro acompanham a personagem. Nascido em 2 de setembro de 1866, Thomaz de Mello Breyner vai acompanhar a transição do século e dos regimes. Os primeiros capítulos são mais curtos, mas com o andamento do tempo a informação coligida foi aumentando. Filho do comandante do regimento de Caçadores 5, então aquartelado no Castelo de S. Jorge, aí nasce, num lugar privilegiado. E dirá que foi um “menino estragado”, pelos mimos que recebeu de seus pais – aproveitando bem a possibilidade de ver tudo o que se passava à sua volta… Apenas com quatro anos, testemunha as movimentações da Saldanhada (1870) e a partir dos seis anos, sendo seu pai ajudante de campo do rei D. Luís. Passa a ser convidado para as festas dos príncipes, nas quais sofre troças e dissabores por ser uma criança apenas remediada de uma família sem meios de fortuna. Tem, no entanto, o apoio da rainha D. Maria Pia, que lhe permite superar situações difíceis. Os acontecimentos e as vicissitudes são múltiplos, mas o certo é que esse contacto revelar-se-á muito importante na formação do futuro médico, que inicialmente pretendeu seguir a carreira na Marinha… Conhece Herculano e Bulhão Pato e sabe tirar lições de um tempo que está longe das facilidades, mas que lhe dá um riquíssimo convívio humano… Conhece escritores, artistas, publicistas – até Ramalho e Eça. Começando com dificuldades no aproveitamento escolar, consegue superá-las com sucesso. Deixando o desígnio da carreira militar, aponta para a Medicina, dando-nos conta pormenorizada dos sucessos e infortúnios, merecendo especial referência a relação académica com os Professores José Tomás Sousa Martins e Miguel Bombarda. E lembro na memória familiar a boa lembrança que meu bisavô tinha do Conde Mafra. Meu bisavô era professor da Escola Médica e vizinho em S. João dos Bem-casados de Mello Breyner – admirando o jovem clínico.
NA CIDADE DE PARIS E NÃO SÓ… Partindo para Paris, para aprofundar os estudos da Medicina, afirma: “Tenho visto com satisfação que a Escola de Lisboa não é nada tão má e que os portugueses aqui podem fazer boa figura, quer pela fala, quer pelos conhecimentos que têm, de resto não admira porque os nossos programas são os mesmos e os livros também, o meio é que é mais acanhado”. O ambiente de Paris é cheio de surpresas, desde a tentativa de uns quantos penduras à espera que Thomaz lhes emprestasse dinheiro até a uma chamada para acorrer a um ataque histérico de uma senhora em casa de um conde russo… Apesar de tudo, com alívio, Thomaz regressa a Lisboa, é nomeado Médico da Real Câmara e prepara cuidadosamente o casamento com Sophia Burnay, filha do célebre banqueiro. Passo a passo, encontramos o período difícil em que a monarquia constitucional está profundamente fragilizada, e em que o rei D. Carlos se deixa envolver nos erros dos partidos dinásticos, divididos entre a pura intriga (“discussões e bulhas dos monárquicos”) e a incapacidade de mobilizar o país. A humilhação do Mapa-Cor-de-Rosa deixou marcas profundas, o suicídio de Mouzinho de Albuquerque, quaisquer que fossem as suas razões torna-se um sinal de desalento nacional. Este é, contudo, um tempo de muito trabalho profissional para Thomaz de Mello Breyner, aliando a consulta médica, a prevenção, a preocupação com as injustiças sociais, bem patentes na vida das meretrizes e no alargamento das doenças venéreas. As relações entre os Reis tornam-se cada vez mais distantes e inconciliáveis. E o médico descobre, com preocupação, sinais perigosos de doença em D. Carlos, um nível de diabetes elevadíssimo não augura nada de bom… O monarca vai trata-se nas Termas de Pedras Salgadas, e há um movimento regional que parece de grande apoio popular o Rei… T. Mello Breyner confessará que se deixou enganar por essa onda, que não podia iludir o facto de Lisboa ser cada vez mais republicana.
CONTINUAM AS DIFICULDADES… “Continuam as trapalhadas políticas. Não sei como isto vai acabar. Em geral, sou otimista, mas desta vez vejo tudo um bocado negro”. Estava-se em finais de 1907. O conde de Mafra apoia a política de João Franco, mas verifica que tudo se encaminha para um beco sem saída para o Rei e para o regime. Um colaborador no hospital diz-lhe, na véspera do Regicídio de fevereiro de 1908, “que uma grande desgraça se prepara”. E o terrível dia chega em que o Rei e o Príncipe herdeiro são mortos. Eduardo VII exclama: “A revolução triunfou, não é verdade?”. E Raul Brandão diz que quem passaria a governar seria “sua majestade o medo”… Mello Breyner não se conforma, acusa os cúmplices palacianos e conclui destroçado: “Dorme em paz doce príncipe ao lado de teu querido pai que te amava tanto e que tu adoravas. Mais doloroso seria para ti veres-te obrigado por uma política idiota a pisar constantemente a memória de teu santo pai. Dorme em paz querido anjo”. Sente-se no memorialista uma grande amargura e descrença absoluta na solução política encontrada depois do Regicídio. Em 20 de abril encontra António José de Almeida no comboio de Coimbra que se desfaz em argumentos contra o envolvimento republicano na morte do Rei, mas o Conde de Mafra não acredita.... Os pormenores da vida quotidiana somam-se à intensa atividade profissional, a I República, depois de implantada, é vista com desconfiança, a vida familiar conhece amenidades e sobressaltos, alegrias e desgostos… O inesperado contacto com os modernistas, como Almada Negreiros, dá um tom de futuro. E numa passagem muito breve, lemos: a minha neta Xixa ficou «distinta no seu exame elementar. Aquela pequena é extraordinária. Quando há dias estive no Porto vi-a decorar um soneto de Antero de Quental depois de o ouvir apenas 3 vezes. Que encanto de pequena»… E de quem nos fala? De Sophia de Mello Breyner Andresen, a mais célebre das suas netas…
Quando passo dias de aturo de nevralgias, mialgias e outras algias roedoras, acontece-me pensar como nem a lenta duração do tempo nos ajuda sequer a adivinhar o que virá aí. Em situações de incómodo ou aflição, a ânsia de um alívio é sempre mais autoritária do que a imaginação de qualquer outro porvir. E, entretanto, será também mais paliativa a evocação ou recordação de recuperações e confortos passados, ainda que assim se possa confundir a força expressiva do desejo com a imaginação que nos constrói um pretérito cujo regresso desejamos precisamente porque o revestimos de curativas bondades. Aliás, quase nos sói dizer "já passei por pior e aqui estou, e bem melhor do que dantes!", ou, ainda, "estou como novo, é sempre assim!". As fezadas talvez não sejam ingénuas, mas tão somente inocentes. Certo é que lá vamos vivendo e desaborrecendo o nosso anjo de serviço que, lá em cima, vai sorrindo por achar graça a resmungões resignados... Muito embora, e todavia, nova resmunguice nos vá minando ao pensarsentir que muita gente à nossa volta é mal agradecida, pois nem se dá conta de como vamos, briosos, calando ou, mais eufemísticos, mascarando tantas e tão justas queixas...
Imagina tu agora, Princesa de mim, como se sentirá qualquer de nós se, em vez de se ver ao espelho de si ou de olhar para o retrovisor, abrir a vista para o que tem à sua frente, o imediato tangível, o nevoeiro próximo, o além desconhecido. Desde logo nos desconcentramos de nós próprios e vamos perdendo peso, não será tão depressa que nos afundaremos. E, logo também, o tangível se torna palavra e acto ao nosso alcance, sobretudo consciência e caminho de relação com coisas e gente que dão vida ao mundo, a este mundo a que pertencemos e a cuja obra somos chamados. A seguir, perscrutamos a neblina próxima, que vai recuando como se a intensidade concentrada do nosso olhar a empurrasse para libertação da nossa descoberta. E quando finalmente chegamos ao início do invisível, paramos para o contemplar, livres do peso de nós, feitos só interrogação. Muitas vezes pensossinto, Princesa de mim, que então se consciencializa a quintessência desta condição humana: quando já não é uma voz a perguntar-me Quo vadis?, mas o íntimo de mim que me questiona: Quo vado?
Chova ou faça sol, sofra eu ou regozije-me, nada disso tem sentido em si. Ainda que pareça teimosia, só esse convívio anímico com tal interrogação me traz sentido à vida: para onde vou? Como se eu fosse fora de mim e no caminho da vida me encontrasse.
Celebra-se este ano o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), já devidamente assinalado e objeto de intervenções diversas, designadamente no Colóquio da Fundação Calouste Gulbenkian, inaugurado em 16 de maio por Guilherme d’Oliveira Martins, ao qual faremos referência.
Justifica-se pois esta sucessão de textos que, ao longo do ano, nos propomos efetuar sobre Sophia, tendo em vista a relevância da escritora em si mesma, inclusivé como dramaturga, mas ainda a sua intervenção cultural e cívica, num conjunto de ações e de criações ligadas também ao teatro e designadamente ao Centro Nacional de Cultura.
Daí que se dê o óbvio destaque aos aspetos criacionais da sua personalidade e criatividade, numa abrangência que largamente justifica ou mesmo se impõe nesta série de artigos, mesmo que se liguem mais ao autor-dramaturgo do que aos espaços em que a sua obra se concretizou ou, o caso concreto, certamente ainda mais se concretizará.
E nesse aspeto, que desta vez se liga ainda mais à literatura do que à arquitetura e ao espaço teatral, importa desde já referir as peças de Sophia. Citamos designadamente “O Bojador”, “O Colar”, “O Azeiteiro”, “Filho de Alma e Sangue”, “Não Chores Minha Filha”.
Para além destes títulos, referem-se textos e intervenções criativas e/ou críticas, num conjunto geral de ligações ao teatro e aos Teatros, que muito marcou a vida e obra de Sophia.
E há mais intervenções ligadas ao teatro. Citamos designadamente a recriação poética da “Medeia” de Eurípedes. É de assinalar aliás que essa tradução/adaptação não surge isolada no conjunto da sua obra, trata-se aqui não tanto de uma “tradução” mas sobretudo de uma recriação que se inscreve no conjunto de obras desta autora tão singular e tão coerente na vastidão, qualidade e heterogeneidade de vida e obra.
E mais: ao longo do mês, assinala-se a adaptação do conto de Sophia intitulado “A Menina do Mar” devidamente dramatizado e transformado em espetáculo no Teatro LU.CA – Teatro Luís de Camões, em Lisboa.
Ora bem: já várias vezes referimos aqui este Teatro, que oportunamente valorizou e valoriza uma tradição de salas de espetáculo e muito adequadamente se ajusta à celebração do centenário de Sophia de Mello Breyner Andersen.
E veremos outros aspetos da vida e obra de Sophia.
Os menores tornaram-se crianças e jovens. Os ladrões, gatunos ou larápios passaram a amigos do alheio. Os pretos tornaram-se negros, pessoas de cor e africanos. Os velhos passaram a idosos, anciãos, terceira idade, seniores e senadores. Interditos e inabilitados são agora beneficiários ou acompanhados. O seu interrogatório (estigmatizante?) passou a audição. O tutor é acompanhante. O marido passou a esposo, cônjuge e parceiro. A mulher passou a esposa, cônjuge e parceira. As hospedeiras são assistentes de bordo. Os cegos passaram a invisuais. Carecas a calvos. Os gordos a obesos. Carecas, cegos, desdentados, surdos e mudos a portadores de deficiência. O chumbo passou a reprovação, eliminação, exclusão, não admissão e retenção. A aprovação a admissão, aceitação, integração e inclusão. O patrão tornou-se chefe e empregador. O trabalhador passou de subordinado a colaborador. Os despedidos passaram a dispensados, colaboradores dispensados ou cessantes. Professor passou a docente. Aluno a estudante e discente. Destruir a descartar. Casas de pasto a restaurantes. Retrete a casa de banho e sanitários. O sexo passou a género. Prostitutas, prostitutos, gigolos, poliamores a trabalhadores de sexo. Falamos com rodeios. Com perífrases. Queremos ser perifrásticos. Com expressões não frontais, por vezes barrocas, elitistas e tribais. Pretendendo ser neutras, inócuas, inofensivas, civilizadas e tolerantes. E politicamente corretas. Querendo marcar a diferença entre a barbárie e a civilização? Como sinal da nossa tolerância para com o Outro? Ou pelo medo de usar palavras que se convencionou serem minimais e estigmatizantes?
O SEU LIVRO “A CASA VELHA” OU A HIPOCRISIA DAS CLASSES BURGUESAS
Ao reler Casa Velha de Machado de Assis, livro publicado em 1944, depois da sua morte, encontro ainda mais clara a similitude de significado entre um drama de família e a realidade política/histórica que se vive em sociedade no cerco e pelas limitações desta. Surgem-nos os acontecimentos políticos drapeados pelo pensar das gentes que os reflectem, e se deitarmos mão ao pressentir neste livro de um esboço de Dom Casmurro, entãotodas as entrelinhas são questões políticas de relevo, disfarçadas de histórias românticas, mesclando-se ambas em confidências acutilantes de verdade.
Neste livro, a narrativa é feita por um padre que por razões de fazer pesquisa na biblioteca de uma casa muito antiga e fidalga, nela encontra dados inerentes ao imperador Pedro II, bem como a seus altos membros de governo, cuja vida privada, mesquinha e devassa, permite a Machado de Assis a crítica aguda aos costumes sociais, aos seus jogos de interesse, religiosos ou não, a feiras de vaidades descritas numa fusão de interpretações, pertença única de Machado de Assis em palavras plenas de verdadeira essência anímica. E neste conto uma narrativa também de amor.
Diz-se que surge neste livro a descrição da primeira relação entre irmãos que se apaixonam desconhecendo os seus laços de sangue, temática posteriormente muito utilizada na literatura.
Lalau, moça de olhos largos de pureza-criança, amava como se o amor fosse a puberdade do espírito mas, assumindo-se como mulher neste sentimento, sendo que fingia acreditar que a leitura de Deus, por ser a mais velha, seria a melhor, num tempo em que para ela, tudo nunca era a aproximação sequer de quase tudo.
As travessuras da bela Lalau eram tão desafiantes que era sua a vontade de ver um desastre por dentro a fim de conhecer bem essa realidade, não podendo descortinar o malabarismo que lhe era feito pela sociedade, para que um qualquer fardado lhe parecesse rei. Ainda assim o rasgo pueril de achar prazer em qualquer coisa fazia-a dizer ao padre que se ele não pudesse conversar com ela, lhe agradecia se a deixasse ficar ali, a olhar para as paredes da biblioteca onde este fazia a pesquisa de dados históricos e políticos, pois ela também estava bem daquele modo: as paredes sempre lhe tinham contado muitas coisas.
E estas confissões de Lalau fizeram o padre descobrir-se a si mesmo de um outro modo, sobretudo quando foi o ciúme do amor de Lalau por Félix que o esclareceu de um acontecer que por Deus!, enquanto homem nunca poderia ter sido realidade diferente da que o levou ao respeito divino.
Haveria sim que assumir o compromisso da consciência antiga de sentir Lalau como mais do que uma criatura, ela era a sociedade humana se por aquele abismo que lhe preparavam, a sua decisão fosse a de arriscar sem mais. Havia que o evitar. A imperatriz da Casa Velha, D. Antónia gostaria de ter sido imperatriz nalgum ponto mínimo da terra que fosse, e ainda que tivesse oferecido educação a Lalau, não queria, nem sequer permitia que o padre reverendíssimo questionasse as suas decisões em relação ao futuro da moça. As ideias certas da casa velha eram as de que por ali ninguém vivia no mundo da lua e todos se haveriam de fazer às proximidades régias nem que não fossem dignas sequer de teimarias.
No dia em que Lalau falou pelo silêncio depois de lhe ter sido desmentido o laço de sangue a Félix, a vida humana foi para ela capital mendiga de tudo.
A verdade? Que verdade? Ex-ministros, criadas, escravos, os egoísmos de letrados, a claridade de que uma anedota era sempre algo político, os coronéis e a vida derramada que abrangia todos os recantos para os controlar e justificar poder de mando, mesmo quando quem baralhava as cartas, pudesse ser também uma casa velha, seca, nos rituais das novenas diárias, dentro da qual, a capela deitava missa cantada ou rezada, consoante as visitas da casa fidalga. Seria a missa mais solene, seguramente, desde que o governo mandasse fuzilar todos os legais que se achassem. E o fuzilamento poderia ser o de um amor entre seres que, supostamente, o não poderiam sentir. Só há que inventar. Só há que confundir! E o poder abre caminho sem esforço.
Um dia, depois de passadas as grandes tormentas, vi de relance Lalau, diz o padre narrador que os olhos de Lalau eram uma edição do vento que não vai às bibliotecas: era uma edição à qual se fechou a janela. E o que venceu não foi o amor, mas o valor pessoal.
Na Casa Velha multiplicaram-se as visitas e no limar das arestas, abriam-se mais entradas, totalmente discriminatórias, e cada qual sabia por onde entrar e sair. As soluções acomodatícias ligadas às emergências dos interesses e dos valores das actividades comerciais e financeiras e seus agentes estavam no auge. Além das entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho avesso que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos. D. Antónia não tinha de o percorrer, nem de se encher de pó para chegar à reza. O seu local era uma reserva vitalícia junto ao altar com bênção mais forte do padre pois que a distancia dela, contava em atribuições.
O Cônego, homem por natureza, tinha o seu álibi, em nome de Deus e o seu meio para ser.
Afinal as poucas coisas que não eram velhas na Casa, além de Lalau, eram os livros de Voltaire e Rousseau e deles uma busca de independência num mundo que deixava pouca margem para isso. Enfim, a viagem dos comboios é muito diferente da que fazem os rios.
Um século antes de Casa Velha, foi dito que o homem nasce livre, mas encontra-se sempre aprisionado.
1. Numa longa Carta Aberta de 20 páginas, publicada no LifeSiteNews, em tempo de Páscoa, mais concretamente, no dia 30 de Abril passado, um grupo de académicos, teólogos e padres católicos, dirige-se ao colégio dos bispos da Igreja Católica, invocando duas razões: acusar o Papa Francisco do “delito canónico de heresia” e requerer que os bispos façam o que é preciso para que ele renuncie publicamente a essas heresias ou se lhe aplique o estabelecido canonicamente, incluindo a remoção do cargo papal. E os bispos têm o dever de agir, porque “a acumulação de danos causados pelas palavras e actos do Papa Francisco ao longo de anos foi causa de uma das piores crises da História da Igreja Católica.”
2. Quais são essas heresias, por palavras e actos?
Em síntese, Francisco é acusado de aceitar que católicos divorciados e recasados civilmente possam ser admitidos, em certas circunstâncias, à comunhão; acusado de não se opor de forma mais contundente ao aborto; acusado de, no diálogo ecuménico com os luteranos, manifestar acordo com Lutero em alguns pontos; acusado de acolher os LGBT; acusado de afirmar que a diversidade de religiões não só é permitida por Deus, mas querida; acusado de ter dado cobertura e mesmo ter promovido personalidades que também dão cobertura a estas heresias, aceitam a moralidade de actos homossexuais e/ou praticaram ou encobriram abusos sexuais de menores...
Como exemplo de quem, em vez de ser condenado, foi promovido, aparece o arcebispo José Tolentino de Mendonça. Com estas palavras: “Em 2013, Mendonça louvou a teologia da Irmã Teresa Forcades, que defende a moralidade de actos homossexuais e declara que o aborto é um direito e que afirmou que ‘Jesus de Nazaré não codificou nem estabeleceu regras’. Francisco fê-lo arcebispo e chefe dos Arquivos Secretos do Vaticano. E também o escolheu para pregar o retiro quaresmal a ele e à Cúria em 2018.”
Outro exemplo: O cardeal Maradiaga, para lá de outras heresias, afirmou que “dentro do Povo de Deus, não há uma classificação dual dos cristãos — laicado e clero, essencialmente diferentes — e que, para se falar correctamente, não se deveria falar de clero e laicado, mas de comunidade e ministérios (serviços).”
3. Embora não seja possível aprofundar os problemas convenientemente, examinemos as “heresias”, que de modo nenhum o são, ao contrário do que pretendem esta e outras minorias no seio da Igreja, aguerridas contra o Papa Francisco. Pela ordem acima enunciada.
3.1. Quanto aos recasados. Francisco não abre as portas indiscriminadamente a todos. Diz que há casos e casos e cada caso deve ser examinado na sua concreção, com aconselhamento de um padre, com discernimento e atenção à consciência. Os cristãos não podem ser tratados infantilmente, como menores. Aliás, em 1972, o próprio professor Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, escreveu: O casamento é indissolúvel. Mas quando “um primeiro casamento se rompeu há já algum tempo” e de modo irreparável, e quando “um segundo enlace se vem manifestando como uma realidade moral e está presidido pela fé, especialmente no que concerne à educação dos filhos (de tal modo que a destruição deste segundo casamento acabaria por destroçar uma realidade moral e provocaria danos morais irreparáveis), neste caso — mediante uma via extrajudicial —, contando com o parecer do pároco e dos membros da comunidade, dever-se-ia consentir a aproximação da comunhão aos que assim vivem.” Penso que se deverá acrescentar uma outra condição: se se esclareceram as obrigações do primeiro casamento.
Porventura é heresia apelar para a gradualidade da verdade nestes casos? Quem estudou hermenêutica sabe que, evidentemente, na lógica, na matemática, nas ciências empírico-matemáticas, não há gradualidade, porque há o critério da verificabilidade experimental, e, por isso, não há uma ciência para homens, outra para mulheres, uma para budistas, outra para católicos ou ateus... Mas, na verdade pastoral, há essa gradualidade, pois é necessário atender a cada pessoa, às suas circunstâncias, à sua situação, à sua história...
Sim, Francisco disse que “muitos casais que coabitam têm a graça do matrimónio”. Ele apela para a importância do tempo e dos processos... Eu próprio tenho realizado o casamento de jovens casais que já coabitavam e que, num processo de maturação, concluíram que queriam realizar o seu casamento na Igreja. A realidade humana é histórica, processual...
3.2. Alguém de boa fé pode negar que Francisco se tem oposto permanente e veementemente ao aborto? Simplesmente, é necessário atender às pessoas e aos seus dramas. E a Igreja deve acolher e não excluir nem oprimir quem já sofre demais. Por isso, Francisco concedeu a todos os padres o que antes estava reservado aos bispos: na confissão, o poder de absolver também esse pecado.
3.3. Quanto a Francisco e Lutero. Claro que não é heresia afirmar que “as intenções de Martinho Lutero não estavam erradas. Era um reformador. Talvez alguns métodos não tenham sido correctos... E hoje luteranos e católicos, protestantes, todos nós concordamos com a doutrina da justificação. Neste ponto, que é muito importante, não errou”.
Quem anda minimamente atento sabe que o acordo oficial quanto à questão da justificação vem de antes do pontificado de Francisco. Realmente não é Deus que tem sempre a iniciativa? As nossas boas obras não são por graça de Deus? E quem pode negar que devemos estar gratos pelos “dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma”? É sabido que Lutero não queria entrar em ruptura com a Igreja. Foi Roma que não entendeu nem quis superar a corrupção em que vivia. Os autores da Carta querem continuar a vender indulgências?
3.4. Francisco é acusado de receber homossexuais e dizer que quem os “descarta” não tem espírito cristão. É evidente que os homossexuais não podem ser discriminados. Hoje, é sabido que 8% da população tem orientação homossexual. Há quem os acuse de deboche, disto e daquilo. Pergunto: e entre os heterossexuais só há santos? O que o Papa não quer e eu também não é o lóbi gay nem outros lóbis...
Quanto aos transexuais, seja-me permitido apresentar um caso concreto. Fui procurado por uma pessoa nessa situação. Fiquei bem ciente de quanto se pode sofrer... e da complexidade que esta situação deverá implicar — biológica, psicológica, social e cultural —, exigindo um enorme rigor e seriedade na sua compreensão.
É urgente que também na Igreja se avance no conhecimento da ciência, da biologia, etc.
Aproveito para deixar uma palavra sobre uma questão hoje muito acesa e sobre a qual me pronuncio criticamente e Francisco também. Estou a falar da “ideologia do género”. Sim, conheço e aprovo a distinção entre sexo e género, no contexto dos chamados “gender studies” e do seu contributo. Oponho-me é à ideologia do género, quando se pretende que a identidade sexual é pura construção social; não é verdade, o biológico também intervém; assim, hoje, pela imagiologia cerebral, até sabemos que a configuração do cérebro masculino e feminino é diferente, com todas as consequências.
Francisco também se pronunciou sobre o tema, na obra Politique et société, resultado de doze encontros com Dominique Wolton, intelectual francês, laico, director de investigação no CNRS (Centro Nacional da Investigação Científica), especialista em comunicação. Nestes termos, Wolton: “A ideologia do género não é o mesmo problema. É um desvio sociológico. Consiste em dizer que os sexos são indiferenciados, e que é unicamente a sociedade que distribui o papel masculino ou o papel feminino. Terrível este determinismo. Não há nem natureza, nem cultura, nem destino, nem liberdade, resta apenas a determinação social. E, se és contra estes determinismos, chamam-te reaccionário. Dizem-te que adoptas as posições da Igreja. A deriva ideológica fez-se em vinte anos”. Francisco: “Isto é uma confusão crítica, neste momento. Disse-o um dia publicamente na Praça de São Pedro, ao falar sobre o casamento: ‘Há ideias novas e eu pergunto-me se estas novas ideias, como a ideologia do género, não assentam em última análise no medo das diferenças”. Wolton: “Uma negação das múltiplas formas da alteridade e da diferença?” Francisco: “Disse-o em forma de pergunta. E encorajo os investigadores a debruçarem-se sobre o assunto”. Wolton: “A ideologia do género é o risco de uma negação da diferença. Ora, a diferença não é só social. É muito mais complicado. Trata-se de uma forma de determinismo ao contrário: ao dizer-se que não há homens, que não há mulheres, que tudo depende da sociedade, na realidade cria-se uma forma de determinismo social”. Francisco: “Não quereria que se confundisse a minha posição sobre a atitude para com as pessoas homossexuais com a questão da teoria do género”.
Neste domínio, quero referir também a grande polémica por causa de acções sobre igualdade de género em escolas. Aqui, estou com Henrique Monteiro, quando escreve que é necessário distinguir: “Se as acções são apenas contra a discriminação de qualquer género e orientação, tudo bem. Mas, se acaso são para propagar a ideologia de género, que diz que nascemos sem ele e que o sexo biológico reprime a essência do nosso ser etc.... e tal... é caso para prudencialmente acabar com tal programa. Nem provas científicas nem razões substanciais existem. Apenas uma teimosia ideológica desnecessária.”
3.5. Francisco é acusado por ter assinado, juntamente com o Grande Imã da Mesquita Al-Azhar, em Abu Dhabi, o “Documento sobre a Fraternidade Humana”. Acusam-no concretamente por causa desta afirmação: “A liberdade é um direito de cada pessoa: cada indivíduo goza da liberdade de crença, pensamento, expressão e acção. O pluralismo e a diversidade de religiões, cor, sexo, raça e língua são queridos por Deus na sua Sabedoria.”
O que é que os autores da Carta querem? Que não haja liberdade religiosa? Querem o uniformismo? Não será a unidade na variedade a riqueza da vida, também no domínio religioso? Estou convicto de que Deus se revelou de modo definitivo e inultrapassável em Jesus. No entanto, o Jesus que disse: “Eu e o Pai somos um” também disse: “O Pai é maior do que eu.” O que é que isto quer dizer? Evidentemente, as religiões não são todas iguais, mas elas todas, na medida em que não sejam contra o Humanum, pelo contrário, o promovam, são caminhos para Deus, que está para lá de todas elas. Não se pode esquecer que as religiões não existem para elas mesmas, pois estão ao serviço de Deus e da Humanidade. E o Papa esforça-se no combate a favor da paz, concretamente com o islão moderado, a favor do diálogo inter-religioso. Sem afastar nem postergar a identidade cristã, evidentemente.
3.6. Quanto aos abusos sexuais, os críticos deviam ter vergonha. Houve porventura alguém que tenha feito mais do que o Papa Francisco para que se ponha termo a esse escândalo execrável na Igreja? Acaba, aliás, de publicar o Motu Proprio (Decreto papal) “Vos estis lux mundi” (Vós sois a luz do mundo) que, na sequência da Cimeira de Fevereiro passado em Roma sobre a pedofilia na Igreja, ratifica com normas concretas para a Igreja universal a luta contra os abusos de menores e os seus encobridores. Será o tema da minha próxima crónica aqui.
3.7. Criticam o Papa também por causa do que disse o cardeal Maradiaga: que, na realidade, é melhor falar de comunidade e ministérios na Igreja do que de clero e laicado. Os críticos ainda não viram que enquanto baptizados, na Igreja, há uma real igualdade na dignidade, pois o padre, o bispo e o próprio Papa não são mais do que o leigo, todos são igualmente cristãos, embora com ministérios, serviços diferentes. Não há diferença essencial, ontológica, entre eles.
Julgo, sinceramente, que tudo se joga essencialmente logo no endereço da Carta, dirigida aos bispos nestes termos: Your Eminence, Your Beatitude, Your Excelence, ignorando que Jesus não se fez tratar por Sua Eminência Reverendíssima, Sua Excelência Reverendíssima... Jesus disse: “Eu não vim para ser servido, mas para servir” e: “Sois todos irmãos”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado o no DN | 12 MAI 2019
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO CÉLEBRE ABADE DE PRISCOS 14 de maio de 2019
Há dias, passei por Priscos, no município de Braga, e pensei com os meus botões que partilharia com os meus leitores algumas notas curiosas, sobre uma localidade, sobretudo conhecida por um magnífico pudim… Falo-vos assim hoje de Manuel Joaquim Machado Rebelo, o célebre Abade de Priscos, nascido a 29 de março de 1834, em Turiz no concelho de Vila Verde e falecido a 24 de setembro de 1930 em Vila Verde, com fama já alcançada. O clérigo Machado Rebelo foi abade e gastrónomo, destacando-se pelas suas receitas de culinária, especialmente a do Pudim celebrizado com a designação inconfundível de Abade de Priscos. Foi pároco da freguesia de Priscos em Braga, que eu bem conheço, e que é um lugar muito aprazível, cheio de tradições e boa qualidade de vida. Exerceu funções durante 47 anos, e foi lá que desenvolveu a sua inclinação culinária. Sendo amador na arte de bem cozinhar foi, segundo quantos o conheceram, "um homem de grande paladar". Além desse bom gosto, tinha também um excelente sentido de humor, que não deixarei de recordar aqui. Foi amigo do Arcebispo de Braga D. Manuel Baptista da Costa. Ora, tendo este conhecimento das suas capacidades culinárias, sempre que alguém de relevo visitasse a cidade convidava o Abade para orientar a cozinha e o menu. Foi tal facto que lhe deu grande fama nacional, vindo, por isso, a coordenar banquetes para a família real, ministros, bispos, aristocratas e gente abonada. Uma marca do seu carácter estava em fazer-se acompanhar por uma misteriosa maleta repleta de iguarias e temperos desconhecidos, cujos mistérios não partilhava com ninguém…. Segundo relatos de quem com ele conviveu, não havia um livro de receitas, mas algumas folhas esparsas, que ninguém mais encontrou depois da morte do Abade. Ele, aliás, dizia duas coisas aos curiosos, uma é que era a sua cabeça que tudo armazenava e outra que tinha uma pequena colher de pau que atuava nos momentos mais dramáticos, sempre com sucesso. Também esse utensílio nunca foi encontrado.
Conta-se que no dia 3 de outubro de 1887, o Rei D. Luís, de visita ao norte do País com a Família Real, foi à Póvoa de Varzim. As autoridades locais esmeraram-se e convidaram o Abade de Priscos para dirigir a cozinha e preparar o régio banquete. Desempenhou-se o Abade da tarefa de tal modo bem que o Rei mandou chamá-lo, para o conhecer pessoalmente. É preciso dizer que D. Luís era tido como um excelente prático de cozinha. Assim, quis saber qual era a composição de certo prato servido no banquete e de sabor delicioso.
O Abade sorridente, respondeu: – Trata-se de palha, com licença de Vossa Majestade!
– Palha!? – disse o monarca espantado . – Então o Senhor Abade dá palha ao Rei de Portugal?
O Abade baixou a cabeça, a fingir-se de envergonhado e, com sorriso manhoso, esclareceu: – Real Senhor! Todos comem palha, a questão é saber servi-la… ".
Numa outra ocasião, sendo o banquete oferecido pelo Arcebispo de Braga ao Prelado de uma diocese vizinha, aconteceu um embaraçoso incidente. A sopa esteve tempo de mais ao lume e ficou levemente queimada. Vieram os cozinheiros em prantos até ao Abade, que reagiu com surpreendente calma, dizendo: - De facto, não serviremos ao Bispo uma sopa com bispo.
Retirou da célebre maleta um misterioso ingrediente, juntou-lhe água, deitou-o na panela, mexeu com a sua colher de confiança – e dizem os que testemunharam o acontecido que o bispo da sopa desapareceu e que o Bispo convidado muito gabou a iguaria…
Mas não nos vamos sem coisas, aqui vos revelo a receita do célebre pudim, uma das poucas que chegou até nós e que os cozinheiros de Braga e de Vila Verde continuam a seguir…
O pudim ficou conhecido quando o Professor Pereira Júnior, diretor da Escola do Magistério Primário de Braga, do antigo Convento dos Congregados, pediu ao Abade de Priscos a receita para a ensinar aos seus alunos e alunas. E eis o segredo:
O pudim é confecionado num tacho de latão ou cobre onde é colocado meio litro de água. Quando esta estiver a ferver, coloca-se meio quilo de açúcar, uma casca de limão, um pau de canela e cinquenta gramas de toucinho (gordo e de preferência de Chaves ou de Melgaço). Deixa-se ferver até atingir ponto espadana. Batem-se delicadamente quinze gemas até ficar a mistura homogénea e mistura-se-lhes um cálice de vinho do Porto velho até ficar em meio ponto, depois de bater novamente. A calda de açúcar é, então, vazada através de um coador fino para uma tigela onde estão as gemas, mexendo-se tudo. Barra-se uma forma com açúcar em caramelo e deita-se aí o preparado que é posto a cozer durante 30 minutos em banho maria. O pudim é desenformado quando estiver quase frio. E está pronto a servir e a deleitar os mais resistentes…
E aproveito a ocasião para recordar um célebre poema de João de Deus escrito a pensar nestes mesmo Rei D. Luís…
Há entre el-rei e o povo Por certo um acordo eterno: Forma el-rei governo novo, Logo o povo é do governo Por aquele acordo eterno Que há entre el-rei e o povo.
Graças a esta harmonia, Que é realmente um mistério, Havendo tantas fações, O governo, o ministério Ganha sempre as eleições Por enorme maioria! Havendo tantas fações, É realmente um mistério!
Realiza-se nos próximos dias 16 e 17 de maio na Fundação Calouste Gulbenkian o II Congresso Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen.
UM EXEMPLO DE CIDADANIA O centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen é especial, muito para além de mera comemoração. O exemplo de cidadania, de talento, de ligação natural entre a ética e estética é fundamental. De facto, estamos perante uma personalidade extraordinária que é lembrada como referência única, como um exemplo que fica, que persiste. Era a “pura liberdade” que lhe importava – e, por isso, temos de lembrar o “espaço de liberdade” que animou com Francisco de Sousa Tavares e foi lugar de debate e de acolhimento de jovens intelectuais e artistas, que tomaram como referência a sua presença, a sua palavra e o seu gesto. “No Centro Nacional de Cultura (CNC) fiz de tudo” – dizia Sophia de Mello Breyner… E nesse tudo, estiveram os cargos estatutários, mas sobretudo tudo o que decorria de uma solidariedade saudável e comprometida. “Discuti, li versos, fiz limpezas quando faltava a mulher-a-dias, organizei festas de Carnaval com rissóis e bebidas, mascarei-me, dancei e – coisa que mais do que detesto – fiz conferências. Não havia dinheiro para nada e era tudo improvisado e cada um fazia o que podia, o que sabia ou o que era preciso. Era um tempo de fervor e de dedicação gratuita. A amizade era concreta. E acima de tudo discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era”… Pode dizer-se que Sophia e Francisco foram, num tempo decisivo, almas de um clube de ideias que soube persistir e fazer da liberdade a sua marca indelével, perante todas as dificuldades. E quando vemos as imagens a preto e branco da saída dos presos políticos de Caxias, pouco depois da revolução, é com muita emoção que presenciamos o entusiasmo e a alegria de Sophia, o zelo profissional e cívico de Francisco, acompanhados de seu filho Miguel, ao lado de Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Teles, Francisco Salgado Zenha ou João Bénard da Costa… E Nuno Teotónio Pereira com tantos outros a sair da prisão e a manifestar uma enorme esperança no novo tempo que se iniciava. Ele que animara no CNC tantas reuniões clandestinas que pugnavam pela liberdade, pelo direito à informação e pela autodeterminação dos povos. Naquele momento em que os portões se abriram estava viva a imagem do encontro entre os que tinham lutado pela liberdade, não apenas com palavras vagas, mas com gestos concretos de coragem e determinação. Os que saíam e os que os acolhiam tinham uma causa comum – a liberdade, a democracia e os direitos humanos. Para quem conhece a história do CNC sabe que aqueles abraços, aquela genuína manifestação de solidariedade correspondiam a um trabalho generoso e persistente, conseguido através de um percurso longo e difícil, que Sophia lembrava: “Às vezes a Pide aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico. Em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido; ‘poker faced’”.
RESISTÊNCIA COMO MODO DE AÇÃO Não por acaso, contamos com muitos dos seus escritos e poemas como referências essenciais da resistência: levantou a sua voz em defesa do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes; mas também contra a injustiça da desclassificação do monumento para Sagres “Mar Novo”, de João Andresen, Barata Feyo e Júlio Resende, que assinalaria a memória das Navegações portuguesas: na vigília do Dia Mundial da Paz de 1969 na igreja de S. Domingos disse com firmeza: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” – e com que genuína emoção: ouvimos o poema, dedicado a Francisco: “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude / Para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não”. Cada palavra desse poema é uma marca firme contra a indiferença e a pusilanimidade, é uma lição cívica e ética. E daí a autoridade plena com que Sophia pôde dizer em Abril: “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. E quando ouvimos as suas palavras na Constituinte sobre a liberdade da cultura, vemos que se mantêm sem ruga nem mácula.
UMA INICIATIVA ABERTA Deste modo, o CNC correspondeu ao apelo de Maria Andresen (do mesmo modo que acolheu o espólio, hoje na Biblioteca Nacional de Portugal) para apoiar a afirmação do legado cultural que Sophia deixou. Não poderia ser de outro modo. Muito mais do que um momento, do que se trata é de dizer que Sophia deve ser lembrada nas diversas facetas em que se singularizou – tendo a sua obra de ser considerada na globalidade, não esquecendo quantos inspirou. Assim, as iniciativas a realizar ou realizadas são múltiplas. E há uma preocupação da apoiar a liberdade e a criatividade. A consulta do sítio centenáriodesophia.com permite compreender a diversidade de temas e de participações, devendo perceber-se que não é exaustivo, já que não pode esquecer-se a multiplicidade de outras iniciativas, que correspondem à adesão espontânea de muitos admiradores da autora de Livro Sexto. Os colóquios de Lisboa na Gulbenkian, do Porto, de Lagos, de Roma, do Rio de Janeiro (sobre Sena e Sophia), de Macau, da Casa Pessoa e da Fundação de Mateus correspondem à reflexão multifacetada sobre a apaixonante obra da autora. O Conto Musical “A Menina do Mar”, do LU.CA Teatro Luís de Camões, com direção musical de Martim Sousa Tavares, traz-nos o famoso conto de Sophia transformado em voz e música e feito espetáculo sobre a amizade entre as coisas da terra e as coisas do mar. O livro Almadilha – Ensaios sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, de Frederico Bertolazzi; a mostra “Olhares Mútuos: Maria Helena Vieira da Silva e Sophia” na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva; o espetáculo “Na Substância do Tempo” – eco da poesia de Sophia no mundo visível da dança de Vasco Wellenkamp e da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo; a Exposição Itinerante “Lugares de Sophia” com fotografias de António Jorge Silva, Duarte Belo e Pedro Tropa; ou o Concerto de 6 de novembro, no Teatro Nacional de S. Carlos com o “Orfeu e Eurídice” de Cristoph W. Gluck são exemplos de um ano pleno de iniciativas, em que há sobretudo uma preocupação de homenagear com a maior dignidade e diversidade alguém a que a cultura portuguesa tanto deve. Afinal, nunca esquecerei o dia em que na atribuição do seu nome à Escola Básica Sophia de Mello Breyner, de Carnaxide, pediu expressamente que os alunos representassem de cor “A Menina do Mar” e, numa tarde fantástica, com centenas de pessoas a aclamá-la, emocionou-se ao ver aqueles meninos e meninas das mais diversas origens geográficas, cumprirem à letra o seu pedido e serem extraordinários atores, sem falhas nem hesitações… E todos entendemos o que significa dizer: “a minha terra é o mar”, como definição da nossa cultura.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Porém se eu ousasse e as minhas palavras tivessem muitas cãs, elas abririam este coração onde jazem algumas coisas que sente, e a tenra idade não quer que diga... Este misterioso passo da Crónica do Imperador Clarimundo de João de Barros, o autor das Décadas da Índia, surge-me do século XVI e faz-me pensarsentir em dantes e muito para além do episódio daquele romance de cavalaria, em que o imaginário imperador da Hungria e raiz da linhagem dos reis de Portugal, recebe um escudo pintado, como assim resume Eduardo Lourenço no seu Clarimundo: simbologia imperial e saudade (em Portugal como Destino, seguido de Mitologia da Saudade (Gradiva, 1999): Fanimor enviara a Clarimundo um escudo pintado, tendo no centro uma ilha escondida por nuvens, alegoria do império do mar, ainda por vir. Agora, na última parte fá-lo passar pelos Açores e aí lhe anuncia que um dia estas ilhas pertencerão a um senhor do seu sangue. É nesta ocasião que Barros se refere com insistência à figura mais misteriosa da sua narrativa, àquele que ele chama «o filho do bravo leão e da mansa cordeira», que, em princípio, só pode ser o infante Dom Henrique. Como sabes, e sobre tal já te escrevi, não sou um adepto da tecelagem de considerações sobre qualquer identidade nacional entendida como fruto da ou a própria constituição histórica duma personalidade a que chamamos nação ou raça. Daí que possa subscrever sem hesitação o seguinte trecho de Eduardo Lourenço:
É tentador assimilar o destino de um povo ao do indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O tempo do indivíduo, a leitura que ele faz do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo de surgimento, afirmação e desaparição. Um povo tem igualmente uma história e, por comodidade hermenêutica, pode ser tentado a ler o seu percurso em termos subjetivos de afirmação de si, de presença mais ou menos forte entre os outros ou de existência precária ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas o tempo dessa história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como finito e irreversível. O tempo de um povo é trans-histórico na própria medida em que é «historicidade», jogo imprevisível com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente, e que o futuro reorganizará de maneira misteriosa.
Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino.
Creio ser importante repetirmo-nos, nos dias hodiernos, esta frase, como motor e meta de meditação. Por duas razões fundamentais: antes do mais, porque a nossa identidade comunitária, enquanto povo e nação, deverá, necessariamente, orientar-se e definir-se em função de um projeto de vida e justiça comum; depois, porque a própria legitimidade da nossa existência política (como estado-nação organizado) já não é atributo nem consequência de linhagem, mas justifica-se pela vontade democrática de construção da casa comum. Hoje, nenhum português pretenderá radicar a linhagem nacional num qualquer Borgonha filho do imperador Clarimundo e de sua mulher Clarinda, por via da qual ele será feito imperador de Bizâncio, sucedendo a seu sogro. Nem romano algum tratará mais do que como ficção literária ou artística a pretensa ascendência da genealogia lendária de Roma ao navegante Eneias. Não há passado verdadeiramente constitutivo da unidade política de um povo se não houver projeto de destino comum de e para quem vive hoje aqui. Pensossinto que uma nação tem necessariamente, como Janus, duas faces: uma vira-se para trás e olha o caminho percorrido; outra está voltada para a frente, perscruta o porvir, em busca da Cidade onde todos poderão conviver melhor e encontrar a felicidade possível.
Por isso também as propostas desses movimentos nacionalistas xenófobos que por aí vêm pululando me parecem, muitas vezes, não só injustas mas violadoras de princípios elementares da cultura de inspiração cristã que ainda nos anima. Além de que, ansiosos por acordarem fantasmas que depois possam espantar incarnados em pessoas, geram muita confusão e pouco tino. Na verdade, a «descristianização do ocidente» não é obra de imigrantes oriundos de outras culturas, senão desgaste nosso. A mutação das nossas paisagens demográficas tampouco se pode fundamentalmente atribuir à presença de outros entre nós, pois mais decorre da nossa baixa natalidade e envelhecimento das populações nativas. E se nos pensarmos dentro da humanidade como um todo, talvez sintamos mais gravosa e preocupante a submissão das nossas sociedades (até incluindo nestas os recém vindos) ao materialismo consumista reinante do que a oportunidade de trabalharmos em aculturações de valores humanos e tradições diferentes. Aliás, tal tarefa é hoje inevitável, dada a trama alastrante das redes de informação e comunicação, de contactos e trocas várias em todo o mundo. Não mais vivemos em período de descobrimentos e conquistas europeias pelo mundo fora, nem de proposição e imposição de valores religiosos, éticos ou culturais do "Ocidente", ou das suas instituições jurídicas e políticas, em todo os lados da terra. Mas se muito de tudo isso foi ficando por toda a parte, também por lá muito o "Ocidente" descobriu e adotou. Aos encantos orientais do nosso século XIX - fascínios do Egipto, da Mesopotâmia, Magrebe ou Palestina, bem como da Índia, da China e do Japão -, que entretiveram a curiosidade das nossas sociedades abastadas e diletantes, sucederam já as modas assimiladas do ioga, da filosofia e da gastronomia extremo orientais... Para não contarmos agora os astros chineses e japoneses da nossa música clássica (maestros, cantores, pianistas, violinos, etc.) E para não falarmos do êxito, nos nossos países, da música latino-americana ou, mais simples e genuinamente, africana. São hoje inúmeros os exemplos de inculturação, e ainda bem que assim é: aprendemos todos, uns com os outros. E há mais: a revista mensal Books, por exemplo, na sua edição deste mês de maio de 2019, faz uma resenha da versão francesa (L´Âge de la colère. Une histoire du présent) do último livro do ensaísta indiano Pankaj Mishra, e refere os elogios que o mesmo recebe do universitário paquistanês (repara, Princesa de mim, paquistanês e muçulmano) Ali Ahmed, no jornal diário Dawn:
«Tendo tido a vantagem de crescer num mundo (perpetuamente) em desenvolvimento, compreendo a modernidade, tal como Mishra, como podendo ser um projeto não viável se perseguir o interesse pessoal quebrando todos os laços de fraternidade».
E eu pergunto: não estaremos todos nós, afinal, a viver num mundo em vias de desenvolvimento? Já ninguém leva a sério as teorias do fim da História. Esta continua, num mundo composto de mudança, tomando sempre novas qualidades... Por vezes surpreendentes! As resistências ao surto e assimilação de uma nova cultura comum a todos - ou, se preferires, à inculturação de valores constituintes de uma ética de referência para o futuro - surge, por vezes, de onde menos se espera. O filósofo André Comte-Sponville assina, na revista Le Monde des Religions de maio-junho deste ano, um artigo intitulado Dieu est Femme, donde te traduzo alguns trechos: Cada um de nós sabe bem que não é suposto Deus ter um corpo e, portanto, um sexo. Mas todos falamos dele no masculino, e a língua, como sempre, estrutura o imaginário. As deusas, para nós, fazem parte da mitologia, isto é, do passado. Deus, do presente ou da eternidade. Eis um dos raros pontos em que o monoteísmo opera uma espécie de regressão, pela exclusão de qualquer divindade feminina. «Pai Nosso que estais no céu...» Nesse céu mais não vemos do que uma metáfora. Mas quanto à paternidade divina? Porque não «Mãe Nossa»? Tal seria perfeitamente concebível teologicamente. Na prática, todavia, não é nada assim. Cada uma das três «pessoas» da Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) se dizem também no masculino. Poderão objetar que a Virgem Santíssima... Mas eis que esta, precisamente, não é Deus: contenta-se com ser virgem e mãe, o que diz muito sobre o ideal feminino que a Igreja veicula... ...Entre os crentes, as mulheres são, pelo menos, tantas quanto os homens, e muitas vezes mais praticantes; mas quase sempre em situação de inferioridade ou de subordinação hierárquica no seio das instituições religiosas. Assim se fecha a ratoeira: numa sociedade patriarcal, atribui-se a Deus uma ilusória masculinidade; depois, faz-se da masculinidade, em matéria de culto, uma espécie de privilégio que reforça o patriarcado. «Senhor Padre» («Mon Père», em francês, ou «Meu Pai»), assim falamos ao padre católico, e também isso diz muito, tal como a tola recusa, tantas vezes reiterada, de ordenar mulheres... ... «A mulher é o futuro do homem», dizia Aragon. E, por aí também, o futuro das religiões. Tanto pior para aquelas que não o quiserem compreender, ou o compreenderão tarde demais.
Virginie Larousse, chefe da redação da mesma revista, escreve em editorial da edição citada: «Há grandeza em ser-se apóstolo. Eles eram eminentes por causa das suas obras, por causa do seu êxito. Glória a eles! Quão grande deve ter sido a sageza desta mulher, para ser considerada digna do título de apóstolo.» Não, não estamos a sonhar: trata-se mesmo de uma mulher apóstolo, de acordo com as próprias palavras de S. João Crisóstomo (344-407), arcebispo de Constantinopla e doutor da Igreja. A mulher a que se refere é citada por Paulo na sua Epístola aos Romanos. No final dessa carta, o apóstolo saúda muitas pessoas que deram uma boa mão à Igreja nascente. «Saudai Andrónico e Júnia, meus parentes e companheiros de cativeiro: são apóstolos marcantes que me precederam em Cristo» (Rom.16, 7).
Nunca ouviram falar desta mulher? Era de esperar, porque a tradição foi progressivamente fazendo dela um homem... Todavia, durante séculos se soube que Júnia era mulher - como assim o provam as palavras de João Crisóstomo. Até que, no século XIX, sábios entendessem ser impossível considerar «apóstolo» uma pessoa do sexo fraco. E começa-se a transformar o nome próprio dela em «Junias», patronímico masculino, e até a propor-se uma nova tradução -incorreta gramaticalmente - daquele passo da Epístola (cf. o estudo de Eldon Jay Epp, professor na Divinity School da Universidade de Harvard, Junia, uma mulher apóstolo ressuscitada pela exegese, em Labor et Fides, 2014).
Os tempos e modos hodiernos, contudo, não parecem muito entusiastas na defesa do patriarcado, eufemismo significando superioridade masculina, mesmo no seio do Vaticano: veja-se, por exemplo, a demissão, por iniciativa própria, da equipa de redatoras do suplemento feminino do Osservatore Romano, Donne Chiesa Mondo. Tal como, curiosamente, nos devemos recordar de que, apesar de todos os preconceitos respeitantes à condição feminina ainda ativos no mundo islâmico, muito, ali também, vai mudando. Designadamente nas comunidades residentes em democracias plurais, que procuram identificar-se nessas circunstâncias. Apesar de, já há 1400 anos, o Islão autorizar mulheres imãs, isto é, presidentes e condutoras de assembleias de orantes, só muito recentemente se tem assistido ao revigorar dessa prática, designadamente pela fundação de mesquitas com espaços de oração comuns a ambos os sexos, cuidando embora da disposição dos participantes, já que o exercício físico das preces muçulmanas a tal precaução aconselhará... Os respetivos imãs (chamemos-lhes "párocos") tanto podem ser homens como mulheres que se revezam, como só homens ou só mulheres. Seja como for, esta prática, não só abre às mulheres uma participação mais ativa e igualitária na vida religiosa comunitária, como, finalmente, lhe reconhece um estatuto social que poderá repercutir-se na sua vida empresarial e política.
Confesso que me é difícil entender como é que a Igreja Católica, maioritária em sociedades onde tantas mulheres exercem já funções dirigentes, na política, empresas, magistratura, forças armadas e tantas profissões, continua a vedar-lhes o acesso a funções pastorais...