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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A ESTÉTICA DO EFÉMERO - IV

 

   O instante que nos surpreende pela beleza ou irradiação da efemeridade que revela é, assim, simultaneamente, um sacramento do inefável que não alcançamos, do invisível que ainda não sabemos ver, da palavra que, pronunciada, cria. Mas outrossim podemos imaginar ou inventar um instante, criando então um instantâneo artificial, seja visão infernal de terror, seja aparição abençoada e benfazeja... Tal artifício também poderá servir para exprimir desejo nosso, ou aspiração, ou, mais devotamente, uma prece. Assim, dizemos, se formulam votos. Assim também poderá uma ilusão consolar-nos de uma perda, do desaparecimento de alguém ou, em jeito mais chão, do nosso desespero de reencontro com um amor avistado, fugido e já perdido.

 

   De Sir Thomas Wyatt, diplomata e homem da corte de Henrique VIII, disse C. S. Lewis que esteve sempre enamorado de mulheres de quem não gostava. Talvez assim fosse para com Ana Bolena, dama da rainha Catarina de Aragão, mais tarde, ela também, mulher do rei e mãe da futura rainha Isabel I. Dum caso amoroso mal esclarecido, entre tantos devaneios e namoros corteses e cortesãos, ficou-nos, entre outros documentos, um soneto de Wyatt, que transcrevo e traduzo:

           

Whoso list to hunt, I know where is an hint
But as for me, alas, I may no more.       
The vain travail hath wearied me so sore           
I am of them that fartes cometh behind.
Yet may I, by no means, my wearied mind         
Draw from the deer, but as she fleeth afore,  
Fainting I follow. I leave off therefore,      
Since in a net I seek to hold the wind.                                       
Who list her hunt, I put him out of doubt,   
As well as I, may spend his time in vain.         
And grave with diamonds in letters plain
There is written, her fair neck round about,  
"Noli me tangere, for Ceasar´s I am,             
And wild for to hold, though I seem tame."                
         

Para quem queira caçar, eu sei onde a cerva está
Mas quanto a mim, pobrezinho, mais não posso.
Pois que empresa tão vã me gastou e amargou
E de mim fez o derradeiro de todos os que a seguem.    
E todavia não posso minha alma cansada desligar
Daquela cerva e, enquanto ela à minha frente foge,
Desfalecendo a sigo e logo desisto e abandono,
Pois que numa rede quis prender o vento.
E a quem a quiser caçar eu posso assegurar
Que tal como eu em vão irá desperdiçar o tempo.
Eis com diamantes escrito em letra cheia,
Na coleira à volta do seu pescoço esbelto,
"Noli me tangere, pois pertenço a César,
E, parecendo mansa, brava demais  para segurar."

 

 

   Cerva  - cervo (veado) no masculino  -  diz-se, em inglês, deer, palavra homófona de dear (caro, querido) prestando-se assim a metáforas bastante usadas na literatura inglesa da Renascença. Neste soneto, inspirado em Petrarca, como aliás muitas outras composições do poeta e diplomata inglês (chegou a ser embaixador junto da corte de Carlos V), interessa-me aqui  mais do que o caso dos amores com Ana Bolena (incluindo o anúncio da próxima posse dela pelo rei  -  for Ceasar´s I am), a metáfora da caça como perseguição amorosa e, sobretudo, o recurso à efeméride da aparição da cerva como imagem de amor bruxo e breve. Em Petrarca, no soneto que a seguir transcrevo e traduzo, tal aparição corresponde à evanescência de Laura, sua tão amada, sobre quem Deus tinha poder absoluto:

 

Una candida cerva sopra l´erba   
verde m´apparve con duo corne d´oro,  
fra due riviere, all´ombra d´un alloro,             
levando ´l sole, a la stagione acerba.  
                          
Era sua vista sí dolce superba,    
ch´i´ laciai per seguirla ogni lavoro;                                
come l´avaro, che´n cercar tesoro,  
com diletto l´affanno disacerba,

«
Nessun mi tocchi  -  al bel collo d´intorno  
scrito avea di diamante e di topazi  -           
libera farmi al mio Cesare parve».      
                         

Et era ´l sol già volto al mezzo giorno;                            
gli occhi miei stanchi di mirar non sazi,
quando´io caddi ne l´acqua, et ella sparve.                

Cândida cerva sobre a erva verde 
com dois cornos de ouro me aparece,
entre dois ribeiros à sombra dum loureiro,
quando se erguia o sol na primavera.

 

Tão doce e soberba era tal visão;   
que para segui-la deixei qualquer labor
como o avaro que para buscar tesouro
com deleite abandona outros afãs.

 

«Ninguém me toque  -  à volta do pescoço belo     
com diamante e topázio estava escrito  - 
ao meu César pôr-me livre aprouve.»

 

E já chegava o sol ao meio dia;
com os olhos meus cansados de mirar
caio à água e ela desvanece.

 

     

A lenda da cerva de César é antiga, começou a circular talvez trezentos anos depois da morte do augusto romano. Como metáfora é plurivalente, ambígua até, como, aliás, se vê pelas duas versões acima retidas, a de Wyatt e a de Petrarca. Para a primeira, a cerva é intocável porque pertence, é presa de César. Para a segunda, ela é livre, pois que livre a fez um poder mais alto. Num texto ou carta que há anos atrás escrevi, falava de uma ilustração japonesa do Conto do Genji, em que uma menina segura em suas mãos um pássaro que, afinal, não consegue prender: símbolo do amor, simultaneamente como liberdade e prisão necessária. Não há volta a dar-lhe: as almas e as vidas humanas são tecidas pelo engenho e as tensões - dos nossos paradoxos e contradições. Construímo-nos de efemeridades a que pretendemos encontrar ou dar sentido. 

 

   Pela sua recitação - ou aparente repetição - a fugaz aparição perdura. E é essa sua própria, essencial, fugacidade que torna o efémero sacramento do permanente. Assim intuímos como o sentido da nossa vida é a graça da incessante procura da visão.

  

Camilo Martins de Oliveira

O TEATRO CARLOS MANUEL DE SINTRA

 

Há anos, já aqui fiz referência ao conjunto de projetos de Norte Júnior, ligados a espetáculos: designadamente o edifício da Voz do Operário, o Cinema Max, o Cinema Royal ou a Sociedade Amor da Pária.  

 

Acresce agora que recebi convite do Presidente da Câmara Municipal de Sintra, Basílio Horta, para participar como orador na conferência intitulada “Teatro em Sintra – O Estado da Arte”, iniciativa da Câmara, que teve lugar na sala Vergílio Ferreira da Biblioteca Municipal.

 

E não resisto a evocar a única peça conhecida de Vergílio Ferreira, de seu nome “Redenção”, conflito existencial de um poeta que se isola da sociedade e que morre no terror desse isolamento. 

 

Mas voltando ao Teatro Carlos Manuel.

 

Tive o gosto de conhecer pessoalmente o arquiteto Norte Júnior, por ter passado numerosos verões no chamado Bairro das Flores em Sintra, na casa dos meus pais - próxima da sua e projeto dele próprio - e de ter assistido a numerosíssimos espetáculos de teatro, cinema e concertos no então denominado Cine-Teatro Carlos Manuel, também projeto de Norte Júnior, inaugurado em 1948.

 

Era na época o grande referencial de lazer e cultura de espetáculo – que não só de cinema, note-se, em Sintra. 

 

E é de referir que o Teatro Carlos Manuel hoje denominado Auditório Olga Cadaval, situa-se mesmo ao lado do antigo Casino de Sintra, novamente de Norte Júnior, este inaugurado em 1929, também com sala de espetáculos. E nela terá atuado por exemplo o grande cantor Tito Schipa, nada menos: nome então determinante na arte do canto, e ainda hoje na memória de historiadores das artes do espetáculo. Posteriormente foi lá instalada a Biblioteca Municipal.

 

Em 1985, um incêndio quase destruiu o Cine-Teatro Carlos Manuel. A Câmara adquire-o dois anos depois e procede ao restauro do edifício, como dissemos agora chamado Auditório Olga Cadaval.  Mas do antigo Carlos Manuel, pode recordar-se, como noutro lado escrevi, a modernidade da decoração em madeira e estuque, numa harmonia arquitetónica e decorativa com a fachada.

 

 E muito ao estilo da época, o chamado segundo balcão tinha acesso por uma porta, uma bilheteira e uma escadaria diferentes, “isolando” dessa forma os espetadores com bilhetes mais baratos!...

 

Tudo isso desapareceu. Mas foi construído no edifício um prolongamento que se intitulou Auditório Jorge Sampaio com cerca de 300 lugares.

 

E recordo ainda que em Sintra se estreou em 1959 um espetáculo a partir das peças de Eugene Ionesco “La Leçon” e “Les Chaises”, com encenação de Jacques Mauclair. Era o então chamado Festival de Sintra.

 

Ionesco foi convidado. E tive o gosto de acompanhar Ionesco e a mulher numa visita a Lisboa, juntamente com o meu irmão  Manuel Ivo Cruz! 

 

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XLIX - NÃO AO COMPLEXO DE INFERIORIDADE LINGUÍSTICO (II)

 

Há que impedir que um dos idiomas em maior expansão mundial seja menorizado ou secundarizado. 

 

Há exemplos, sendo fácil enumerá-los, tanto ao nível político, das elites, figuras públicas ou do cidadão comum em geral.   

 

Abundam situações caricatas e grosseiras, como a de um treinador espanhol (Camacho), de um conhecido clube português (Benfica), useiro e vezeiro no uso do castelhano no nosso país, apesar de residente em Portugal por razões profissionais, nunca se lhe tendo ouvido, via comunicação social, um bom dia, boa tarde, boa noite ou obrigado. O que era extensivo ao espanhol Quique Flores. A que se pode juntar um treinador holandês de um clube de futebol luso que se expressava em castelhano e omitia qualquer palavra em português. Sempre sem protesto, sem a mais pequena e visível reação, ou escândalo, pela nossa parte, por certo porque eles e nós achamos normal, o que não sucederia se algum de nós residisse e trabalhasse em Espanha, falando em português e ignorando o castelhano.   

 

O que é confirmado por confronto com um treinador português quando trabalhava e residia profissionalmente em Madrid, ao serviço do Real (Carlos Queirós), onde desde o primeiro dia se tentou exprimir em castelhano, sem se ter expressado, que saibamos, em português. O mesmo se diga de José Mourinho, de Cristiano Ronaldo, entre outros, falando publicamente, desde o início, o idioma do país vizinho, mesmo que pontualmente mais portunhol.

 

A velocíssima rapidez com que jogadores e técnicos portugueses se adaptam ou tentam adaptar a um bom uso da língua oficial de Espanha quando aí trabalham ou residem, é inversamente proporcional aos esforços que desportistas e técnicos espanhóis fazem para se adaptar a um bom domínio do português em terras lusas.

 

E que dizer de alguns profissionais da rádio e tv, que entrevistam alegremente em castelhano cidadãos desse idioma no nosso país, sem qualquer preocupação de tradução, o que é tido como normal, por certo, compreensível para os portugueses, apesar dos entrevistados serem hóspedes em nossa casa, uma vez que não compreendem, nem assim se esforçam por compreender, é claro, a nossa língua!?..

 

É usual ver falantes de castelhano residentes entre nós falando-o e escrevendo-o com naturalidade, com pouca ou nenhuma concessão a expressões portuguesas, sendo mais fácil ver portugueses a falar ou simular falar castelhano em Portugal, inclusive quando abordados por turistas espanhóis, com a agravante de que ao querermos facilitar, agravamos um complexo de inferioridade que não beneficia de reciprocidade, chegando a ser ridículo dificultar ou impedir que espanhóis que queiram valorizar o nosso idioma, fiquem frustrados ao não conseguirem aprendê-lo ou consolidá-lo, atento o seu desincentivo, quando entre nós. 

 

Também é muito mais comum as nossas elites, políticas ou outras, falarem ou tentarem falar em castelhano (portunhol), em países de língua castelhana (quando não mesmo em Portugal), não sendo o inverso recíproco.   

 

Dão-se muitas justificações, desde a nossa maior adaptabilidade, o ser mais penoso para um espanhol entender ou falar português, serem maus em línguas, até à ausência de qualquer esforço nesse sentido, porque meramente presumem que não vale a pena, não só pela compreensão recíproca de ambos os idiomas, mas também por terem o português como uma língua menor, serem em maior número ou tentarem ser entendidos pelos portugueses, mesmo quando de passagem ou de visita por Portugal. Direi, por experiência pessoal, que tanto em Portugal como em Espanha, sempre usei e me fiz entender no meu idioma, sem pressas e pausadamente, repetindo as palavras, se necessário. Recorrendo ao inglês, em caso de conflito. 

 

Não faz sentido que sendo dois idiomas distintos e de compreensão mútua, essa desproporcionalidade só funcione, normalmente, para um dos lados (muito por responsabilidade nossa), nem me parece ser essa a melhor maneira de divulgar e preservar a nossa língua.

 

Refira-se que a ser verdade de que quem fala português tem mais facilidade de falar (e compreender) castelhano, seria de prever, por tal vantagem, que houvesse proporcionalmente mais espanhóis a interessar-se pelo nosso idioma.

 

O que manifestamente não sucede, ao que também não será alheia a tradicional mentalidade imperial castelhana e a sua força centrípeta, corroborada por uma certa altivez ou orgulho ostensivo, mesmo havendo mais falantes de castelhano que de português.

 

25.06.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício
 

CRÓNICA DA CULTURA

Aquela casa de artigos de bebé e de crianças até aos 10 anos tinha uma montra que nos fazia sempre parar para ver como o mundo podia ser cor-de-rosa ou azul ou branco da cor do vestido de noiva que projetava a esperança de crianças envoltas em nuvens colhidas na felicidade eterna dos casais do sim.

 

Os manequins que imitavam os bebés sentados em cadeirinhas de madeira trabalhada irradiavam o direito de sujarem os mais escrupulosos bordados dos seus babetes, e os berços de palha forrados a múltiplos folhos, divinamente engomados, nem pareciam berços de gritos lá dentro.

 

Aquela montra era uma espécie de tule debruçado sobre a felicidade do vinde e crescei que a dor de barriga é assim mesmo desprezada na fralda que a criada lavará.

 

Esta casa também fazia vestidos de noiva e o respetivo enxoval com as ditas rendas de Veneza como nunca sonhara uma cidade condenada poder produzir e, depois de tudo devidamente confecionado a cores de romantismo, era a hora da noiva e sua mãe e avó mostrarem à mãe do noivo o presente de casamento da avó da noiva, ou seja o enxoval e os brincos de diamante em flor de laranjeira, tradição da família quando se noivasse até ao casamento.

 

Depois, escadaria acima, enquanto os sinos tocavam e o padre se aperaltava em rigor, o canto nupcial fazia-se ouvir e entrava a noiva, de braço com o pai, solenemente encoberta pelo véu e ainda assim ouvia o cochichar relativo ao tamanho do seu pequeno ventre pois que de quatro meses ninguém lhe tirava o aguardar da criança. E, o poder da montra não se quedava: nada tinha mal, tudo se podia não ver ou ver através do tule; tudo emplumado e os meninos de calções de veludo e sobretudos impecáveis tal como o cabelo de risco ao lado com um tantito de brilhantina se fazia notar. As alianças chegavam pelas mãos das virgens dos cabelos enrolados em flores que seguravam a taça de prata envolta em laço onde duas alianças aguardavam destino.

 

E do bouquet ao parto tudo afinal posava na montra. Eis o seu poder de resumo.

 

Olhávamos de novo e lá estava o bolo de noiva, agora um tanto encostado aos saleiros: não, a faca e o garfo de prata reluziam junto dele. Assim é que era, e não fosse eu uma mulher que ali tinha vontade de chorar, o mesmo é dizer que chegara a hora de continuar a andar e deixar que a montra, ó graças a Deus já me esquecera dela até à próxima. Ou verdade, verdadinha, perguntava-me se um dia estaria ali um micro-ondas embrulhado em ponto de cruz com o ar sério de quem resolve problemas para que os dias felizes sejam menos brutos, sendo que o próprio é de bruteza natural. Ah! E uma piscina em miniatura forrada a seda azul que revelasse as potencialidades de ser inserida em quinta familiar que desconhecesse a importância de uma carta do Congresso de Viena na qual se mencionasse a Legião Estrangeira.

 

E

 

que eu sinta sempre ao lado da força do amor que nada me pode acontecer porque o meu tio-avô e a minha bisavó não haveriam de deixar. E que possa eu fazer o que ainda não comecei.

 

 

Teresa Bracinha Vieira

Fevereiro 2019

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

‘Desert Moon’ de Lee Krasner.

 

Painting is not separated from life. It is one. It is like asking - do I want to live? My answer is yes - and so I paint.’, Lee Krasner

 

A pintura ‘Desert Moon’ (1955) de Lee Krasner (1908-1984) é pura vida.

 

‘I like a canvas to breathe and be alive. Be alive is the point. And, as the limitations are something called pigment and canvas, let’s see if I can do it.’, Lee Krasner

 

Krasner, ao pintar, tenta reunir todo o seu ser (corpo e espírito, consciente e inconsciente, interior e exterior), como que no processo descrito por Carl G. Jung de individuação - processo alquímico que procura a familiarização e o relacionamento com as partes de nós mesmos que se tornaram reprimidas, anestesiadas, separadas ou rejeitadas.

 

The body is merely the visibility of the soul, the psyche; and the soul is the psychological experience of the body’, C. G. Jung

 

Para Krasner, a pintura deve ser mais do que uma resposta, uma representação, uma transferência daquilo que está no mundo, daquilo que está fora de nós. Na história da arte, até então, a relação que se tinha com a natureza, com o mundo, com o corpo e com o espírito era de separação, era uma simples relação frontal. Krasner ao pintar deseja aproximar toda a esfera física, da esfera espiritual de modo, a serem transparentes uma à outra, de modo a que o domínio espiritual se torne acessível dentro e através do domínio físico.

 

‘I start with the blank, and there is nothing more horrifying than a blank canvas, because I don’t have a thought, an idea, or I’m going to do this or I’m going to do that. Then finally something stimulates you to move, it may be an obsession with a colour. (...) If I’m ready to work, or whatever there is that gets me into working, and I can’t define that, I have no idea what it might be, I will start and make some brushstrokes across the entire canvas and pretty soon some image will suggest itself to me (by image I don’t mean a naturalistic image, but some form) and start out from that and I keep moving with it.’, Lee Krasner, 1982

 

A sua pintura toma forma através do conhecimento apurado dos mais pequenos gestos, sempre em intensa relação com o corpo, com o espírito, com as coisas, com os outros, com as ideias e com a natureza. A sua pintura realiza um processo de integração - de modo a completar o incompleto, a unificar o fragmentado, a ordenar o que não se ordena, a compreender o incompreensível.

 

Para tentar lidar com a complexidade e com o imprevisibilidade (desenhos rasgados) do processo de pintar, Krasner recorre a uma série de ações e de reações em cadeia. Isto porque não se pode forçar a pintura a tomar uma determinada direção - a pintura é vida.

 

When you are painting, it’s a total statement of all of your interests, so to speak.’, Lee Krasner

 

Ao utilizar a colagem, em ‘Desert Moon’, Krasner experiencia um processo de renovação no seu trabalho. O uso de uma nova matéria traz uma nova liberdade, traz novas formas. E este renascer só se tornou possível através da ação de rasgar os desenhos a preto e branco que estavam pendurados nas paredes do seu atelier. Krasner ainda insiste em retirar inspiração no seu eu total e integrado (interior e exterior, gesto e pensamento), porque só assim existe verdadeira conversão, transformação, libertação e profundo entendimento. Se houver sempre a necessidade de impor um preestabelecido plano, o processo de pintar poderá tornar-se fragmentado, opressivo e sem vida. É a constante interrogação e inquietação que traz a descoberta e uma renovada compreensão.

 

‘I never violate an inner rhythm. I loathe to force anything. I do not force myself, ever... I have regard for the inner voice.’, Lee Krasner

 

Ana Ruepp

FIM DA LEI DO CELIBATO DOS PADRES?

 

1. A Igreja hierárquica, que viveu obcecada com o primado da moral sexual, é cada vez mais confrontada com os escândalos sexuais no seu próprio seio. Primeiro, foi a hecatombe da pedofilia. Mais recentemente, são as “namoradas” de padres que vêm denunciar os abusos de que foram ou são vítimas.

 

O “Washington Post” acaba de investigar o drama das mulheres que, sem qualquer apoio, foram obrigadas a viver amores clandestinos e a esconder e a criar sozinhas filhos das suas relações com padres. A Igreja vê-se agora confrontada com esses dramas de mulheres que sofreram a violência sexual, emocional e espiritual do clero. Pam Bond, por exemplo, hoje com 63 anos, contou ao “Washington Post” que teve em 1986 um filho de um padre franciscano a quem tinha recorrido pedindo ajuda para o seu casamento. “Assumo a responsabilidade pelos meus próprios erros, deveria ter sido suficientemente forte para me não colocar naquela situação”, reconhece, mas também afirma que aquela relação não era plenamente consensual, pois havia uma diferença de poder entre o padre e ela.

 

Embora seja difícil estabelecer o número de casos no mundo, pensa-se que haverá milhares de mulheres nesta situação, vivendo uma relação sexual abusiva e com filhos mantidos em segredo. Há estudos que concluem que apenas 40% do clero pratica o celibato. Como já aqui dei conta, o sociólogo Javier Elzo, da Universidade jesuíta de Deusto, escreveu que 80%, se não mais, do clero africano, padres e bispos, têm uma vida sexual igual à dos outros africanos.

 

Evidentemente, toda esta situação exige reflexão profunda, incluindo o problema das comunidades cristãs que têm direito à celebração da Eucaristia e não o vêem satisfeito por causa da falta de clero.

 

2. Hoje, os historiadores sérios não têm dúvidas de que Jesus foi celibatário. É pura “lenda de romance” pretender que Jesus foi casado com Maria Madalena, esclarecia ainda recentemente um dos maiores especialistas em cristianismo primitivo, Antonio Piñero, que não é crente, mas agnóstico. Mas Jesus não impôs a lei do celibato a ninguém. Mais: teve discípulos, como São Pedro, que eram casados. São Paulo foi igualmente celibatário, mas também não invocou essa lei; pelo contrário, pergunta na Primeira Carta aos Coríntios, 9, 5: “Não temos o direito de levar connosco, nas viagens, uma mulher cristã, como os restantes Apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas?”. Na Primeira Carta a Timóteo, lê-se: “É necessário que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, ponderado, de bons costumes, hospitaleiro, capaz de ensinar, que não seja dado ao vinho, nem violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado, que governe bem a própria casa, mantendo os filhos submissos, com toda a dignidade. Pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará ele da Igreja de Deus?”. E a recomendação é repetida na Carta a Tito, 5-6: “Deixei-te em Creta, para acabares de organizar o que ainda falta e para colocares presbíteros (padres) em cada cidade, de acordo com as minhas instruções. Cada um deles deve ser irrepreensível, marido de uma só mulher, com filhos crentes, e não acusados de vida leviana ou de insubordinação.”

 

Foi muito tarde que o celibato se foi impondo como lei: no século XI, com o Papa Gregório VII; no século XII, nos Concílios I e II de Latrão, em 1123 e 1139, respectivamente; mas só com o Concílio de Trento, no século XVI, se impôs a toda a Igreja do Ocidente, pois nas Igrejas católicas do Oriente é diferente.

 

3. Assim, vê-se claramente que o celibato enquanto lei não é um dogma. O próprio Papa Francisco já o reconheceu.

 

Pessoalmente, estou convicto de que será já no Sínodo sobre a Amazónia, a realizar em Roma em Outubro próximo, que assistiremos, com a ordenação de homens casados, ao fim da lei do celibato obrigatório para os padres.

 

Não sou o único com essa convicção. Há bispos alemães que alimentam a esperança de que neste Sínodo se operará uma “ruptura” e que, depois dele, “nada ficará como antes”.  Quem o diz é o bispo de Essen, Franz-Josef Overbeck. Também o vice-presidente da Conferência Episcopal Alemã, Franz-Josef Bode, manifestou a convicção de que o Sínodo trará grandes mudanças para a Igreja universal, esperando que o celibato para os padres seja “enriquecido com outras formas sacerdotais de vida”, esclarecendo: “Eu poderia imaginar padres com famílias e trabalhos civis, como os actuais diáconos permanentes, alguns dos quais são casados e trabalham”. “Devemos reconsiderar a conexão entre o celibato e o sacerdócio”, advogando também o diaconado feminino “como sinal de reconhecimento, apreço e mudança de estatuto das mulheres na Igreja”. Estes “padres com vocação civil” poderiam “celebrar a Eucaristia e realizar o correspondente ministério sacerdotal”. O bispo Overbeck explicitou o seu pensamento, declarando que no Sínodo para a Amazónia serão debatidas muitas questões, como a moral sexual, o celibato obrigatório, o papel das mulheres na Igreja, a estrutura hierárquica da Igreja com o clericalismo, cada vez mais criticado como factor determinante na crise dos abusos de menores, sem esquecer outros temas igualmente fundamentais, como a “imensa exploração” do meio ambiente, as violações dos direitos humanos dos indígenas, o “eurocentrismo” da Igreja. Por causa da falta de clero, lembrou que muitas  Igrejas locais na região começam a ser geridas por religiosas e observou: “O rosto da Igreja local é feminino”.

 

No katholisch.de, reproduzindo o jornal Frankfurter Rundschau, podem ler-se as seguintes declarações do cardeal Walter Kasper, Presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e um dos teólogos que o Papa Francisco ouve com mais atenção, produzidas recentemente: Se precisamente no próximo Sínodo sobre a Amazónia, “os bispos concordassem em ordenar homens casados, o Papa, na minha opinião, aceitaria essa posição. O celibato não é um dogma, não é uma prática inalterável.”

 

Isso não seria nada de extraordinário. De facto, no catolicismo de rito oriental, continua a ordenação de casados e os padres anglicanos casados que se convertem são aceites na Igreja católica na condição de casados. Mais importante: a lei do celibato, como ficou dito, não é um dogma de fé, mas uma medida disciplinar. O que é essencial é que as comunidades cristãs possam celebrar a Eucaristia, o que nem sempre acontece, e uma das causas é a exigência, que não provém do Evangelho, do celibato.

 

Confirmando o que aí fica, acaba de ser publicado o “Instrumentum Laboris” (intrumento de trabalho), que servirá de base aos debates durante o Sínodo para a Amazónia, que terá lugar no Vaticano, de 6 a 27 de Outubro próximo, onde se lê: estude-se a possibilidade da ordenação sacerdotal dos chamados “viri probati”, isto é, homens de virtude comprovada, com maturidade humana e cristã, respeitados e aceites pela sua comunidade, “mesmo que já tenham uma família constituída e estável.” Quanto às mulheres: “identifique-se o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher, tendo em conta o papel central que hoje desempenham na Igreja amazónica.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 23 JUN 2019

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

FOLHEANDO REVISTAS ANTIGAS DE QUADRADINHOS…
25 de junho de 2019

 

Dei-me numa tarde destas, em que o Verão foi fazendo caretas, a folhear revistas antigas da minha coleção do jornal “Tintin” belga. Para os mais novos, recordo que a minha geração do “Cavaleiro Andante” (que já não apanhou diretamente o “Tintin” português de Dinis Machado e Vasco Granja, e que tomou contacto como Corto Maltese já numa adolescência avançada) teve uma especial ligação ao “Tintin” belga e à Escola de Bruxelas. Lembro, por isso, longos debates no Pedro Nunes sobre o que líamos e sobre quais os nossos autores preferidos. Na idade em que estávamos havia dúvidas – se é verdade que Hergé era indiscutível, o certo é que a sua riquíssima equipa dava-nos pano para mangas para dizermos de nossa justiça sobre aquilo que mais ou menos nos enchia as medidas. Nestas incursões de agora comecei por voltar a admirar os impecáveis desenhos das indumentárias militares, dos estandartes e das histórias seiscentistas de Liliane (1927-2015) e Fred Funcken (1921-2013). Comecei por aí e deleitei-me. Voltei a ler tudo… Os dois colaboraram no “Spirou” e no “Tintin” e deram vida ao Capitan de Castaignac (a partir de 1963), um gascão tornado agente secreto ao serviço do Cardeal Richelieu (e nós gostávamos de 1640 e do Cardeal pouco amado por Dumas). E também é deles Doc Silver (1967) um médico americano de óculos com aros redondos num “western” deveras atípico, com argumento de Yves Duval (1934-2009). E se falo de Duval, devo lembrar os muitos argumentos que escreveu, além de alguns do Capitan, sobretudo os Franval com desenhos de Edouard Aidans (1930-2018) – destacando-se a célebre aventura “Destination Desertas”, passada nos Açores. Duval fez também os argumentos de Howard Flynn (1964), o jovem oficial da marinha real britânica, com desenho de William Vance (1935-2018). E sem perder o fio desta notabilíssima meada, Vance foi dos mais fecundos autores da nossa predileção – dele são Ringo, a continuação de Bob Morane (depois de Gérald Morton o ter deixado), o importante Bruno Brazil (com argumento de Greg, sob o pseudónimo de Louis-Albert), e o famosíssimo “XIII”, com argumento de Jean Van Hamme (1939) – chegado aos nossos dias. Ainda no elenco do casal Funken não posso esquecer “Le Chevalier Blanc” (“Sans Peur et Sans Reproche”, 1954) e “Les Belles Histoires de l’Oncle Paul” (1951). As histórias verdadeiras tinham uma predileção especial – e assim vencemos os nossos professores renitentes. Se repararmos bem nesta lista encontrámos uma boa parte da equipa que Hergé constituiu graças ao investimento e à coragem inovadora de Raymond Leblanc (1915-2008), editor de “Tintin” a partir de 1946 e responsável pelo desenvolvimento da “linha clara”. E se falei de Greg (1931-1999), Michel Louis Albert Regnier, devo dizer que ele foi um dos mais prolíficos e influentes criadores das escolas belgas. É impressionante a lista das suas personagens – que se devem antes de tudo à influência, cumplicidade e amizade de André Franquin (1924-1997). Franquin é um nome grande ligado a Spirou, Fantasio e Marsupilami, a Gaston Lagaffe ou a Modeste et Pompon (os nossos Lolocas e Pompom)… Greg colaborou em centenas de pranchas, designadamente de Modeste e de Spirou. Com Lolocas Greg foi assim uma presença muito antiga do “Cavaleiro Andante”. De 1958 ao início dos anos oitenta, Greg foi argumentista com os principais desenhadores da linha clara: Tibet (1931-2010), Maréchal (1922-2008), Mittéï (1932-2001), Paul Cuvelier (1923-1978), Hermann (1938), Eddy Paape (1920-2012), Dany (1943), Jo-El Azara (1937), Turk (1947), Bob de Groot (1941), Claude Auclair (1943-1990), Aidans, Derib (1944), Fahrer (1939)  ou Dupa (1945-2000). Está aqui a fina-flor! Jo-El Azara é o criador do impagável Taka Takata e fez renascer o Coronel Clifton, e quanto a Dupa, temos o extraordinário Cubitus, o cão felpudo que se tornou um ícone. Greg foi autor de mais de 250 álbuns: a lista é impressionante e fala por si. Zig, Puce e Alfredo criados em 1925 por Alain Saint-Ogan renasceram com Greg, mas o caso de Achille Talon merece nota especial. Este apareceu em 1963 no jornal “Pilote” e René Goscinny (o inventor de Astérix, de Iznogoud e do Petit Nicolas, e argumentista de Lucky Luke com Morris – 1923-2001) saudou assim a aparição da nova personagem: “Achille Talon n’en a cure; sûr de lui, il n’hésite jamais à se jeter à corps perdu dans les situations les plus difficiles, avec une remarquable inefficacité”. Que melhor definição poderia ser feita de um herói dos quadradinhos? Misto de realidade e de sonho, motivo de reflexão e de riso, motivo para não nos levarmos demasiado a sério… Não vou esgotar hoje este meu folhear de páginas antigas. Já está tudo espalhado no chão. Que fantástico mar de desenho e de tinta… A maior parte dos autores referidos já não está entre nós, mas a sua memória está bem viva. E se pertenço ao clan “Tintin” não esqueço (porque líamos tudo) as influências do jornal “Spirou” (1938) e da célebre Escola de Marcinelle, com Rob-Vel (1909-1991) e Jijé (1914-1980), além de Franquin… Aí encontramos Peyo (1928-1992) criador dos Estrumpfes (Smurfs) e Johan e Pirlouit; Roger Leloup (1933); Roba (1930-2006) autor de Boule et Bill… Lembre-se que Jijé foi o artífice de Blondin et Cirage, Jean Valhardi e Jerry Spring. Também “Pilote” (1958) não nos passou despercebido, com René Goscinny (1926-1977) e Uderzo (1927) e a genial aparição de Astérix – que conhecemos através do efémero “Foguetão” de Adolfo Simões Müller… Com “Pilote” encontrámos ainda Barbe-Rouge de Jean-Michel Charlier (1924-1989) e Victor Hubinon (1924-1979), Blueberry criado também por Jean-Michel Charlier com Jean Giraud “Moebius” (1938-2012), Valérian e Laureline de Pierre Christin (1938) e Jean-Claude Mezières (1938) e Tanguy e Laverdure de Charlier e Uderzo. Os nomes e o traço são inconfundíveis… Sopravam novos ventos e novos temas, designadamente a ficção científica. Aí pudemos começar a encontrar Corto Maltese de Hugo Pratt (1927-1995) que estava na transição temática entre a adolescência e a idade adulta, mas também Enki Bilal (1945) que conheceu Goscinny aos 14 anos e publica a primeira história, “Le Bol Maudit”, em 1972, passando depois a colaborar com Pierre Christin… As escolas belgas levavam-nos aos italianos – como tínhamos vindo das bandas norte-americanas ou dos “Sobrinhos do Capitão”… Por hoje, fico-me por aqui até à próxima crónica, onde falarei de Blake e Mortimer e de Edgar P. Jacobs (1904-1987), a propósito na nova e surpreendente criação de Schuiten, Van Dormael, Gunzig e Durieux, “Le Dernier Pharaon”. Mas não esquecerei Jacques Martin (1921-2010), que durante quase vinte anos acompanhou a feitura dos álbuns de Tintin, ao lado de Hergé, célebre pela criação de Alix (1948) e Lefranc (1952), nem  A.P. Duchateau  (1925), romancista policial, argumentista de Ric Hochet com desenho de Tibet, nem  Jean Graton (1923), exímio desenhador e argumentista do automobilismo e desportos motorizados, criador de Michel Vaillant… No caso de Graton três obras têm a ver connosco portugueses: “Rali em Portugal” (1971), “O Homem de Lisboa” (1984) e “Febre de Bercy” (1988) pela participação de Pedro Lamy. A título de curiosidade e a lembrar-me do Major Jaime Eduardo de Cook e Alvega (que num concurso de cultura geral alguém confundiu com um herói histórico), lembro que no tempo em que deveriam dar-se nomes portugueses aos heróis das HQ Ric Hochet era Mário João e Miguel Vaillant, Miguel Gusmão…  Conhecemos mil exemplos sempre caricatos…

 

E como escolho sempre um poema – hoje também não falta:

 

«Estudo para Banda Desenhada»
De António Barahona
“Em Banda desenhada, tão depressa
Treparam à colina onde corria
Um bando de crianças à gandaia
Em redor duma casa arruinada,
Tão depressa, em banda de surpresa,
Que ganharam tal medo na subida
Lentamente assombrados por medida
De Deus, que mede os sustos sem ter pressa.
Depressa mais depressa: segredava
A rapariga atlética ao poeta
no balão da legenda: as crianças
aos gritos, entretanto param a corrida:
emudecem ao ver o som e as danças
do casamento alquímico das sombras”
De “Raspar o fundo da Gaveta e Enfunar uma gávea (2011).

 

Agostinho de Morais

A VIDA DOS LIVROS

De 24 a 30 de junho de 2019

 

Agustina foi sempre uma pessoa surpreendente. O seu sentido de humor, mas sobretudo o seu sentido crítico, eram únicos. Por isso admirava a alegria de Camilo – “uma alegria profunda, rasgada, furibunda que as inteligências estreitas não entendem”. Ligava, assim, permanentemente o pícaro e o trágico da vida.

 

UMA PAIXÃO ESPECIAL
A permanente pesquisa sobre a humanidade encerra a procura da culpa e da sua razão de ser – como tantas vezes Agustina confessou. Tinha uma paixão especial por Dostoievski, não tanto para seguir os seus passos, mas por encontrar nele uma força original. Muitas vezes, fazia misturar a realidade com a ficção. Isso divertia-a intimamente. A vida, para si, era sonho e era drama. O célebre episódio do casamento com Alberto Luís, através de um anúncio de jornal, tem a ver com um cenário romanesco que quis inventar. E assim procurou forçar a realidade, como deus ex machina. Ao ouvi-la contar esse momento, como lhe ouvi várias vezes, ela ria-se intimamente ao lembrar o que o padre lhe disse a certa altura – “nem um táxi à porta da igreja…” – ou quando recordava um rato afoito a atravessar a Confeitaria do Bolhão, onde os noivos celebraram, com um chá, a singular boda… Quando conheci pessoalmente Agustina, quase tudo o que ouvira dizer sobre ela correspondeu à realidade, mas ao vivo era muito mais interessante e misteriosa do que todas as lendas que à sua volta se desenvolviam. Grandes amigos meus tinham uma paixão absoluta pela sua obra e pela sua força – e a verdade é que essa aura se revelava de forma fantástica na pessoa que encontrei e de quem tenho saudades. Os seus diálogos eram desarmantes. Nunca fazia o comentário que esperaríamos. Abria-nos sempre os olhos para o outro lado das coisas que nos passava despercebido. Estou a pensar na extraordinária admiração por Maria Agustina de Alberto Vaz da Silva e João Bénard da Costa. Contra ventos e marés, foram dos primeiros e chamar a atenção para a genialidade da escritora. E tão persistentes souberam ser que obrigaram tantos distraídos a ler com olhos de ver a sua escrita. Frederico Lourenço tem um belo ensaio onde descreve um curioso ciclo, iniciado pela extraordinária admiração da geração de seus pais pela escrita de Agustina, continuado no sentido crítico do jovem que desconfiava de tão radical admiração e terminado num verdadeiro reconhecimento da genialidade da escritora. António José Saraiva disse-o claramente: não tinha dúvidas sobre estarmos perante um nome máximo nas nossas letras de sempre – isto, com a autoridade especial de se tratar da apreciação de um dos nossos maiores mestres na história da literatura.

 

UMA FORÇA INESGOTÁVEL
A escrita de Agustina era torrencial e a sua letra (como insistiu Alberto Vaz da Silva) era reveladora de uma força inesgotável. Essa era a letra que Alberto Luís (que devo lembrá-lo com muita admiração) meticulosamente decifrava, revelando a prosa em todo o esplendor. Várias vezes Eduardo Lourenço me chamou a atenção para a grande energia contida no riso dela e para o seu caráter cortante. Era uma ironia que contagiava, sobretudo porque fazia questão de deixar claro que (pelo menos na aparência) não se levava demasiado a sério e que gostava verdadeiramente de ver o mundo às avessas, como se ela quisesse e pudesse mudar o curso da História. Gostava de cultivar episódios folhetinescos. Vi, um dia, o Alberto e o João Bénard a disputarem intensamente a propriedade de uma carta que, certamente por puro gozo, Agustina dirigiu ao João, apesar de ter endereçado o sobrescrito a Alberto. Nunca a situação se esclareceu. O mistério permaneceu – e o caso demonstra bem como a personalidade de Agustina gostava de alimentar universos romanescos. E se estes universos eram avidamente procurados pela escritora, também vinham ao seu encontro, como aconteceu com a carta de Teixeira de Pascoaes, descoberta depois do poeta ter morrido, no seu espólio, sobre a leitura atenta que fizera de Mundo Fechado. Dizia ele: «trata-se de uma escritora de raça, dotada de excecionais qualidades visionária e dotada de um raro instinto do real. Sem este instinto há só literatura e mais nada. Se os românticos excederam a realidade, caindo na falsidade, os chamados naturalistas cometeram o pecado contrário, e tornaram-se inferiores à natureza. A autora de Mundo Fechado não praticou esses erros. E, por isso, a felicito com o maior entusiasmo». O episódio vale por si e Pascoaes, que estava no fim da vida, e já não lia as obras que lhe mandavam, abriu uma exceção e revelou a fina qualidade crítica que possuía. Agustina usaria, aliás, esse acontecimento extraordinário em Os Quatro Rios, para descrever a angústia de um jovem perante o silêncio de um escritor consagrado a quem enviara uma obra na qual punha toda a esperança de se tornar conhecido. Aliás, falando de Pascoaes, não podemos esquecer outro romance, O Susto, em boa hora recentemente reeditado, com um magnífico prefácio de António Feijó, onde Agustina encena um encontro entre figuras que representam Pascoaes e Fernando Pessoa – salientando a sua superior admiração pelo autor de Maranus… No entanto, a família de Pascoaes não ficou agradada com o retrato imaginário dado no romance… Ossos do ofício…

 

O LADO ALEGRE DA VIDA
Um dia fui com Agustina até Amarante, em homenagem à sua Vila Meã. Era um sábado glorioso, com a temperatura tépida do fim da primavera. A natureza estava como Agustina gostava, ridente e viva. Depois de termos debatido os mistérios de A Sibila, numa iniciativa de escolas e professores, em torno de complexas relações do poder, subimos em excursão, lado a lado, até ao primeiro degrau do Marão e a romancista, olhando a paisagem que se estendia na frente do autocarro onde seguíamos, lembrou com júbilo as giestas batidas pelo vento e as aras de pedra onde o gado se abrigava – e veio à baila um livro de Pascoaes, Duplo Passeio, pelo humor que continha. “A arte de pedir, ó padre António Vieira, é a única arte nacional. Está para a Lusitânia como a escultura para a Grécia”. E Agustina ria, ao lembrar ainda, a frase do poeta: “quem pede é um ladrão amável, digno de toda a simpatia”. - «Já reparou, por certo (disse-me então), afinal somos um país pedinte… Veja bem que não tardará alguém aí…». “Pedir é uma realidade em que cabem todas as ilusões. É um dormir, deixando os dentes a fazer a sua função de morder, e as mãos a de voar come as borboletas”. Agustina “lia Pascoaes com uma devoção que só pertence à maturidade da criança que nunca se perde dentro de nós (…) Este Pascoaes é bem o meu padrinho nas Letras. Alegro-me disso…” (DN, 2.10.1993). E assim olhava a realidade que a cercava à procura do que a pudesse espantar e até divertir.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A ESTÉTICA DO EFÉMERO – III

   

Da apresentação de Debussy et le mystère de l´instant (PerrinParis, 1972), de Vladimir Yankélévitch, destaco (traduzo): Dois movimentos inversos parecem, em Debussy, percorrer o espaço musical: um é descida aos infernos da profundidade; o outro, regresso ao ar livre, ascensão aos grandes espaços de luz. Mas quando estudamos esses dois movimentos, depressa compreendemos que, para Debussy, nem um nem outro é essencial: o essencial é o instante impalpável, esse mesmo a que chamamos aparição em desaparecimento, surto em fundo de silêncio e de trevas; esse instante é o relâmpago, ou, inversamente (o que vai dar ao mesmo) a fagulha que a aparição é quando a surpreendemos a desaparecer: o Meio dia é, no mesmo instante, o zénite da luz e a luz surpreendida no primeiro instante do seu declínio.

 

   Debussy dá voz às coisas mais imponderáveis e mais precárias, às mais inconsistentes e às mais inexistentes da criação: um breve encontro e uma leve respiração, uma reminiscência fugitiva que, como estrela cadente, atravessa o espaço noturno da memória, um reflexo que estremece na água, um sopro de vento passando pelo ar da tardinha, uma nuvem no céu.

 

   Ocorreu-me este trecho, talvez, pela associação do seu último parágrafo à inspiração de haiku e de muita caligrafia e pintura japonesa. Por algo que é a surpresa do infinito intemporal - que, enquanto tal, só pode existir fora da criação inteligível - na fugacidade dum instante apenas desta vida.Tal privilégio é um dom, uma graça. Talvez pareça poder repetir-se, mas jamais se repete, como a história da nossa humanidade. Tal como Debussy não pôs em música a vespertina sesta de um fauno, mas sonhou o Prélude à l´après midi d´un faune. Prelúdio que acabo de escutar, com direção do seu maestro titular, D. E. Inghelbrecht, na interpretação do Orchestre National (orquestra, em francês, é substantivo masculino), em 1962. Inspirada num poema de Mallarmé, escrito em 1865, a obra orquestral tem, mais ou menos, trinta anos de atraso (1892-1894), mas, para o que aqui proponho, guarda esta atualidade, em palavras do próprio Debussy, numa carta a H. G. Villars, futuro marido de Colette: O Prélude à l´après-midi d´un faune talvez seja o resto de sonho que ficou no fundo da flauta do fauno? Mais precisamente, é a impressão geral do poema, pois, se o seguíssemos mais de perto, a música perderia o fôlego como cavalo de tiro que concorresse ao Grande Prémio contra um puro sangue. É também o desdém dessa "ciência de castores" que torna pesados os nossos briosos cérebros, e depois não tem respeito pelo tom! e tem um modo que procura conter todos os matizes, o que é muito logicamente demonstrável. Mas, ainda assim, segue o movimento ascendente do poema, e é esse cenário maravilhoso descrito no texto que, com mais humanidade talvez, nos trazem trinta e dois violinistas bem cedo levantados! O final é o último verso prolongado: Adeus casal, vou ver a sombra em que te tornas. Contudo, é sobre tal expectativa que se fecha esta obra musical, que se ficou pelo prelúdio só, sem os previstos interlúdios e uma paráfrase final. Apesar da novidade do estilo, foi muito aplaudida a sua primeira audição pública, em dezembro de 1894, na Société Nationale, em Paris, sob a direção do maestro suíço Gustave Doret. Só a partir de 1912, com o balé de Diaghilev, coreografia e interpretação de Nijinsky, vai a representação à cena, provocando uma onda de escândalos que tornaram famosa a composição musical de Debussy, mais ainda do que o poema lascivo de Mallarmé. Por mim, sempre gostei de sonambular ao som do Prélude à l´après-midi d´un faune, cujo erotismo se esvanece pelo suave embalar da melodia hipnótica, mergulhando-me num sossego tão esquecido de mim que talvez me fizesse lembrar aquele anúncio de que o sono é a antecâmara da morte. Nesta peça, afinal, Debussy traz-nos, em nove minutos, um instante revelador, e põe-nos dentro dele, como se aquela contemplação do efémero mais não fosse do que uma canção de embalar a morte no gosto da vida que a sustenta...

 

Camilo Martins de Oliveira

AGUSTINA, DIRETORA DO TEATRO D. MARIA II

 

No artigo anterior, evocou-se Agustina Bessa-Luís nas funções de diretora do Teatro Nacional de D. Maria II, muito marcante nas temporadas de 1991 a 1993.

 

É certo que, na época como de certo modo ainda hoje, as funções não se confundem necessariamente com a direção das temporadas e com os repertórios e elencos respetivos: mas também é certo que antes ou depois daquele período, o prestígio de Agustina necessariamente marcaria não só a direção institucional e administrativa  do Teatro em si, mas certamente também a atividade artística no que se refere à função cultural e operacional da empresa, a gestão administrativa do edifício como património do Estado e até, seja permitido dizê-lo, a tradição do prestigio cultural do Teatro Nacional de D. Maria II, designadamente quando dirigido por um escritor: tradição essa que vinha do tempo de Garrett...!  

 

O certo é que de 1991 a 1993, o Teatro de D. Maria II marcou o meio cultural português pela sua atividade direta de grande e tradicional sala de espetáculos, mas também, simultaneamente, pelo nível de qualidade do repertório e pela atividade complementar, aberta a ações de cultura que transcendem a produção dos espetáculos em si.

 

É obvio que um Teatro, sobretudo do Estado exige um repertório em si mesmo qualificado e com uma dimensão de cultura, sendo certo que isso não obsta evidentemente à variedade dos espetáculos e à recetividade do chamado grande publico. Não deve ser nesse aspeto uma sala elitista, digamos assim: mas terá de ser uma sala qualificada. Na gestão de Agustina, foi o que ocorreu.

 

E de tal forma que, nas temporadas de 91 a 93, encontramos numerosos eventos que, para alem dos espetáculos da Companhia do Teatro em si, abrangem iniciativas de interesse cultural de âmbito interno mas também internacional.

 

Lembramos a esse respeito, designadamente mas não só, a realização de programas, exposições e debates  integrados nos Festivais Internacionais de Teatro,  a cooperação com companhias vindas do exterior, algumas de grande prestígio, e também a escolha de um repertório que simultaneamente apresentava tanto peças e espetáculos nacionais como  estrangeiros: os já referidos Festivais Internacionais de Teatro,  com exposições, ciclos de conferências e ateliers de cultura teatral e musica sobretudo ligados  à função de cultura de um Teatro Nacional.

 

Recordamos então que foram numerosas as iniciativas determinantes da cooperação internacional do Teatro de D. Maria II durante a gestão de Agustina Bessa-Luís.

 

E nesse sentido, poderemos  voltar ao tema.

DUARTE IVO CRUZ

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