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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

De 10 a 16 de junho de 2019

 

 

A atribuição a José Mattoso do Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes constitui um justo reconhecimento de uma carreira exemplar de historiador, ensaísta, pedagogo e pensador a quem muito deve a cultura portuguesa.

 

 

IDENTIDADE NACIONAL
A propósito da identidade nacional, pode dizer-se que o contributo dado por José Mattoso corresponde à consideração da diferença como fator de distinção e de complementaridade – e não como elemento de autossuficiência ou de suposta superioridade. “A identidade nacional, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico que passou por diversas fases até atingir a expressão que hoje conhecemos”. Daí que as simplificações se revelem erróneas, sobretudo quando procuram ligar a identidade a elementos naturais, fazendo coincidir a nação com um modelo fechado ou completo de organização política e social. Se no caso português há especificidades, devem elas ser analisadas, em nome da complexidade e do conhecimento dos factos históricos. É verdade que, como muitos autores têm reconhecido, a coincidência entre Estado e Nação, como encontramos no caso português, exige a compreensão de que a encruzilhada de influências do “melting pot” demonstra a importância do intercâmbio de contributos, dados e recebidos, que permitem enriquecer a identidade como realidade aberta e dinâmica, como acontece com o património cultural, que não é uma reminiscência do passado, mas expressão da própria vida. As identidades são tanto mais ricas e fecundas quanto maior disponibilidade houver para a respetiva renovação e valorização. Os últimos anos, o fim do império, a perda das colónias, o retorno, a abertura democrática, a opção europeia permitiram compreender que “a História passou (…) a poder narrar um passado real, com ganhos e perdas, com avanços e recuos, fidelidades e traições, sucessos ou insucessos, unanimidades e contradições; e apesar de tudo como um passado constitutivo da coesão nacional, pelo simples facto de ser um passado comum e de resultar de uma experiência vivida em conjunto ou tornada memória coletiva” (A Identidade Nacional, Fundação Mário Soares – Gradiva, 1998, p. 104). Num tempo em que surgem nuvens negras no horizonte a propósito do fechamento das identidades, da emergência dos nacionalismos e de tentações absolutistas ou relativistas, a leitura da obra de um historiador como José Mattoso constitui motivo de tomada de consciência da responsabilidade cívica e da mediação das instituições como pedra de toque da democracia.

 

ENTRE O CONVENTO E A ACADEMIA
Nascido em 1933, José Mattoso dedicou a sua vida à docência universitária e ao estudo da história das ordens religiosas e das sociedades europeias dos séculos X a XIII. A Identificação de Um País (1985) é uma obra fundamental da historiografia do século XX, que deve ser colocada junto da melhor literatura moderna, desde Alexandre Herculano. A Nobreza Medieval Portuguesa (1982), O Reino dos Mortos na Idade Média (1996), Os Poderes Invisíveis (2001), ou D. Afonso Henriques (2006) constituem corolário lógico de uma investigação persistente, inteligente e rigorosa que nos permite compreender a uma nova luz as raízes da História portuguesa e da nossa cultura. De salientar ainda a direção de obras coletivas, como História de Portugal, Circulo de Leitores (1993-94), História da Vida Privada em Portugal (2010-11) e Património de Origem Portuguesa no Mundo, Fundação C. Gulbenkian (2010). Saliente-se que este último trabalho constitui base de uma plataforma dinâmica, em permanente atualização, que vive animada pelo espírito de abertura e de reconhecimento da importância de uma leitura dinâmica e crítica do Património Cultural, não como realidade do passado, mas como fator de enriquecimento mútuo e de criação de valor. Em 1987 recebeu o Prémio Pessoa e foi ainda diretor da Torre do Tombo (1996-98). Entre 2000 e 2005, colaborou na recuperação dos Arquivos de Timor-Leste, em colaboração com a Fundação Mário Soares. A sucinta referência destes elementos biobibliográficos tem de ser lida em ligação com a riquíssima reflexão espiritual e científica, que revela uma personalidade fascinante, sem cujo conhecimento não podemos compreender uma cultura viva, na qual encontramos a herança e a memória, bem como um entendimento do património cultural – material e imaterial, natural e paisagístico, técnico e digital, em articulação estreita com a contemporaneidade. É esta ligação entre património cultural e criação contemporânea, entre cultura e inovação que nos permite colocar o magistério de José Mattoso na linha da frente da mais rica reflexão da UNESCO e no Conselho da Europa.

 

LABIRINTOS DA SABEDORIA
Numa notável reunião de textos de 2012, Levantar o Céu – Os Labirintos da Sabedoria (Temas e Debates), lembrando a sua vida espiritual, José Mattoso reflete sobre Sabedoria e Razão e Sabedoria e Fé. A sabedoria obriga-nos a ir além das aparências e no entanto “parece-nos estar a caminho do abismo. O homem adquiriu meios técnicos de agir sobre a Natureza, mas não parece capaz de restaurar os equilíbrios que ela cria. São equilíbrios que condicionam a sobrevivência da Humanidade. O contraste entre o excesso de poder de uns poucos e o excesso de miséria da maioria é posto em evidência por todos os meios de comunicação. Estes informam-nos todos os dias e a toda a hora acerca do aquecimento global e dos seus efeitos sobre o mundo biológico, do aumento incontornável do lixo radioativo e dos materiais não recicláveis, da impossibilidade de verificar a nocividade das culturas transgénicas, da ocultação de produtos nocivos na industria alimentar e farmacêutica, da ausência de controlo da industria militar e da venda de armas, da escassez da água e da energia. Informam-nos, enfim, acerca de fragilidade do mundo em que vivemos (pp. 9-10). “Levantar o céu” é o nome que os mestres do chi kung (uma variante do tai chi) dão a um dos seus exercícios, que consiste em levantar os braços em arco com as palmas das mãos apontadas uma para a outra viradas para cima, isto é para o “Céu”. Yiang (céu) contrapõe-se a Yin (terra) na cultura chinesa. Trata-se, no fundo, de reconhecer a importância da componente espiritual da existência. Eduardo Lourenço refere a importância de tentar “desvendar ou antecipar o que nos espera, o nosso destino” – ou seja, “da consciência de que essas coisas em que se crê, em que mais do que se crê, se investe a totalidade da vida, constituem a substância das coisas esperadas…”. A crise financeira de 2008 correspondeu a uma crise de valores e obrigou a entender a esperança que brota da própria crise. “A pobreza, a redução de custos, a limitação do consumo, a contenção dos desperdícios, a aceitação da austeridade têm as suas vantagens. Tornam o homem menos dependente das instituições, da opinião pública, dos vendedores de ilusões” (p.36). Para José Mattoso “é bom acreditar que merece a pena ‘levantar o Céu’ e lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos. Felizmente há muitas mulheres e homens neste mundo a tentar unir esforços para manter o contacto entre o Céu e a Terra. É esse o caminho que a sabedoria ensina a percorrer para encontrar a saída do labirinto em que a vida nos coloca”…       

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença