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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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NA MINHA ALDEIA NINGUÉM MORRIA SOZINHO

 

Afirmava Eduardo Lourenço, e acrescento: talvez porque lá os unia o passado e o presente das sementes. Talvez porque lá era a casa das memórias universais, daquelas memórias que só os poetas conhecem: memórias com alma e com destino que se encontram sempre no seio da música que, sem nada dizer, tudo diz, nessa experiência religiosa e bastante só de a escutar. E sim, lá onde e aonde se não morre sozinho, é mundo sem mácula, é punhado de inocência, é enfim, vida com as coisas essenciais reconhecidas.

 

Quando penso que já não há escolha no entender do morrer e que só os outros dizem do nosso morrer, penso que nem metade do que eu penso, saberei pensar, já que a morte me acompanha e sou eu que lhe faço vista grossa.

 

Na aldeia que conheci em Vilarinho das Furnas também nunca se soube que alguém tivesse morrido sozinho. A comunidade era total. Até se sabia partilhar a Lua no seu primeiro quarto, bem como a mantilha de neblina que lhe flutuava à volta antes de descer à povoação e tranquilamente passar o corpo pela terra enquanto planava. Assim também se adocicava fosse o que fosse acontecer enquanto se aprendia a morrer sem angústia.

 

Conversei com muitas gentes de aldeias vizinhas de Vilarinho e registei que poucos se preocupavam numa análise de aprendizagem dos enredos da morte. Parecia que intuíam que o custo de a compreender era inferior ao benefício de acudir ao medo que ela poderia provocar se atentasse contra o poder da comunidade. E de facto, consultar a morte era criar demora nos bois à pastagem, o que era inadmissível: para a súbita aflição, a presença de padre ou de vizinho, bastava para que a facilidade da passagem chegasse pronta na ponta de um olhar ou dos dedos de uma mão. E esta realidade acontecia sempre. Naquela aldeia ninguém morria sozinho, o que tornava a vida de uma leveza única.

 

Um dia sentada junto à água da barragem que cobriu esta aldeia, fazia eu ricochetear pedrinhas que ressoavam antes do mergulho final, e eis que um professor de uma escola dali de perto se aproximou e me perguntou:

 

- Porque afogas as pedrinhas? Não lhes escutas o mugido da morte sem companhia? Fingem que não sabem que o saltitar as não livra dela, tão só porque a não entendem, mas o mugido está acima do que se entende.

 

- Não sei se compreendi o que me disse. Venho de um local onde o poeta Graça Moura escreveu:

 

Quando eu morrer (…) fica junto de mim (…) segura na minha mão, põe os olhos nos meus se puder ser (…) que ao deixar de bater-me o coração fique por nós o teu inda a bater,

quando eu morrer segura na minha mão.

 

Ou seja, neste local que bem conheço, a sociedade tem de apelar doridamente, e, melhor acredita no apelo, se ele for feito em nome do amor, para que o desaparecer da vida se faça na possibilidade de uma relação última e íntima com alguém.

 

O crucial nestes momentos, é a constatação do quanto, há muito, perdemos a simplicidade dos factos e dos processos que por tentativa e erro nos levariam à cor dos inícios dos entendimentos. Concede-se por mais não ser que ninguém leva consigo o pecúlio da vida, entre outras realidades, concede-se também que por excedentes ensimesmados, se morre só.

 

O mugido que menciona, não creio que se ouça, mas já ouvi falar dele e sei que existe e que de tão tremendo, enterraram-no debaixo das montanhas, lá longe, lá longe, lá muito longe.

 

Teresa Bracinha Vieira