A ESTÉTICA DO EFÉMERO - II
Do primeiro passo que démos para circunscrever um conceito possível de estética do efémero, no texto anterior, Yoko Orimo conclui : Com esta noção de impermanência, revestida da filigrana da sua dimensão permanente, de tudo se poderá libertar uma infinidade de matizes. Face aos acontecimentos dramáticos do mundo, às vicissitudes e ao mistério da vida humana, no nosso coração se misturam então a dor e a aceitação, a tristeza e a serenidade, o lamento do que desapareceu e a alegria da espera do que vai nascer. O budismo antigo, nascido na Índia, atingiu assim no Japão o cumprimento final da sua transformação ou alteração doutrinária. Assim se elaborou, sobretudo a partir da era Muromachi (1392-1573), o fruto de tal aculturação : a estética japonesa do efémero.
Será que a inspiração desta - tal como a teremos visto - pouco ou nada ou talvez muito tenha a ver com a dos actuais movimentos de arte efémera? O conceito hodierno de efemeridade parece ter mais a ver com o propósito de vanidade e lixo do que com a procura de permanência na natureza perecível. Seremos já vítimas do embaciamento de um olhar maravilhado para a beleza do universo, que afinal revela a perda do nosso olhar interior que nos vai incapacitando de ver o mundo pela transparência do espelho da nossa alma? O espelho onde nos vamos mirando tão somente nos devolve a imagem que de nós já temos, incapazes de amor e vistas para além das nossas limitações. Talvez por isso a nossa nova arte do efémero pareça sobretudo desespero e renúncia, e um doentio e profundo desprezo pela nossa incapacidade, não só de regenerar, mas de, sequer, imaginar restaurado. Mais propensos a lamentar o que se vai do que a alegrar-nos com a novidade que possa vir, podemos comprazer-nos na representação da decadência, da fragilidade, na desilusão de nós. Ou, mais radicalmente, em habitar o absurdo. Todavia - graças a Deus!, direi eu à moda antiga - também andam por aí muitos outros que - trânsfugas dessa obsessão narcísica com o irreparável - com arte vão revestindo ruínas ou, mais ainda, com arte vão erguendo obras de esperança feitas com material reciclado do lixo a que a propensão egoísta e destruidora do consumismo teria condenado. Em vez de olhar para o efémero como fatalidade, destino final de tudo, vêem-no como momento e promessa, como terminação anunciadora de novidade. Porque esta, com todo o seu potencial, já lá está, não para ser esquecida ou repudiada, mas para que, em qualquer forma, ressurja na sua permanência.
Assim, a estética do efémero é uma estética de contemplação ou, como escreve Yoko Orimo, uma estética que não se apoia na invenção nem na originalidade, mas na reflexão no sentido de reflexo. É como a luz do Japão, luz indirecta : uma meia-luz, tamisada por uma taxa sempre muito alta de humidade atmosférica. Ou então é como a luz da lua, luz que é um reflexo. Revestir-se do Despertar deve pois querer dizer reflectir o Despertar que escapa a qualquer tentativa de posse. Diz Mestre Dogen : «O ser humano chega ao despertar tal como a lua permanece no meio da água : a lua não se molha, a água não se quebra...» Apesar de indissociavelmente ligadas, nem a lua nem a água exercem qualquer poder, uma sobre a outra ; cada qual fica perfeitamente livre e autónoma. A lua que se reflecte no meio da água, esse reflexo do reflexo, não é, aliás, verdadeira nem falsa, como a parábola da luz, como a imagem acantonada num espelho.
Afinal, mesmo quando for ou nos parecer feia a nossa circunstância, teremos de aprender a abrir os olhos do coração. Porque será da bondade do olhar que tivermos sobre o mundo, natureza, pessoas e coisas, que crescerá a força do amor que contempla, redime, restaura e torna completa a nossa alegria. Assim aprendi também com S. João Evangelista. E tal me ocorre em tarde de Pentecostes, a festa da multidão dos dons, que sempre nos chama a recriar o Universo. Pois por nós o Espírito irá renovando, em feitos e promessas, no tempo escatológico, a face da terra.
Camilo Martins de Oliveira
Camilo Martins de Oliveira