LÍDIA JORGE: O LIVRO DAS TRÉGUAS, OU QUANDO A POESIA AGUARDA UM FILME DE SABERES, LUGARES E TEMPOS
Lá no apartamento em Jerusalém numa janela aberta para a rua os olhos do Poeta refletem a ambição de segurar nas mãos Nova Iorque ou Alexandria. Quase zangado, quase desesperado, quer dizer da saudade com as fotografias nas mãos, e nada o contenta das palavras que a definem. Afinal a saudade é um lugar de desejo, de perseguição, de punição e pede-se a Faulkner que feche a cortina ao de leve e que se deite o Poeta por entre os lençóis da cama que lhe fazem sentir um habitar Jerusalém, na cama da sua meretriz, ou Muro, que impele a sua partida dali. E fecha os olhos o Poeta, com as faces rosas de sangue que lhe recordam a cor das bochechas do filho, nascido livre, e agora outra noite, filha do livro-mãe, filha da conclusão e da pergunta com nome de destino, com nome de veleiro.
O filme começou assim, exprimindo um rosto com tudo o que deve exprimir antes que seja tarde, antes que os enigmas de cansem de ser perguntados e que o Poeta jure por Deus que não descodificou o perfume.
E o filme mostra o frasco de cristal ricamente trabalhado e de tampa de cortiça, pousado na mesinha de cabeceira: o Poeta adormece, um tanto, só um tanto, pois que as flores desbotadas que o frasco contém, embrulham o porvir, as proporções das novas estradas, placentas informatizadas que já tinham trocado o mundo do simulacro pelo Mundo da vida, e assim, mergulhadas no mar amniótico do frasco, a elas devia estar atento o Poeta.
No dia seguinte, o Poeta desce a encosta das videiras, acaricia os cachos de uvas, e súbito, pressente o perigo não cruxificado de poder partir apenas na altura que ele conhece não haver caminho, e pergunta:
- Qual a razão para que ninguém me diga de frente que só o perfil pode agir nas noticias do amor; naquelas que se aceitam em nós e nós por elas cheios de atualidade, a sabermos que podemos partir do Médio oriente seguros do que Arquimedes nos ensinou: falo da alavanca, esta que vos mostro na qualidade de vedor e que torço como se torcesse o umbigo do mundo.
O écran, surge agora com a cor e a forma de uma laranja, os gomos parecem-se a músculos iniciáticos que oferecem sumo a todos os que rodeiam o Poeta, e que ele domina afinal com o saber das coisas escondidas dando de beber e sorrindo, sereno.
E surge um forno, uma lareira, um lume que inunda os olhos de todos e que o Poeta explica tratar-se apenas de uma existência muito viva, e que antes do seu salto olímpico e mortal, arde para que todos conheçam o benefício da dúvida que as flores da música de Mozart sugerem. A casa de Mozart está toda pintada pela mão dos impressionistas. Todos, sejam quem sejam todos, pois que entrem neste noivado consumado e cuja chave é uma fábula. Uma fábula de poder. A fábula de poder dos Poetas. Sentam-se então todos numa montanha, na bainha de uma montanha, à procura de um outro início. A bainha parece igual à dos cortinados de Jerusalém. As linhas enroladas são similares a batalhas que o Poeta regista no seu caderno de apontamentos e recorda-se que isto é o significado de mesmíssimo. O essencial inalterado, afinal. O céu da tarde lança ao Poeta um cabo e ele desce por ele até fitar o que o perturba. O Poeta é sempre a conjunção do cerne dos elementos do mundo, e olhando as aguas empurra-as para o beijo, até que o lápis descreva de um outro modo a tez morena das mulheres com sarongs coloridos.
E surge a casa a tal iluminada pela candeia do Poeta: a tal do coração e da espada, do cavalo e do segredo de o montar, e lá longe de tão perto, a noção de que só do não conhecido é o futuro. Big-Bang ou a primeira batalha, a tal que não conhece a bandeira branca. O Poeta, ingénuo do poder, não julga. O Poeta continua a crer no ato limite que exponha a poesia, finalmente como solução, nem que seja por sinais de mímica, mas que a deixe a cobrir como uma pele, o mundo velho dos deuses e lhes diga que coragem é ir por onde perigoso é o norte.
Eis a Grécia!
O Poeta tem à cintura pássaros vivos e livres que assim desejam estar. É sua a vontade deste modo se acomodarem; esse o édito das suas manhãs. E o Poeta escreve que se não desliga dos incêndios das verdades, nem que lhe citem Roland Barthes. Se necessário arrendam-se as nuvens sem contrato e as suas águas transformam as florestas em verde para que todos as interpretem e ele, sozinho, arda nos factos irrelevantes que mataram os dias: nada de novo, afinal. De nada novo a não ser a estrela que se solta sem ser vista e lá do céu explica os factos todos.
Os dromedários transportavam gentes e sal pelo deserto. O tuaregue do filme «Um chá no deserto», voltou a adormecer nas dunas, olhando a mulher estranha às origens da sua cor. E sim, correu água sobre a areia no deserto durante três dias como diz o Poeta Lídia Jorge ou o amor nu, em cada canto não tivesse sido descoberto.
Em muitas circunstâncias e tempos se faz o caderno dos apontamentos do Poeta. Até o cocheiro atento ou não à maioridade da rapariga, aceitava o seu corpo doado e ainda não amado, ainda não noivado, ou, ainda era o Poeta demasiado jovem para entender aquele estado? Eu mãe-Poeta digo:
- Ó minha filha não fales alto, ninguém tem de saber que ainda estás no comboio dos nadas e que só depois da lucidez te repetirás e com ela entenderás os preceitos.
O comboio seguia junto ao mar porque ali o rio parecia o mar. O Poeta pela janela olhava o horizonte e aqui e ali presumia as cavernas nas rochas, aquelas que guardavam as sabedorias que não correspondiam à verdade. Enfim, era a viagem. Era a suspeita aqui e ali de que o livro procurado se faz ao Poeta ladrando como um cão que o arreda da esperança de entrar no carreiro da montanha. Esse carreiro, como nos mostra o filme, é um pedaço de terra que serpenteia até ao céu. E para quê? Para nos demonstrar que só estamos acompanhados de nós. Mas há futuro dizia Rui, o Belo.
Num vasto campo de milho, o Poeta utiliza a natureza por decifração e abre uma especial carola que guarda o correio que lhe é destinado. Depois de tantos anos chegar à primeira desilusão, é duro, e é duro, partir daí. O bosque que o Poeta já foi, ilumina-se só com uma arvore e lhe não basta: aquela. Parece-lhe ver uma terra de infâncias no meio daquele milho, no meio daquele acontecimento que se inicia também com pedras, pedras das montanhas, pedras com formato de condição humana, fosse o que viesse a ser essa condição em Jerusalém.
Assim, li este extraordinário livro de poesia de Lídia Jorge. Deste modo sugeri o filme: a flor de lymo que poderia dizer melhor do Poeta, quando do fim do périplo ao ponto inicial do pôr à prova, dali mesmo partiu ele, sorrindo, com o seu frasco de desbotadas flores na mão, e acredita-se que se fez de novo à expectativa.
Teresa Bracinha Vieira