Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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XLVIII - NÃO AO COMPLEXO DE INFERIORIDADE LINGUÍSTICO (I)
A língua portuguesa surge como um fator de coesão e identidade.
Como elemento constitutivo e parte integrante de nós.
Esta factualidade comunga de uma caraterística de permanência inerente aos povos e países que a têm como idioma comum.
Daqui decorre uma estratégia possível começando, em primeiro lugar e por maioria de razão, nos seus falantes nativos.
O que implica, desde logo, dizer não à glossofobia, endo-glossofobia e ao complexo de inferioridade linguístico.
Se o princípio da igualdade das línguas impulsiona, por um lado, um sentido crescente de respeito pela diversidade cultural e linguística, em contrapartida o desenvolvimento e a globalização resultante desse intercâmbio estimula o glosso-centralismo e uma uniformização cultural e linguística.
Se essa predisposição (ou paixão) desmedida para centralizar (ou uniformizar) deixa que a nossa língua seja preterida por uma estrangeira em termos de estatuto, praxe ou por inércia, é dizer sim à glossofobia.
E é dizer sim à endo-glossofobia quando os falantes da língua contribuem, de modo acrítico e gratuito, para a sua discriminação pela negativa.
O que propicia um complexo de inferioridade linguístico.
O que sucede com uma percentagem significativa de portugueses que, consciente ou inconscientemente, têm um complexo de inferioridade quanto à defesa e salvaguarda da língua portuguesa.
Língua transnacional, transcontinental, transoceânica, de comunicação global, em crescimento e de vanguarda, terceira de génese europeia universalmente mais falada, quinta ou sexta à escala mundial, a mais falada no hemisfério sul, não faz sentido que, no presente ou a prazo, de forma expressa ou tácita, por consentimento, decisão ou por omissão, pactue com a glossofobia ou logofobia implícita.
O que é mais grave quando os próprios falantes revelam pelo seu idioma baixa consideração, poluindo a própria água que bebem.
Lá no apartamento em Jerusalém numa janela aberta para a rua os olhos do Poeta refletem a ambição de segurar nas mãos Nova Iorque ou Alexandria. Quase zangado, quase desesperado, quer dizer da saudade com as fotografias nas mãos, e nada o contenta das palavras que a definem. Afinal a saudade é um lugar de desejo, de perseguição, de punição e pede-se a Faulkner que feche a cortina ao de leve e que se deite o Poeta por entre os lençóis da cama que lhe fazem sentir um habitar Jerusalém, na cama da sua meretriz, ou Muro, que impele a sua partida dali. E fecha os olhos o Poeta, com as faces rosas de sangue que lhe recordam a cor das bochechas do filho, nascido livre, e agora outra noite, filha do livro-mãe, filha da conclusão e da pergunta com nome de destino, com nome de veleiro.
O filme começou assim, exprimindo um rosto com tudo o que deve exprimir antes que seja tarde, antes que os enigmas de cansem de ser perguntados e que o Poeta jure por Deus que não descodificou o perfume.
E o filme mostra o frasco de cristal ricamente trabalhado e de tampa de cortiça, pousado na mesinha de cabeceira: o Poeta adormece, um tanto, só um tanto, pois que as flores desbotadas que o frasco contém, embrulham o porvir, as proporções das novas estradas, placentas informatizadas que já tinham trocado o mundo do simulacro pelo Mundo da vida, e assim, mergulhadas no mar amniótico do frasco, a elas devia estar atento o Poeta.
No dia seguinte, o Poeta desce a encosta das videiras, acaricia os cachos de uvas, e súbito, pressente o perigo não cruxificado de poder partir apenas na altura que ele conhece não haver caminho, e pergunta:
- Qual a razão para que ninguém me diga de frente que só o perfil pode agir nas noticias do amor; naquelas que se aceitam em nós e nós por elas cheios de atualidade, a sabermos que podemos partir do Médio oriente seguros do que Arquimedes nos ensinou: falo da alavanca, esta que vos mostro na qualidade de vedor e que torço como se torcesse o umbigo do mundo.
O écran, surge agora com a cor e a forma de uma laranja, os gomos parecem-se a músculos iniciáticos que oferecem sumo a todos os que rodeiam o Poeta, e que ele domina afinal com o saber das coisas escondidas dando de beber e sorrindo, sereno.
E surge um forno, uma lareira, um lume que inunda os olhos de todos e que o Poeta explica tratar-se apenas de uma existência muito viva, e que antes do seu salto olímpico e mortal, arde para que todos conheçam o benefício da dúvida que as flores da música de Mozart sugerem. A casa de Mozart está toda pintada pela mão dos impressionistas. Todos, sejam quem sejam todos, pois que entrem neste noivado consumado e cuja chave é uma fábula. Uma fábula de poder. A fábula de poder dos Poetas. Sentam-se então todos numa montanha, na bainha de uma montanha, à procura de um outro início. A bainha parece igual à dos cortinados de Jerusalém. As linhas enroladas são similares a batalhas que o Poeta regista no seu caderno de apontamentos e recorda-se que isto é o significado de mesmíssimo. O essencial inalterado, afinal. O céu da tarde lança ao Poeta um cabo e ele desce por ele até fitar o que o perturba. O Poeta é sempre a conjunção do cerne dos elementos do mundo, e olhando as aguas empurra-as para o beijo, até que o lápis descreva de um outro modo a tez morena das mulheres com sarongs coloridos.
E surge a casa a tal iluminada pela candeia do Poeta: a tal do coração e da espada, do cavalo e do segredo de o montar, e lá longe de tão perto, a noção de que só do não conhecido é o futuro. Big-Bang ou a primeira batalha, a tal que não conhece a bandeira branca. O Poeta, ingénuo do poder, não julga. O Poeta continua a crer no ato limite que exponha a poesia, finalmente como solução, nem que seja por sinais de mímica, mas que a deixe a cobrir como uma pele, o mundo velho dos deuses e lhes diga que coragem é ir por onde perigoso é o norte.
Eis a Grécia!
O Poeta tem à cintura pássaros vivos e livres que assim desejam estar. É sua a vontade deste modo se acomodarem; esse o édito das suas manhãs. E o Poeta escreve que se não desliga dos incêndios das verdades, nem que lhe citem Roland Barthes. Se necessário arrendam-se as nuvens sem contrato e as suas águas transformam as florestas em verde para que todos as interpretem e ele, sozinho, arda nos factos irrelevantes que mataram os dias: nada de novo, afinal. De nada novo a não ser a estrela que se solta sem ser vista e lá do céu explica os factos todos.
Os dromedários transportavam gentes e sal pelo deserto. O tuaregue do filme «Um chá no deserto», voltou a adormecer nas dunas, olhando a mulher estranha às origens da sua cor. E sim, correu água sobre a areia no deserto durante três dias como diz o Poeta Lídia Jorge ou o amor nu, em cada canto não tivesse sido descoberto.
Em muitas circunstâncias e tempos se faz o caderno dos apontamentos do Poeta. Até o cocheiro atento ou não à maioridade da rapariga, aceitava o seu corpo doado e ainda não amado, ainda não noivado, ou, ainda era o Poeta demasiado jovem para entender aquele estado? Eu mãe-Poeta digo:
- Ó minha filha não fales alto, ninguém tem de saber que ainda estás no comboio dos nadas e que só depois da lucidez te repetirás e com ela entenderás os preceitos.
O comboio seguia junto ao mar porque ali o rio parecia o mar. O Poeta pela janela olhava o horizonte e aqui e ali presumia as cavernas nas rochas, aquelas que guardavam as sabedorias que não correspondiam à verdade. Enfim, era a viagem. Era a suspeita aqui e ali de que o livro procurado se faz ao Poeta ladrando como um cão que o arreda da esperança de entrar no carreiro da montanha. Esse carreiro, como nos mostra o filme, é um pedaço de terra que serpenteia até ao céu. E para quê? Para nos demonstrar que só estamos acompanhados de nós. Mas há futuro dizia Rui, o Belo.
Num vasto campo de milho, o Poeta utiliza a natureza por decifração e abre uma especial carola que guarda o correio que lhe é destinado. Depois de tantos anos chegar à primeira desilusão, é duro, e é duro, partir daí. O bosque que o Poeta já foi, ilumina-se só com uma arvore e lhe não basta: aquela. Parece-lhe ver uma terra de infâncias no meio daquele milho, no meio daquele acontecimento que se inicia também com pedras, pedras das montanhas, pedras com formato de condição humana, fosse o que viesse a ser essa condição em Jerusalém.
Assim, li este extraordinário livro de poesia de Lídia Jorge. Deste modo sugeri o filme: a flor de lymo que poderia dizer melhor do Poeta, quando do fim do périplo ao ponto inicial do pôr à prova, dali mesmo partiu ele, sorrindo, com o seu frasco de desbotadas flores na mão, e acredita-se que se fez de novo à expectativa.
‘I don’t see why you shouldn’t be filling yourself up, making yourself happy. Enjoying yourself. Feasting on beauty. I want an art that’s going to make me feel heady, in a high-flown way. I love the idea. I’d use the word spiritual. I’m not frightened of all that.’ Gillian Ayres
As grandes telas pintadas por Gillian Ayres, na década de 1980, engolem-nos, rodeiam-nos, enchem-nos. A sua incontrolabilidade e a imprevisibilidade excede qualquer tentativa de explicação e de interpretação.
No percurso de Ayres, estas pinturas, como por exemplo ‘Æolus’ (1987), tornam-se muito intensas, com contornos mais definidos. Estão profundamente enraizadas na experiência do fazer, num preencher abundante e fluído. Revelam um caminho de descoberta, não são uma representação e não são só forma. Gillian Ayres entende a pintura como uma superfície ou plano, do tamanho da tela, que está em aberto. O espaço vazio e infinito da tela é lugar de ação, é lugar onde se dispõem e sobrepõem marcas de tinta e de cor. É uma celebração de vida.
‘You are doing area against area of color and it has to work. One hopes it touches the soul of somebody at the end of it.’, G. Ayres
Para Ayres, a abstração, no mundo das formas, é a revelação mais enérgica e reveladora do séc.XX - e todas as suas possibilidades estão ainda por explorar.
Sem recorrer ao pré-concebido, ao conceptualizado, ao racionalizado, ao repetitivo, Gillian Ayres, com ‘Æolus’, abre a possibilidade ao desconhecido, ao que está para lá do que se sabe, ao abismo.
‘I love obscurity in modern art. I don’t want a story. There are no rules about anything. I just go on doing what I do. I want to do nothing else.’, Gillian Ayres
No início, existe sempre a necessidade de uma procura. Uma procura que não acaba nunca e que já teve início em telas anteriores e cuja resposta é interminável.
Em ‘Æolus’, o ato de pintar é:
um ato de sinceridade - o resultado está ali, sem filtro e sem enganos. Aquele é o processo, aquele foi o caminho;
um ato de confiança - ao criar uma beleza completamente nova, que não se conhece, cheia e abundante;
uma experiência do seu tempo - que pertence a um momento específico;
uma experiência silenciosa - que se constrói num diálogo puro;
uma experiência singular - onde cada tela é única e contém uma determinada e irrepetível ordem;
uma experiência total - a pintura é resolvida de modo a que todas as partes façam parte de um todo;
uma experiência visual - o resultado não é verbal, não é literal, pois uma pintura é feita através de um conjunto de marcas que se vêem.
uma experiência material e tátil - a tinta é espessa e é colocada com as mãos;
uma experiência de cor - intensidade (e não tom) é o processo utilizado, e que ao relacionar e misturar cores complementares, permite uma elevação mais viva e forte da cor.
‘For some time we have gone through a period where people quite like non-beautiful things. I do like beauty, absolutely. Tintian, Rubens and Matisse all were in love with beauty. I like the idea that people can lose their feet looking at art - or even at nature. I love the idea that in our life we can be lifted by looking at art.’, Gillian Ayres
1. Segundo um estudo da Universidade de St. Mary de Londres (2014-2016), em 12 países europeus, a maioria dos jovens entre os 16 e os 29 anos admitem que não são crentes e que nunca ou quase nunca vão à igreja ou rezam. A República Checa é o país menos religioso da Europa: 91% dos jovens confessam não ter qualquer filiação religiosa. Seguem-se a Estónia, a Suécia, os Países Baixos, onde essa percentagem dos sem religião fica entre os 70% e os 80%. Também noutros países se nota a queda rápida da religião: na França, são 64% a admitir não serem crentes, na Espanha, 55% declaram que não confessam qualquer religião. Frente a estes dados, o responsável pelo estudo, Stephen Bullivant, afirmou que “a religião está moribunda” na Europa.
Na Alemanha e em Portugal, a percentagem de não crentes desce para 45% e 42%, respectivamente. Entre os países mais religiosos, estão a Polónia, onde só 17% se confessam não crentes, seguindo-se a Lituânia com 25%.
Também a prática religiosa está em crise. Só na Polónia, Portugal e Irlanda mais de 10% dos inquiridos admitiram que iam à Missa pelo menos uma vez por semana. Mas no Reino Unido, França, Bélgica e Espanha, entre 56% e 60% disseram que nunca iam à igreja e entre 63% e 66% que nunca rezam. Logicamente, na República Checa, 70% afirmam nunca ter ido a uma celebração religiosa e 80% nunca rezam.
2. Onde se encontram as razões para esta situação que caminha para uma Europa pós-cristã? As explicações são múltiplas. Mas chamo a atenção para a observação que o grande teólogo Yves Congar, primeiro condenado e, mais tarde, feito cardeal, teve já em 1935: “A uma religião sem mundo sucedeu um mundo sem religião.”
Outro grande teólogo, Philippe Roqueplo, demonstrou essa ausência do mundo na reflexão teológica e, consequentemente, na vivência da vida cristã. Fê-la no famoso e monumental Dictionnaire de Théologie Catholique, elaborado entre 1903 e 1950, em 22 volumes. Ele constatou que nesse Dicionário, que deveria abarcar “todas as questões que interessam ao teólogo”, havia ausências de temas fundamentais para a existência humana. Assim, quando se procura Amizade, o termo não consta; Arte: um longo artigo sobre a arte cristã; Beleza: nada; Ciência: um longo artigo sobre ciência sagrada, ciência de Deus, ciência dos anjos e das almas separadas, ciência de Cristo, mas sobre a ciência como a entendemos, nada; Economia: nada; Emprego: nada; Família: nada; História: nada; Leigo e laicado: nada; Mal: vinte colunas; Mulher: nada; Pessoa: remete para hipóstase; Poder: um artigo com cento e três colunas sobre o poder do Papa na ordem temporal; Política: nada; Profano: nada; Profissão: um artigo sobre profissão de fé; Técnica: nada; Trabalho: nada; Vida: um artigo sobre a vida eterna...
3. Não há dúvida: Deus tem a ver com o sentido último e a salvação. Como escreveu L. Wittgenstein, um dos maiores filósofos do século XX, “crer num Deus quer dizer compreender a questão do sentido da vida, ver que os factos do mundo não são, portanto, tudo. Crer em Deus quer dizer que a vida tem um sentido.” Foi neste contexto que Nietzsche, sete anos antes de enlouquecer, escreveu a Ida, a mulher do amigo F. Overbeck, pedindo-lhe que não abandonasse a ideia de Deus: “Eu abandonei-a, não posso nem quero voltar atrás, desmorono-me continuamente, mas isso não me importa.” Numa longa entrevista concedida ao jornal Le Monde, em 2017, Edgar Morin, constatando que a Humanidade se sente perdida, afirmou: “O mito da Europa é débil. O mito da globalização feliz está em zero. O mito da euforia do transhumanismo só está presente entre os tecnocratas. Encontramo-nos num vazio histórico cheio de incertezas e de angústias. Só um projecto de via salvífica poderia ressuscitar uma esperança que não seja ilusão.”
4. A pergunta é: onde e como encontrar essa via de salvação? Todos, incluindo a Igreja, e a Igreja de modo especial, são convocados para encontrar a resposta a esta pergunta decisiva.
Sobre a marginalização da Igreja, concretamente na Europa, escrevia recentemente o teólogo José M. Castillo: “A sociedade ‘descristianiza-se’ a uma velocidade e até a níveis que impressionam quem, pela idade e pelas recordações de família, tem a sensação de estar a viver numa sociedade que, há umas décadas, não podia imaginar”. Mas, afinal, porquê?, qual a razão? Não está a Igreja a ser marginalizada, porque ela própria vive à margem? Castillo acrescenta: “Uma Igreja, que vive à margem da sociedade, é uma Igreja que se não relaciona com a ‘realidade’, mas que se relaciona com a ‘representação da realidade’, que a própria Igreja elabora para si, segundo os seus interesses e conveniência. Se a Igreja se situou na “margem” da vida e da sociedade, pretendemos, a partir de fora da sociedade, influenciá-la?” “Se a Igreja não pôde assinar e fazer sua a Declaração dos Direitos Humanos, com que autoridade e com que credibilidade pode falar de amor à humanidade?”
5. Pensando nas relações entre Deus e o mundo, o mundo e Deus, o aquém e o Além, se se não quiser mentir a si próprio nem aos outros, é inevitável virem à ideia estas palavras célebres de Immanuel Kant: “A praxis deve ser tal que não se possa pensar que não existe um Além.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 16 JUN 2019
São gangsters. Estão na casa de banho do Cotton Club e fazem, com líquido vagar, o que de pé os homens fazem na casa de banho. Falam de respeito, do que é só medo canino e do que nasce da lealdade límpida.
Owney tem, no filme de Coppola, a graça confortável dos gordos. Frenchy junta ao corpo gigantesco a fealdade de um trovão e uma imperturbável inexpressividade. São leais e não dizem, por horror ao pleonasmo, a amizade que os une.
No filme, o gang de um cão raivoso rapta Frenchy e pede resgate. Owney sofre como se lhe tivessem levado um filho e paga. Reencontram-se e estão agora na casa de banho. Frenchy, o corte de uma facada na orelha, mente com a ironia dos duros: “O cão raivoso tratou-me como realeza”. Aproxima-se de Owney, segura-lhe no belo relógio de bolso como quem faz contas ao tempo de cativeiro, deixa-o cair, diz que não funciona e o vai arranjar, mas esmaga-o com uma estatueta maciça. Grita-lhe com fúria ciclónica: “You, cheap son of a bitch, ouvi dizer que pagaste a miséria de 500 dólares para me libertares. Eu pagaria uma fortuna por ti.”
Owney salta, apopléctico: “Só queriam 35 mil e paguei 50 para que não te tocassem num cabelo. Teria pago 500 mil. Quase morri em cuidados… Olha o que fizeste à merda do relógio.”
Com voz de mel, Frenchy sussurra como se saboreasse cada dólar “cin-quen-ta mil…” e dá a Owney uma caixa com um laço. Owney desembrulha-a num furioso o que é isto. Abre e: “Um relógio de platina… minha grande besta.” O abraço deles é o abraço de uma das mais belas cenas de amizade do cinema americano.
Ser amigo é como ser irmão, mas sem a desculpa fácil do sangue. Descobrem-se amigos à primeira vista quando somos miúdos. Com o tempo é mais difícil fazê-los e cada vez mais doloroso perdê-los. Não consola saber que, de algumas pessoas, se tivéssemos a sorte de as encontrar, seríamos os melhores amigos.
Aconteceu em Los Angeles. Levaram Jerry Lewis à mesa de Chaplin. “É um prazer conhecê-lo, Mr. Chaplin” disse Jerry. “Para si, sou só Charlie”, respondeu o velho Charlot. “A mim, trate-me por Mr. Lewis” replicou Jerry, e foi a primeira gargalhada. Faltavam dez para a meia-noite. Levantaram-se às três da manhã. Amigos à primeira vista.
Nesses anos 60, Jerry actuou no Olympia. Estava a tout Paris. Godard, Truffaut, Juliette Greco na fila da frente. Também Geraldine, filha de Chaplin, que, depois, lhe disse maravilhas do espectáculo. E rematou: “O meu pai adorou.” Espanto de Jerry: “O seu pai não estava na sala.” Ela jurou que sim. E explicou: “O meu pai escondeu-se lá em cima, atrás do controlo de luzes. Achou que se aparecesse agora, em Paris, desviava as atenções do seu espectáculo. Veio em segredo, pela alegria de o ver no palco.”
Riram-se lágrimas nos olhos de Jerry derretido com o amigo incógnito, ou não fosse a elipse a única figura de estilo que a amizade consente.
«As Terras do Risco» de Agustina Bessa-Luís (Guimarães Editores, 1994) serviu de base ao filme «O Convento» de Manoel de Oliveira (1995). É um caso curioso em que duas obras se completam e se antagonizam – dando origem talvez à mais notória crise entre dois autores que tão ligados se encontram em substância. Mas, como costumava dizer Oliveira – “Agustina fez o seu livro e eu fiz o meu filme”.
UM MISTERIOSO CONVENTO Começamos pela sinopse oficial da obra de Agustina: «O romance decorre na Arrábida, onde há muitos séculos o homem conhece a confrontação com a sua própria obscuridade, dando-lhe às vezes o nome de Deus, outras de rei ou de poderes telúricos, terramotos e tempestades. É um romance que Goethe teria aberto, recomendando-o a Eckermann, mas sem o ler... É um livro elegante, insensível a tudo quanto é a ênfase do mistério, tornando-o tanto quanto possível trivial como a dedução dum criminologista». A trama do filme desenrola-se no misterioso convento, isolado na serra da Arrábida. Michel Padovic, investigador americano (John Malkovich) está apaixonado pela busca de uma pista histórica inédita e procura indícios de que William Shakespeare era um Judeu espanhol, descendente de gente expulsa da Península Ibérica pelos Reis Católicos e por D. Manuel, que teriam partido para Florença e daí para Inglaterra. Acompanhado pela mulher, Helène (Catherine Deneuve), trabalha na Arrábida, vindo a envolver-se com os restantes inquilinos do convento. Mas com que nos deparamos? Com a releitura do mito universal de "Fausto" – começado em Shakespeare, mas baseado em Goethe. A história é, no fundo, a de alguém que vende a alma ao demónio em troca do conhecimento. E Manoel de Oliveira trabalha o mito, demonstrando que Fausto existe em qualquer tempo. Assim, pode encarnar em Michel, que chega ao Convento, onde espera encontrar elementos que comprovem as suas teorias. Mas é por Hélène que se interessa o guardião do local, a figura algo sinistra de Baltar (Luís Miguel Cintra), que vive com Piedade (Leonor Silveira). Temos então vários tempos sobrepostos: o presente, a Idade Média (origem do convento) e a Antiguidade clássica, já que Hélène se transfigura em Helena de Troia.
DESENCONTRO E MISTÉRIO João Bénard da Costa ficou muito ligado a este filme. Conhecia a serra como a palma das suas mãos. Manoel de Oliveira pediu-lhe por isso ajuda para fazer um levantamento dos lugares e das histórias da Arrábida, acabando a convidá-lo para participar no filme. “Numa das cenas, eu devia contar (disse João) à Catherine Deneuve a história do Convento Velho, que eu contei tantas vezes a tanta gente ao longo da minha vida. Lembro-me perfeitamente de ter pensado, naquele momento, que sentia estar a viver um sonho. Um ano antes, naquele mesmo sítio onde vou tantas vezes, até poderia ter imaginado esta cena, rido com ela e pensado que ela era um sonho. Mas não. Estava ali, com a Catherine Deneuve, a contar uma história da Arrábida”. E esse momento mágico ligava-se, no fundo, ao mistério de todo o filme e do próprio livro. "A verdade é que tenho vivido coisas que nunca pensei viver, que parecem fazer parte da dimensão do sonho, da dimensão do cinema. Nesse sentido, sou um homem privilegiado". De facto, todo o carácter mágico que rodeia “O Convento” estava bem patente nos vários planos apresentados. Havia uma história ficcional e duas presenças que se misturavam, a de Shakespeare e a de Goethe, a do teatro e a da literatura, ligando-as um mito que tanto entusiasmava Manoel de Oliveira e Agustina. Aqui entra o drama real. Agustina, por sugestão do seu amigo começa a escrever “Pedra de Toque”, sobre um dos lugares mais misteriosos e mágicos de Portugal. A escritora pensa em Depardieu e Deneuve, segundo a ideia do próprio Oliveira. No entanto, Agustina demorou-se na escrita, pelo menos mais do que o realizador necessitaria. Então este falou a Agustina para que ela resumisse o enredo. Assim foi, e Oliveira tirou-se de seus cuidados e elaborou um guião próprio, dando início ao processo de concretização do filme. E apresentou o filme como “inspirado na ideia original de Agustina Bessa-Luís”. Resultado? Agustina não gostou. Recusou-se a ver o filme e qualificou o episódio como “desencontro total” e “colaboração falhada”. “O Manoel de Oliveira teve sempre toda a liberdade, liberdade de que ele abusou”…
UMA ZANGA PASSAGEIRA A zanga foi séria, mas o certo é que o tempo aplainaria esse acidentado episódio. Agustina seguira uma via algo diferente da de Oliveira. Teria preferido seguir a obsessão do investigador tão concentrado no seu estudo, correndo o risco de se confundir com ele. Pelo contrário o cineasta optara por enfatizar a história dos ciúmes entre duas mulheres. E, como bem sabemos, Agustina sempre repetiu que “o Manoel de Oliveira filma filmes de amor, e o amor não entra nos meus romances”. A verdade é que não podia ser durável a zanga, por várias razões – de facto o que houve com “Pedra de Toque”, que depois se tornou “Terras do Risco”, por maior fidelidade à Arrábida, que passou à tela como “O Convento”, foi um mero equívoco, gerado pela pressa de Oliveira e pela falta de um real acerto de ideias quanto ao projeto. No entanto, entre Agustina e Manoel há muito que havia preocupações e ideias comuns ou próximas. Quando vemos o filme, percebemos que poderia ter sido ela a principal responsável pelas ideias, com mais ou menos peso dos ciúmes e dos desencontros. Talvez tenha existido no cineasta um excesso de confiança no exercício de seguir o que a autora teria feito. Mas o certo é que podemos ler “Terras do Risco” e analisar em paralelo o filme. A complementaridade lá está, numa distância muito menor do que a que encontramos em tantas transposições de romances para a tela… Passada a tempestade, no ano seguinte Oliveira voltou a lançar a Agustina o desafio para escrever sobre mulheres e homens, num cenário em que dois casais, um mais novo e outro mais velho, se encontram nos Açores. E assim o filme “Party” (1996) vai marcar uma rápida reconciliação – sendo curiosa a forma como Agustina vai aos Açores para conhecer pessoalmente Michel Piccoli e Irene Papas, que contracenam com Rogério Samora e Leonor Silveira. Surpreendida, a escritora depara-se com a filmagem de uma garden party em plena tempestade – com chuva, neblina e vento forte… E o certo é que Agustina concluiria que a nova colaboração cinematográfica foi interessante. Manoel de Oliveira fez a distinção entre os diálogos de Agustina Bessa-Luís e o argumento do próprio cineasta. E a vida seguiu em frente, entre os dois amigos – fundamentais na história da cultura portuguesa hoje.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Do primeiro passo que démos para circunscrever um conceito possível de estética do efémero, no texto anterior, Yoko Orimo conclui : Com esta noção de impermanência, revestida da filigrana da sua dimensão permanente, de tudo se poderá libertar uma infinidade de matizes. Face aos acontecimentos dramáticos do mundo, às vicissitudes e ao mistério da vida humana, no nosso coração se misturam então a dor e a aceitação, a tristeza e a serenidade, o lamento do que desapareceu e a alegria da espera do que vai nascer. O budismo antigo, nascido na Índia, atingiu assim no Japão o cumprimento final da sua transformação ou alteração doutrinária. Assim se elaborou, sobretudo a partir da era Muromachi (1392-1573), o fruto de tal aculturação : a estética japonesa do efémero.
Será que a inspiração desta - tal como a teremos visto - pouco ou nada ou talvez muito tenha a ver com a dos actuais movimentos de arte efémera? O conceito hodierno de efemeridade parece ter mais a ver com o propósito de vanidade e lixo do que com a procura de permanência na natureza perecível. Seremos já vítimas do embaciamento de um olhar maravilhado para a beleza do universo, que afinal revela a perda do nosso olhar interior que nos vai incapacitando de ver o mundo pela transparência do espelho da nossa alma? O espelho onde nos vamos mirando tão somente nos devolve a imagem que de nós já temos, incapazes de amor e vistas para além das nossas limitações. Talvez por isso a nossa nova arte do efémero pareça sobretudo desespero e renúncia, e um doentio e profundo desprezo pela nossa incapacidade, não só de regenerar, mas de, sequer, imaginar restaurado. Mais propensos a lamentar o que se vai do que a alegrar-nos com a novidade que possa vir, podemos comprazer-nos na representação da decadência, da fragilidade, na desilusão de nós. Ou, mais radicalmente, em habitar o absurdo. Todavia - graças a Deus!, direi eu à moda antiga - também andam por aí muitos outros que - trânsfugas dessa obsessão narcísica com o irreparável - com arte vão revestindo ruínas ou, mais ainda, com arte vão erguendo obras de esperança feitas com material reciclado do lixo a que a propensão egoísta e destruidora do consumismo teria condenado. Em vez de olhar para o efémero como fatalidade, destino final de tudo, vêem-no como momento e promessa, como terminação anunciadora de novidade. Porque esta, com todo o seu potencial, já lá está, não para ser esquecida ou repudiada, mas para que, em qualquer forma, ressurja na sua permanência.
Assim, a estética do efémero é uma estética de contemplação ou, como escreve Yoko Orimo, uma estética que não se apoia na invenção nem na originalidade, mas na reflexão no sentido de reflexo. É como a luz do Japão, luz indirecta : uma meia-luz, tamisada por uma taxa sempre muito alta de humidade atmosférica. Ou então é como a luz da lua, luz que é um reflexo. Revestir-se do Despertar deve pois querer dizer reflectir o Despertar que escapa a qualquer tentativa de posse. Diz Mestre Dogen : «O ser humano chega ao despertar tal como a lua permanece no meio da água : a lua não se molha, a água não se quebra...» Apesar de indissociavelmente ligadas, nem a lua nem a água exercem qualquer poder, uma sobre a outra ; cada qual fica perfeitamente livre e autónoma. A lua que se reflecte no meio da água, esse reflexo do reflexo, não é, aliás, verdadeira nem falsa, como a parábola da luz, como a imagem acantonada num espelho.
Afinal, mesmo quando for ou nos parecer feia a nossa circunstância, teremos de aprender a abrir os olhos do coração. Porque será da bondade do olhar que tivermos sobre o mundo, natureza, pessoas e coisas, que crescerá a força do amor que contempla, redime, restaura e torna completa a nossa alegria. Assim aprendi também com S. João Evangelista. E tal me ocorre em tarde de Pentecostes, a festa da multidão dos dons, que sempre nos chama a recriar o Universo. Pois por nós o Espírito irá renovando, em feitos e promessas, no tempo escatológico, a face da terra.
Este quadro de celebrações da morte de Agustina Bessa-Luís, ocorrida no passado dia 3 de junho, tinha a escritora-dramaturga 96 anos de idade, leva a uma ponderação-reflexão da sua obra literária sem dúvida, mas também das criações e intervenções que marcaram não só a obra escrita, mas também a criatividade e produtividade do teatro-espetáculo: e tudo isto, numa abrangência de ações, géneros e áreas de intervenção que em si mesmas caracterizam a própria essência do teatro como espetáculo.
Porque não é de mais recordar que teatro é texto mas é texto-espetáculo, ou pelo menos tal será a sua essência e vocação.
E nesse aspeto, Agustina marcou e sempre marcará o teatro português, como dramaturga, mas também como diretora que foi do Teatro Nacional de D. Maria II e sobretudo como pensadora da própria realidade da arte do teatro, na sua expressão essencial de texto e de espetáculo.
E nesse aspeto, importa então recordar algumas das criações/intervenções de Agustina ao longo de dezenas de anos e num somatório devidamente articulado e como tal coerente da diversidade compósita da arte do teatro-espetáculo. Porque, insista-se, o teatro é espetáculo concreto ou potencial.
Como dramaturga, estrou-se em 1958 com uma peça que denominou “O Inseparável ou o Amigo em Testamento”. Luis Francisco Rebello qualifica a peça como “comédia enigmática” e sublinha “um eco de existencialismo literário, pouco frequente na nossa dramaturgia, expresso através de uma ação jogada entre o real e o imaginário”. E refere ainda diversas peças para a televisão: “Os Cartazes”, “Xarope de Orgiata”, “Querido Kock”, “Ana Plácido” e “A Bela Portuguesa”.
Por minha parte, refiro em particular as afinidades de temática entre “O Inseparável” e “A Bela Portuguesa”. De certo modo, essa peça constitui o cerne do teatro de Agustina e o maior vetor da sua análise existencial.
Cito o que escrevi na “História do Teatro Português”:
«As reflexões sobre a verdade constituem o cerne de “A Bela” e do teatro de Agustina e o maior vetor da sua análise existencial; Madame Nachan é assim de certo modo, “o amigo em testamento” que não existiu na forma aparente, mas apenas no segundo plano existencial. Ora essa reflexão profunda, que é o mérito e o desafio do teatro de Agustina»... e segue a reflexão sobre o teatro de Agustina Bessa-Luís, com comparações a uma peça sobre Garrett.
E voltaremos a referir a intervenção de Agustina na criação, na cultura e na produção do teatro em Portugal.
Há que acompanhar com interesse a ciência e a sua evolução, sem acreditar que resolva todos os problemas da humanidade.
A ciência não é salvação, nem salvadora.
Os seus avanços em termos tecnológicos não substituíram a religião e o pensamento metafísico, nem aumentaram os tempos do ócio, dos tempos livres e do prazer.
Havia a narrativa que com a revolução científica e tecnológica teríamos mais tempo livre, menos trabalho, o que não é verdade, como já se se deduzia da leitura de obras como 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
Apesar de assistirmos ao domínio da ciência, da técnica, das máquinas e à substituição de pessoas, usurpação ou extinção de empregos.
Embora sejam úteis enquanto auxiliares humanos e funcionais em termos utilitários.
E perigosas se capazes de destruir seres humanos.
Que prova temos que a ciência descobre tudo aquilo que desconhecemos?
A ciência descobrirá a origem do universo?
A fé cega na ciência não será uma ilusão?
Uma utopia? Uma quimera?
Uma distopia?
O futuro está na base da ciência e a ilusão do futuro na ciência?
O que sabemos é que a ciência aumenta a nossa longevidade e qualidade de vida, mas não chega, não é a nossa felicidade ou salvação, mas ajuda muito.
Afirmava Eduardo Lourenço, e acrescento: talvez porque lá os unia o passado e o presente das sementes. Talvez porque lá era a casa das memórias universais, daquelas memórias que só os poetas conhecem: memórias com alma e com destino que se encontram sempre no seio da música que, sem nada dizer, tudo diz, nessa experiência religiosa e bastante só de a escutar. E sim, lá onde e aonde se não morre sozinho, é mundo sem mácula, é punhado de inocência, é enfim, vida com as coisas essenciais reconhecidas.
Quando penso que já não há escolha no entender do morrer e que só os outros dizem do nosso morrer, penso que nem metade do que eu penso, saberei pensar, já que a morte me acompanha e sou eu que lhe faço vista grossa.
Na aldeia que conheci em Vilarinho das Furnas também nunca se soube que alguém tivesse morrido sozinho. A comunidade era total. Até se sabia partilhar a Lua no seu primeiro quarto, bem como a mantilha de neblina que lhe flutuava à volta antes de descer à povoação e tranquilamente passar o corpo pela terra enquanto planava. Assim também se adocicava fosse o que fosse acontecer enquanto se aprendia a morrer sem angústia.
Conversei com muitas gentes de aldeias vizinhas de Vilarinho e registei que poucos se preocupavam numa análise de aprendizagem dos enredos da morte. Parecia que intuíam que o custo de a compreender era inferior ao benefício de acudir ao medo que ela poderia provocar se atentasse contra o poder da comunidade. E de facto, consultar a morte era criar demora nos bois à pastagem, o que era inadmissível: para a súbita aflição, a presença de padre ou de vizinho, bastava para que a facilidade da passagem chegasse pronta na ponta de um olhar ou dos dedos de uma mão. E esta realidade acontecia sempre. Naquela aldeia ninguém morria sozinho, o que tornava a vida de uma leveza única.
Um dia sentada junto à água da barragem que cobriu esta aldeia, fazia eu ricochetear pedrinhas que ressoavam antes do mergulho final, e eis que um professor de uma escola dali de perto se aproximou e me perguntou:
- Porque afogas as pedrinhas? Não lhes escutas o mugido da morte sem companhia? Fingem que não sabem que o saltitar as não livra dela, tão só porque a não entendem, mas o mugido está acima do que se entende.
- Não sei se compreendi o que me disse. Venho de um local onde o poeta Graça Moura escreveu:
Quando eu morrer (…) fica junto de mim (…) segura na minha mão, põe os olhos nos meus se puder ser (…) que ao deixar de bater-me o coração fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura na minha mão.
Ou seja, neste local que bem conheço, a sociedade tem de apelar doridamente, e, melhor acredita no apelo, se ele for feito em nome do amor, para que o desaparecer da vida se faça na possibilidade de uma relação última e íntima com alguém.
O crucial nestes momentos, é a constatação do quanto, há muito, perdemos a simplicidade dos factos e dos processos que por tentativa e erro nos levariam à cor dos inícios dos entendimentos. Concede-se por mais não ser que ninguém leva consigo o pecúlio da vida, entre outras realidades, concede-se também que por excedentes ensimesmados, se morre só.
O mugido que menciona, não creio que se ouça, mas já ouvi falar dele e sei que existe e que de tão tremendo, enterraram-no debaixo das montanhas, lá longe, lá longe, lá muito longe.