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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - XII

 

Minha Princesa de mim:

 

   Não sei se esta duodécima das derradeiras será a última que te escrevo por agora. O tempo o dirá. Como tão bem sabes e tantas vezes te lo disse, tenho uma relação ambígua, ou talvez apenas ambivalente, com isso a que só chamarmos tempo. Nele terei sempre de situar-me, por mim e pelos outros, pela curiosidade do passado, a verificação do presente e a tentativa perscrutação do futuro. Será só uma necessária categoria mental, como a noção do espaço, mas se nos situarmos fora da sua circunstância seremos, nós próprios, perturbados na perspetiva do olhar e na sua justeza sobre as coisas e os humanos, o mundo e a vida. Quiçá também sobre Deus, o Quem transcendente, O que está ontologicamente fora do visível. E que, enquanto tal, nunca é, nem pode ser, relativo, como são todas as coisas e pessoas, pensamentos atos e omissões que vão preenchendo a História. O que não significa que seja absoluto, não relativo, o nosso olhar sobre Ele. Assim, por outro lado de mim, como tantas e tantas vezes te disse e escrevi, pensossinto-me além do tempo. Sinceramente te lo digo: em tal tensão vivo e não esmoreço. Nem nada quero, desejo ou, sequer, anseio deslindar. Sempre fiel ao que chamo "minha dialética com a vida", que vai animando o mundo das coisas e das pessoas, sou igualmente fiel a esta íntima consciência de mim: a de estar de partida ou, se preferires, de regresso a casa. Tal é o sentido que dou a essa frase de S. Paulo (Hebreus, 11, 1, na tradução de Frederico Lourenço): Fé é garantia de coisas que se esperam e certeza de coisas que não se veem.  Muitas vezes a leio, dizendo que a fé é a substância, a essência das coisas que hão de vir. A tradução de F. Lourenço é praticamente idêntica à versão francesa, também diretamente do original grego, do dominicano C. Spicq para a edição da Escola Bíblica de Jerusalém. Pessoalmente, gosto muito da leitura feita pelo cónego José Falcão na sua versão portuguesa, a partir do texto grego, publicada pela Gráfica de Coimbra em 1965 (e que nesse mesmo ano adquiri por 65$00): A fé é o sustentáculo das coisas que se esperam, a prova da realidade das coisas que se não veem. "Sustentáculo" traduz aqui o grego "hypostasis", isto é, o que está por baixo, o apoio, o pedestal. Na verdade, a nossa relação com o transcendente está necessariamente acima do nosso entendimento e, não sendo necessariamente uma estupidez ou cegueira, necessita porém do sustentáculo da fé.

 

    Talvez por isso mesmo, há tantos anos já, quando o Ernâni Lopes me mostrou o seu Francisco de Borja meditando, qual São Jerónimo, sobre a caveira da morte, lhe recitei duma assentada a meditação do duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal, poema da Sophia que eu há muito decorara por sentir como intimamente meus alguns versos seus: ... nunca mais darei ao tempo a minha vida... nunca mais servirei senhor que possa morrer... nunca mais servirei quem não possa viver sempre... porque eu amei como se fossem eternos a luz a glória e o brilho do teu ser... amei-te em verdade e transparência... e nem se quer me resta a tua ausência... és um rosto de nojo e negação... e eu fecho os olhos para não te ver...

 

   A experiência da morte próxima, seja quem for que morra, tanto quanto a solitária ideia dela, eis que nos surpreende o ser e se nos anuncia como dor funda, agudíssima, contrária a nós. Pois que é a própria persistência do ser no ser que o mantém vivo, a morte só me é concebível no tempo, nunca na eternidade, o seu momento sendo apenas um passo desconhecido. Ao terminar, qualquer tempo é um buraco negro que em voragem final até os seus vestígios leva: ...e nem sequer me resta a tua ausência. Por paradoxal que possa ser, a própria ideia da morte nos repugna visceralmente, a nós humanos que recusamos o que é próprio a todo o mundo biológico: a consumação post mortem na reciclagem da natureza, onde nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Assim, contrariando o que seria natural, encaramos a morte como sendo contra natura. E tal invenção da nossa própria eternidade é-nos tão íntima que ainda pequeninos nos acontece reclamá-la, como já te narrei num dos contos breves dos meus netos. Mais precisamente, naquele em que o Tomás, então com quatro anitos apenas, se passeava comigo pelo Jardim dos Passarinhos, no Monte Estoril, quando deparamos com um cágado velhinho, e a minha neta Inês, sua irmã, me questiona: "Ó Avô, esta tartaruga vai morrer? Porquê?" E eu respondo: "Talvez, é natural, pois tudo o que nasce morre"... E logo o Tomás, rápido: "Então o Tomás não nasceu!"

 

   Há milénios que sucessivas gerações vivem a condição humana nessa tensão entre o da sein em que cada um se descobre e o ser em infinitude que se sente interiormente. Aqui estamos e somos, mas a nossa própria imperfeição, o nosso inacabamento - todos os dias verificável - parece acordar-nos e vocacionar-nos para uma qualquer completude, perfeição ou acabamento do nosso ser. Mas aqui aprenderemos também que tal não será possível no tempo, pois este é duração medida, e todo o mensurável tem princípio, meio e fim, tem horizonte traçado. O tempo é um espaço de finitude, medido pela duração. Por isso tanto falamos de um período de tempo como num espaço de tempo, e a marcação de uma frase musical se pode fazer pela cadência, e esta imaginar-se como a distância da queda de uma nota para outra. Qualquer eternidade do ser não é, portanto, não pode ser, sequer, concebível sem a transformação do espaço-tempo em algo que transcende a nossa verificação possível, e a que a nossa ignorância chama o Infinito, conceito paradoxal por excelência, ambíguo mesmo, já que infinito não é só o que não foi acabado, o imperfeito, é, enquanto ser, ele mesmo, o Ser Infinito.

 

   O Quem, assim o apelidou Saramago; YHWH, o tetragrama hebraico que nos diz ser impronunciável o nome do Deus bíblico, que é raiz do verbo ser ("Eu Sou" ou simplesmente "Ser"); o Nada dos grandes místicos como o meu tão querido Mestre Eckhart, que escreve no seu sermão 71, que mais de uma vez te lembrei nas minhas cartas, citando um passo dos Atos dos Apóstolos, na versão latina da Vulgata: Surrexit autem Saulus de terra, aperitisque oculis nihi videbat ("Levantou-se Saulo do chão e de olhos abertos não via nada"): Parece-me que esta frase tem quatro sentidos. O primeiro deles é: quando se levantou do chão, com os olhos abertos, nada viu, e esse nada era Deus; pois que, quando viu Deus, lhe chama um nada. Outro sentido: quando se levantou nada viu, mas apenas Deus. Terceiro sentido: em todas as coisas apenas viu Deus. Quarto: quando viu Deus, viu todas as coisas como nada.

 

   O Quem de Saramago surge, nas leituras de cabine do seu imaginado Ricardo Reis (cf. O Ano da Morte de Ricardo Reis, de que te falei nas minhas "Cartas a José Saramago"), como personagem misteriosa e título de uma aventura "policial" (ou de investigação). Será uma questão persecutória, não é ainda pausa ou conclusão filosófica, muito menos intuição metafísica. O tetragrama bíblico estará na fronteira de tal intuição como uma revelação teológica. A contemplação mística do medievo dominicano alemão é já um exercício propriamente teológico, um desenvolvimento da fé pelo labor da razão. Afinal, de nada ou muito pouco estamos sempre absolutamente seguros. Vivemos na contingência. Mas pecado, mesmo, será apenas contentarmo-nos com os limites dela e fecharmos o olhar, o caminho e a vida à possibilidade de novo progresso.

 

   Fecho esta carta, citando-te um passo do Corão (versículo 34 da Sura 21, dita "Dos Profetas"): Não demos a imortalidade a homem algum antes de ti. Seriam eles imortais, enquanto que tu vais morrer? E outro ainda (vers. 4 da Sura 10, dita Jonas)

 

  Todos voltareis a Ele. Eis a verdadeira promessa de Deus: Ele faz emanar a criação e depois fá-la regressar, a recompensar aqueles que creem, que praticam as boas obras com equidade. O destino do mortal cumpre-se com a morte, a que não pode escapar. Mas o destino da humanidade é a vida com Deus, no advento da Nova Criação. Creio que há aí, no Islão, uma tradição cristã. Tal como S. Paulo, na sua Carta aos Romanos (6, 2-11, tradução de F .Lourenço) teologicamente expõe: Nós que morremos para o erro, como viveremos nele? Ou ignorais que tantos quantos fomos batizados para Cristo Jesus, para a morte dele fomos batizados? Fomos sepultados com ele através do batismo para a morte, para que, tal como Cristo ressuscitou dos mortos através de glória do Pai, do mesmo modo também nós caminhemos em novidade de vida. Pois se nos tornámos unidos à semelhança da morte dele, também o seremos na semelhança da ressurreição. Saibamos isto: que o homem antigo que havia dentro de nós foi crucificado, para que fosse anulado o corpo do erro; e saibamos que não somos escravos do erro. Pois quem morre foi ilibado do erro. Se morremos com Cristo, acreditamos que também viveremos com ele, sabendo que Cristo ressuscitado dos mortos já não morre: a morte já não tem senhorio sobre ele. Pois aquilo que ele morreu, para o erro morreu de uma vez por todas; aquilo que ele vive, vive para Deus. Do mesmo modo, considerai-vos também vós mortos para o erro e vivos para Deus em Cristo Jesus.

 

   A fé é a minha aproximação a tudo o que ainda não posso ver. Vou aprendendo a contemplar o invisível,

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

OS 125 ANOS DO TEATRO SÃO LUIZ

 

Temos aqui referido o Teatro de São Luiz em perspetivas que englobam eventos, espetáculos e comemorações realizadas nesta bela sala que tanto marca a vida cultural de Lisboa e mesmo do país, a partir da sua conceção, construção, inauguração e atividade, como teatro, como cinema, como sala de concertos e centro cultural: e também como referência da área urbana em que se inscreve e das variantes urbanas e culturais que sucessivamente envolve.

 

Pois é hoje oportuno recordar que se assinala no dia 22 de maio o 125º aniversário da inauguração do então Theatro Dona Amélia, homenagem à  rainha, com a estreia em Lisboa da ópera “A Filha do Tambor Mor” de  Offenbach, numa produção italiana que aliás constitui, ao longo de decénios, uma das características das sucessivas explorações desta sala de espetáculos, também sucessivamente denominada Theatro da Republica, São Luiz Cine e Teatro São Luiz, conforme o regime e a atividade dominante em cada época.

 

Ardeu em 1915, foi devidamente restaurado, adotou o nome atual em 1918 e é explorado também e por vezes exclusivamente ou quase como cinema a partir de 1926.

 

 A designação decorre da construção se ficar a dever a uma individualidade, o Visconde de São Luiz Braga, nascido no Brasil de pais portugueses e que se fixaria também em Lisboa. De assinalar que o Teatro e depois Cinema São Luiz é um projeto de Ernesto Luis Raymond com intervenções dos cenógrafos Luigi Manini e Carlo Rossi.

 

O certo é que, passados estes 125 anos de constante atividade, o Teatro-Cinema São Luiz, a certa altura municipalizado, constitui um referencial da arquitetura e da atividade de espetáculo e de cultural em geral.

 

E é de assinalar designadamente o período em que o Teatro foi dirigido por Luiz Francisco Rebello que em 1971 se demitiu da atividade por problemas ligados à censura de um espetáculo programado – “A Mãe” de Witckiewicz, que não chegou a estrear.

 

Já aqui recordei a colaboração que na época prestei a Rebello na direção do teatro:  e tal como escrevi, acompanhei-o na saída da direção.

 

Mas ficou até hoje a recordação, e para mim é oportuno referi-la nestes 125 anos do Teatro São Luiz.

 

E não é demais assinalar a extraordinária coleção de placas que, desde quase as origens até hoje, assinalam a realização de espetáculos e eventos de cultura realizados no São Luiz!

 

Voltaremos a referir esta comemoração dos 125 anos de um teatro de Lisboa.

 

DUARTE IVO CRUZ

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