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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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COMO OS CRISTÃOS SE TORNARAM CATÓLICOS

   

   O título deste texto é a tradução literal do que a professora da Sorbonne Marie-Françoise Baslez deu ao seu último livro, editado este ano pela Tallandier: Comment les Chrétiens sont devenus Catholiques (1er-5ème siècle), obra cuja leitura recomendo a quem se disponha a refletir, em tempos interrogadores, sobre o nascimento e o(s) desenvolvimento(s) da Igreja Católica e a consciência da sua identidade própria. A história, isto é, a vivência do cristianismo inicial descobre-se fundamentalmente nos escritos do Novo Testamento que constituem os textos das epístolas apostólicas e dessa crónica coeva a que chamamos Atos dos Apóstolos, existindo ainda outros testemunhos na correspondência trocada e conservada pelas várias igrejas ou assembleias daquele tempo, bem como nos registos de documentos administrativos e cronistas exteriores às comunidades cristãs. Muito de todo este acervo foi redigido em cima dos acontecimentos e em virtude deles, sendo, aliás, anterior à redação dos Evangelhos (canónicos e apócrifos) que são sobretudo memórias da vida e dos ensinamentos de Jesus, guardadas e transmitidas pelas tradições de diferentes pregões e movimentos do apostolado e das igrejas consequentes à mobilização do Pentecostes.

 

   Por mim, entusiasmo-me sempre com essas narrativas de uma vida espiritual e religiosa que é essencialmente social, comunitária, contos velhinhos da juventude do abraço de Deus à reunião dos homens no amor, pela intercessão redentora de Jesus e o sopro incessante e livre do Espírito Santo. Aí encontro uma porta aberta sobre o mistério criador do cristianismo - que não é uma doutrina, nem ideologia, nem qualquer código, mas uma mensagem apenas: amai-vos uns aos outros como Deus vos amou e ama, para que seja completa a vossa alegria. Na verdade, peça-se à volta deste mundo, seja onde for, uma definição do amor e tal terá sempre um denominador comum: Amor é o que dá sentido à vida. Nada mais. É edificante observarmos como a Igreja cristã não surge como instituição divina, pré formada e organizada por Cristo, como tantas vezes alguns pretendem fazer-nos crer. E é lapidar a análise da Prof.ª Baslez:

 

   Os textos fundadores do Novo Testamento não puderam servir sozinhos para fundamentos teológicos de qualquer modelo organizacional que seria suficiente repetir, pois de modo algum se interessam pela questão das estruturas eclesiais. No princípio, não há doutrina, mas uma mensagem, um «evangelho» que comunidades recebem e meditam desenvolvendo uma consciência eclesial prévia a qualquer institucionalização. A primeira Igreja de Jerusalém, figuradora da Igreja Universal e projetora da Jerusalém celeste está definida nos Actos dos Apóstolos como «comunidade do múltiplo» (plethos), sem mais nenhuma referência estruturante além da lei da maioria.

 

   Foram as assembleias das Igrejas o berço das Escrituras. Os relatos de batismos e de refeições circulavam, como demonstra Paulo quanto à «refeição do Senhor», em texto bem anterior aos evangelhos. [Cf. Coríntios I, 11, 23-25: Pois eu recebi do Senhor o que também vos ofereci: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou pão e, tendo dado graças partiu-o e disse : «Isto é o meu corpo que é para vós; isto fazei para a minha memória.» Do mesmo modo, também o cálice tomou depois da ceia, dizendo: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue; isto fazei - quantas vezes o beberdes - para a minha memória.» Pois quantas vezes comerdes este pão e beberdes este cálice, a morte do Senhor anunciais, até que ele venha. Tradução do trecho paulino por Frederico Lourenço.]

 

   Naquele tempo, era comum, na diáspora judaica, as comunidades ou sinagogas reunirem-se, para a celebração de festas ou em dias de preceito, numa casa escolhida para o efeito, e juntarem aos ritos religiosos a participação dos fiéis num repasto comum. Tal prática, aliás, também se realizava entre outras assembleias, designadamente nas cristãs, onde a ação de graças, ou eucaristia, se fazia como memória da Ceia do Senhor, atualização sacramental da Nova Aliança, isto é, da reconciliação de Deus com a humanidade inteira, com Cristo, por Cristo, em Cristo. A partilha do pão e do vinho entre todos e por todos significava assim substancialmente o sacrifício redentor de Jesus e a presença contínua do Senhor Ressuscitado entre nós: "Sempre que estiverdes reunidos em meu nome, eu estarei no meio de vós". A comunhão eucarística surge assim como união dos batizados no Corpo de Cristo, em ação de graças e como resposta efetiva à vocação da humanidade para a construção da nova terra e dos novos céus.

 

   Pela propensão obsessiva a defender o "Santíssimo Sacramento" como presença real do Corpo de Jesus, no sentido de um gesto de magia sagrada ter fisicamente transformado pão e vinho em carne e sangue, muita pregação eclesial e devota também vai encobrindo a realidade mística - realidade, sim, em sentido pleno - do Corpo de Deus como sacramento do sublime sacrifício de Cristo, pelo qual toda a humanidade se encontra reconciliada em Deus e com Deus. Os primeiros cristãos, aqueles que testemunhavam a Palavra e reproduziam os gestos do Senhor, celebravam a eucaristia como momento comunitário, não dispunham de sacerdote algum para consagrar o pão e o vinho, essa consagração fazia-se pela união dos batizados em torno da memória de Jesus Cristo. Aliás, por alguma razão, nos escritos neotestamentários, "sacerdote" é termo exclusivamente referido apenas ao Povo de Deus, jamais a alguém em particular. O conceito atualmente corrente de "sacerdote" data apenas do 2º milénio do cristianismo, surge na Idade Média e fixa-se, com o direito canónico, no século XII, quando se regulamenta que sacerdote é quem recebeu o sacramento da ordem e, por este, o poder divino, transmitido pela Igreja hierárquica, de batizar, abençoar, celebrar a eucaristia e perdoar os pecados. Tal estatuto foi gerando muitos e vários privilégios, desde as imunidades do foro eclesiástico à atribuição de funções e competências para as quais nem todo clero estava evidentemente preparado. Está aí a raiz histórica do clericalismo - mal ainda hoje viral na Igreja - que, todavia, não tem qualquer fundamentação teológica aceitável mas, muito pelo contrário, encontra nos próprios textos evangélicos palavras de repúdio e condenação por parte de Jesus.

 

    Não sei se estamos hoje no limiar de um novo período de avanço das comunidades cristãs para a catolicidade, mas o dinamismo atual dos movimentos ecuménicos, bem como sinais de abertura e progresso por parte de vários sectores da hierarquia eclesial, deixam-me esperar que sim. Vejamos a notícia da eleição do novo superior provincial dos frades capuchinhos de Mid America (EUA), um irmão leigo (isto é, sem ordens sacras, mas professo, ou seja, tendo já pronunciado os votos de obediência, pobreza e castidade exigidos pelo regulamento da Ordem dos Frades Menores). Eleito pela maioria absoluta dos seus irmãos em São Francisco de Assis (que tampouco era "sacerdote") viu a validação desse ato rejeitada pela Congregação da Santa Sé para os Religiosos, no Vaticano, com o fundamento de não ser ordenado, conforme exigido pelo artº 129-1 do Código de Direito Canónico: "Quem recebeu a ordem sagrada é capaz, segundo as normas do direito, do poder de governo que, por instituição divina, existe na Igreja, e que também é chamado poder de jurisdição". Mesmo que o pretensiosismo soez e desajeitado deste preceito canónico, nos faça sorrir, não deixa o mesmo de ser revelador da pobreza intelectual do clericalismo e seus defensores, com alguma confusão entre disposições canónicas e instituições divinas... Mas os capuchinhos americanos recorreram para o Papa, que anulou o veto e promulgou a eleição. É bom que se vá lembrando à Igreja como todos somos filhos de Deus através da fé em Jesus Cristo. Todos os que fomos batizados para Cristo estamos vestidos de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea: todos nós somos um em Cristo Jesus. Se nós somos de Cristo, então somos semente de Abraão e herdeiros segundo uma promessa (S. Paulo aos Gálatas, 3, 26-29). Assim, já não somos estrangeiros nem estranhos, mas concidadãos dos santos e pessoas da casa de Deus, edificados sobre a fundação dos apóstolos e profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a pedra angular, na qual todo o edifício, bem ajustado, aumenta de modo a tornar-se templo sagrado no Senhor, no qual também nós somos edificados para habitação de Deus em espírito (aos Efésios, 2, 19-22). A instituição eclesial é a comunhão de todos em Cristo, os ministérios eclesiais são desempenhos de serviços dessa comunhão e não conferem a quem os exerce qualquer estatuto distinto ou acima dos outros comungantes. E porque Cristo é tudo em todos, chamamos católica à sua Igreja.

 

Camilo Martins de Oliveira