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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

A LEMBRANÇA DO “DIABRETE”…
30 de julho de 2019

 

Há oito dias, lembrei uma capa de “O Mosquito”, hoje trago-vos uma velha capa do “Diabrete”, título marcado pela direção de Adolfo Simões Müller (1909-1989), revista nascida em janeiro de 1941. Como sabemos, foi “O Papagaio”, no tempo de Simões Müller, que publicou pela primeira vez em Portugal as aventuras de Tintin. Saído da Renascença, o professor e jornalista tentaria levar consigo as aventuras do repórter belga, o que apenas conseguiu depois de muita persistência para convencer Hergé. Não se esqueça que foi por intermédio do Padre Abel Varzim (1902-1964) que foi conseguida pelo Monsenhor Lopes da Cruz (1899-1969) a tradução pioneira para português das aventuras de Tintin, na altura designado como Tim-tim. Portugal não só foi o primeiro país não francófono a publicar a tradução dessa obra, que se tornaria essencial na história da Banda Desenhada e das modernas Artes Plásticas (colocando Hergé a par de Andy Wharol e Roy Lichtenstein), mas também porque foi onde pela primeira vez se introduziu cor nessa narrativa ilustrada. O “Diabrete” durou até à última semana de 1951 e deu lugar ao “Cavaleiro Andante”. E podemos dizer que Fernando Bento (1910-1996), também gráfico do “Cavaleiro Andante”, foi essencial no caminho seguido pelo “Diabrete”, que se traduziu num claro aperfeiçoamento das histórias de quadradinhos em Portugal, que ganharam uma dimensão que pode comparar-se à melhor evolução extra muros. Com o tempo, a imprensa juvenil foi ganhando maior importância na ilustração e na ligação entre a narrativa e o desenho. Lembremo-nos de que “O Papagaio”, revista fundada em 1935, começou por ter pouca ilustração, apesar da qualidade se ter afirmado desde muito cedo, designadamente com um dos grandes artistas portugueses do século, Júlio Resende (criador de Matulão e Matulinho)… É muito significativo que em Portugal se tenha desenvolvido o género, em ligação estreita com o modernismo e os caricaturistas, desde Almada Negreiros, Stuart, Cottinelli Telmo, Carlos Botelho ou Emmérico Nunes… É essa a genealogia que deve ser lembrada e que chega ao nosso melhor século XIX com Rafael Bordalo Pinheiro. Desde Zé Povinho e Maria Paciência, a Quim e Manecas, indo aos apontamentos de Fernando Bento com Filipim – podemos dizer que há em Portugal uma evidente repercussão da melhor criatividade europeia… 

 

O apontamento que hoje damos é do “Cavaleiro Andante” (1957), mas vem na linha do muito que já encontramos de F. Bento no “Diabrete”…

 

Não resisto ainda à tentação de uma nota final. Tenho estado em permanente contacto com a BBC. Guardo de Conrado o prudente silêncio. Aguardo serenamente sobre qual o caminho escolhido por Boris Johnson – se a pura ilusão se o realismo. E como ele conhece bem a biografia de Winston Churchill, seria bom que relesse com cuidado o discurso de Zurique de 19 de setembro de 1946, de fio a pavio. E sugiro que leia mesmo tudo, não a parte sobre a Europa, mas sobre a Inglaterra, a paz e o desenvolvimento. O Império britânico não é uma abstração histórica. Ter influência real, obriga a ter os pés no chão… Se recuso a mera ironia sobre cabeleiras, obrigo-me a levar a sério a minha anglofilia. O erro maior já foi cometido: fazer um referendo absurdo que só dividiu os britânicos. Por isso, não há referendos constitucionais na Suíça e as decisões fundamentais têm de contar com a maioria das duas câmaras, alta e baixa, a maioria dos cantões e a maioria da população. O que começa mal tarde ou nunca se endireita. Estive ontem aqui em casa a tomar uma bela chávena de chá com skones de receita da minha mãe com os meus queridos amigos Gregor Mc Gregor e Éamon Patrick Longford – que estão deveras apreensivos, temem pelo futuro do Reino Unido, por uma cegueira que corresponde aos tempos mais negros e incertos… Mc Gregor lembra que não há gloriosa Britannia sem a coragem e a inteligência escocesas. E Longford disse ter erradamente julgado que o velho clima de guerra, que tantas vidas custou, tinha terminado, esqueceu-se o que aconteceu na trágica grande fome… Saíram daqui às tantas, com muito pessimismo, mas voltaremos ao tema.

 

Escolhi para terminar o belo poema da Fiama Hasse Pais Brandão, que ontem lembrámos:

 

“O Canto da Chávena de Chá”

Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.

 

Agostinho de Morais

A NEUROSE DE MARLON BRANDO

 

Os actores são como as cobras: estão sempre a mudar de pele.

 

Mas alguns, poucos, só têm uma. Com um dramatismo que nenhuma cobra conhece, vivem mal na própria pele. Greta Garbo e Humphrey Bogart são exemplos canónicos. Da pele de actor, Bogart escondeu-se num milhão de whiskies, Garbo em golfadas de solidão.

 

Às angústias de Garbo e Bogart sucedeu a neurose de Marilyn e Brando. Já não é apenas a pele. Também vivem com desconforto a religião de que são deuses. Marilyn ainda acreditava no cinema como arte. Foram outros, aqueles em que ela buscava caução, a começar no azedo marido escritor, Arthur Miller, a pôr em dúvida os geniais filmes de Hawks e Wilder em que entrou. Marlon Brando, em matéria de dúvidas, era auto-suficiente. Comparo-o a uma bica dupla, uma bomba de cafeína que não deixa ninguém dormir: duvidava de si e duvidava do cinema.

 

A Brando guiava-o um puritanismo batido a idealismo salvífico. Via o cinema como guardião do bem e os filmes como uma arma de desenvolvimento moral. Se algum dia tivesse sido o que Brando achava que devia ser, o cinema já teria acabado.

 

O escritor Truman Capote, que passou com ele noites inteiras a conversar, contou um episódio ilustrativo. No Japão, filmavam “Sayonara” junto a um templo budista. De repente, de uma porta de incenso, irrompe a cabeça rapada de um monge, olhos e boca a sorrirem para pedir a Brando uma fotografia autografada. A frustração estampou-se na cara do actor. Um furioso raciocínio rasgou-lhe o cérebro: para que quereria um monge budista um autógrafo dele? Um monge budista, retirado do mundo, deveria ser puro espírito, uma tosta mista de oração e contemplação. Brando não sabia o que fazer com a alegria fútil do monge, com a aceitação da variedade e vaidade do mundo implícita num pedido de autógrafo.

 

Se acreditássemos no que disse em entrevistas e no autobiográfico “Songs My Mother Taught Me”, Brando teria apagado a sua personagem de “The Wild One”, teria silenciado os dilacerados gritos de “Hey Stellaaaa!” no “A Streetcar Named Desire” e, no “On The Waterfront”, nunca teria deixado Rod Steiger chorar na famosa cena em que eram pela última vez irmãos.

 

Brando via-se a si mesmo com o rigor puritano de um Pol Pot, vá lá, um Savonarola. Exterminaria as suas personagens se deixado sozinho com elas. Quando lhe puseram um filme nas mãos, despediu o realizador, Kubrick, e um dos argumentistas, Peckinpah. (“Go fuck yourself”, foi o singelo adeus de Kubrick.)

 

Brando produziu, meteu mais do que um dedo no argumento e realizou esse pessoalíssimo projecto de que foi protagonista. Pasme-se: não adaptou Shakespeare, Joyce ou Beckett. Fez um simples western, “One Eyed Jacks”. Sem surpresa, era um belo filme, a solitária obra-prima do realizador Marlon Brando.

 

Manuel S. Fonseca