Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Quando a Antologia Poética (Oro, 2018) de Manuel dos Santos Serra (1926-2018) me chegou às mãos já ele não pôde apor a sua assinatura no livro, nem a mim foi possível cumprir o desígnio há muito prometido de apresentar consigo esta obra.
CIDADÃO IRREPREENSÍVEL Devo dizer que é com um gosto muito especial que escrevo não apenas sobre o livro, mas também sobre a amizade que me ligava ao seu autor. Li, por isso, pausadamente e com emoção esta escolha de poemas, ao longo de quase quinhentas páginas. E em cada linha recordei quem conheci sempre, como amigo de meus pais, como médico de família, mas, muito mais do que isso, como um cidadão exemplar, um democrata a toda a prova. O poeta conheci-o mais tarde, mas em boa hora. Tudo na vida nos foi aproximando em múltiplos domínios, o da confiança e da cumplicidade humana, que não pode deixar de existir quando se trata de um médico próximo e atento, mas também o da cidadania e da paixão política, da cultura e da arte e do amor da natureza e da justiça. De facto, falámos de tudo ao longo da vida, apesar de ser uma pessoa de palavras essenciais. Nas consultas com meus avós, que o adoravam, havia a atenção máxima, o cuidado extremo, mas não fazia comentários e no fim havia sobretudo conselhos e amizade… A descrição de Albufeira é familiar: “Branca / Tão alva como as mulheres / Nórdicas do frio // Quente / Do sol de latitudes fugidias / Que te deram nome / Com palavras de barro / Refundido em ferro / E cobre reluzente, / Tão antigas como o esquecimento // Esta terra que nós temos / Que nos tem, / Impenitentes argonautas neste cais de pedra / Por magia do elixir do sol e mar salgado / Eterna fonte do instante novo / Que te vai renovando o rosto / A rolar a vida, / Sempre a mesma vida ondulada e nova (…) / Branca / Quente / Terra que nós temos / Que nos tem, / És de todo o mundo / És de ninguém!” (pp. 154-155). Albufeira é isso mesmo, um lugar de muitas magias, onde o Doutor Serra fez a sua vida, a sua profissão e o seu incansável magistério cívico. E ao invocar no final do poema o “Auto da Lusitânia” de mestre Gil é o gosto da gente comum que aí exprime. Texto após texto, deparamos com uma atitude sempre inconformista, mas sempre compreensiva sobre o diálogo entre as raízes e as mudanças. E como sinal desse respeito sagrado pelas origens, temos o belo poema que serve de pórtico a este livro: “Meus pais e meus avós / Para minha liberdade / Abriram fenda na muralha / Que os detinha prisioneiros! / Percorri longos caminhos / Guiado pelas sombras, / Pitonisas, / Adivinhos. / Na prisão sonho que os retinha / Contemplavam, ao longe, / O esforço penitente / A que eles me condenaram / Por amor! // Deslumbrados, / Ao verem-me descer / E a subir / Foram morrendo, em paz, / Atrás das grades / A sorrir!” (p. 7). De facto, é também uma autêntica saga que aqui se encontra, de quem saiu muito cedo de Penela (Coimbra) (“Acrópole antiga / Com aroma grego”) e veio para o Algarve, num caminho de liberdade delineado pelos seus maiores. E não esqueço sempre essa fidelidade à persistente capacidade de fazer da experiência vida. Quando o meu irmão Francisco iniciou as suas lides médicas, nos tempos heroicos das periferias, foi com o Doutor Serra que deu passos decisivos, conhecendo o modo de arar a terra, que o mesmo é dizer, na profissão clínica, lidar com as pessoas concretas e a sua vida irrepetível. E foi esse o seu ensinamento maior – não há doenças, mas doentes, não há horas, há pessoas que se conhecem olhos nos olhos.
UMA OBRA RICA E PLURAL A Antologia percorre a obra do poeta: Romance Residual (1991), A Desordem na Harmonia (1992), Mosaico de Palavras Oblíquas (1996), Sobreposições (2001), A Sombra do Silêncio (2005), Olhar das Palavras (2007), Labirinto de Memórias (2009), Pomar de Pedras (2011), Miradouro do Tempo (2013), Arquipélago de Vozes (2015) e As Margens dos Rios de Horas (2017). Os temas são diversos e recorrentes, numa renovação permanente: a natureza, as pessoas, o mar, o mundo, a cidade, o amor, Coimbra, o Algarve, Albufeira, os amigos, as palavras, a saudade, a liberdade, o sonho, a História. E em fundo: “A praia, / Fímbria de seda / Borda-lhe o rosto, / A pulular de voluptuosas ninfas / A fazer inveja / À Ilha dos Amores” (p. 241). E lembro-me de ver o movimento sincronizado dos pescadores, com as suas vozes compassadas (como Raul Brandão descreveu) a arrumar os barcos, com os grandes olhos fenícios a ver-nos. As vozes dos pregões e das lotas tornavam-se ali seguras e comandos de alerta. E o cheiro a maresia misturava-se com o do alcatrão que calafetava o fundo das embarcações. “Que terra é esta / Que o sol nos elegeu / Para deslumbrar / As férias curtas / Que a morte / Dá à vida?” (p. 383). E, ao ler o Diário de Miguel Torga vislumbro anónima, aqui e acolá, a presença discreta do médico-poeta, como em 8 de agosto de 1987: “Algumas horas de aconchego amigo no deserto afetivo em que o Algarve se transformou. Os dias de praia são provisórios e, por isso, fúteis e desatentos, Quem vem, vem para repousar das suas responsabilidades humanas”. Mas acrescentava que as “Almas sensíveis e solidárias (…) nunca estão em férias da vida” (vol. XV).
AH TERRA BEM-AMADA Não esqueço o que Torga escreveu sobre o Algarve: “… Ah terra bem amada! / Bênção da natureza / Caiada / De pureza / E nimbada de saudade. / Algarve. Liberdade…” (Diário, vol. XIV, 27.7.1982). Foi através de Santos Serra que conheci pessoalmente Miguel Torga, e nunca esquecerei esse momento único – num dia em que falámos de Portugal e da História, desde D. Dinis e de D. Pedro das Sete Partidas até ao reencontro com a liberdade, no 25 de abril. E oiço agora o poeta de Arquipélago de Vozes a falar do seu amigo Miguel Torga: “Lembro-me de O ver / Em Santa Eulália praia / A divagar sobre homens feitos / E homens por fazer // Alto, magro de olhos fundos, / A voz tinha o timbre dos profetas / O discurso a profundeza dos mistérios / E a magia encantatória dos poetas” (p. 346). E eu talvez fosse, nesse tempo já distante, um dos jovens aprendizes que bebiam “as palavras poliédricas / De consoantes duras e límpidas vogais”. E lembro-me ainda dos ecos de Fogo Preso (1976), em que Torga dizia que “a desgraça é que na maioria dos casos, a abnegação é uma pura perda”. E invocava os exemplos de Herculano, Antero e Oliveira Martins… Para o autor de Antologia: “a poesia é o mundo ficcionado pela imaginação com raízes nas emoções continuamente destiladas em sonhos acordados”. Assim amou o Algarve, terra onde o mar abraça a terra. “A navegação foi a grande / Invenção do Homem / Para poder andar de pé sobre as ondas do mar” (p. 456). Por isso, o Infante para aqui veio. É certo que o sonhador, o cidadão exemplar que conheci foi endurecido pelas injustiças do mundo – mas continuou sempre a recusar a “arte manhosa / De administrar a cidade / Em proveito de alguns tiranos” (p. 454)… Não esquecerei a sua lição e imagino-me a seu lado, silenciosamente, num dia de Levante: “Ali diante do mar / Respiro fundo o ar quente / Do Suão do oriente / Sopro de contos mistério” (p. 471).
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Continuando o rosário de observações e lembranças encetado em textos anteriores, acrescentarei mais algumas que, tal como sempre, procuro tornar mais propostas de curiosidade e interrogações do que afirmações conclusivas ou referências dogmáticas. Aliás, nem pretendo escrever história, o título destas crónicas é o de um livro que vos convido a ler, sendo, para mim, uma interrogação sobre como me (nos) poderei (poderemos) tornar mais cristão sendo mais católico.
Assim, quanto à construção teológica e canónica do sacramento da ordem - sobretudo no tocante aos poderes que atribui e à sua exclusividade sacra -, ocorrem-me algumas perguntas radicalmente ligadas ao conceito de sagrado no cristianismo. Parto do princípio de que o leitor conhece, tal como eu mesmo ou qualquer leigo interessado, a chamada "doutrina do magistério eclesial"(ou, melhor dizendo, eclesiástico), pelo que procederei sem a invocar, limitando-me a formular interrogações advenientes. Todavia, não deixarei de recordar trechos da tradição da fé cristã, bem como passos dos textos neotestamentários que parecem melhor enquadrar as minhas propostas de reflexão.
Há muito que pensossinto que o conceito inspirador do Corpo Místico é fulcral para o entendimento, não só do cristianismo original, como da sua evolução ecuménica e católica, designadamente através da diáspora judaica e helenística. Mais ainda: ele finalmente ilumina e anima, por um percurso de séculos, a orientação fundamentalmente mais cristã da Igreja, entendida como a comunhão de todos os fiéis (dos que têm fé). Compreendamo-lo lendo este trecho da epístola de S. Paulo aos Efésios (4, 11-16) : E Ele próprio providenciou que uns sejam apóstolos; outros, profetas; outros, anunciadores da boa nova; outros, pastores e professores, com vista ao aperfeiçoamento dos santos [assim eram designados os fiéis, na tradição judaica], até que atinjamos todos a unidade da fé e o conhecimento do filho de Deus e até que atinjamos o estado de homem realizado e a medida da estatura da plenitude de Cristo, para que já não sejamos crianças, batidos pelas ondas e levados por todo o vento da doutrina na batota das pessoas, na iniquidade com vista ao planeamento do equívoco; porém, ao sermos verdadeiros em amor, cresçamos em direção a ele em relação a todas as coisas, Ele que é cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, ajustado e unido através de todo o ligamento da provisão (segundo a eficácia na medida de cada membro), efetua o aumento do corpo com vista à sua própria edificação em amor. A tradução, do grego, é de Frederico Lourenço.
A celebração eucarística da comunhão de todos com Cristo, por Cristo e em Cristo é efetivamente o sacramento essencial da morte e ressurreição de Jesus, a reconciliação da humanidade consigo mesma e com Deus, de que a Igreja é memória, testemunho e corpo. E tal celebração é sempre o ato sacerdotal por excelência, o próprio Jesus Cristo convida a comunidade inteira a realizar com Ele. Quando, na epístola aos hebreus, se afirma que por conseguinte, tendo nós um grande sumo sacerdote que atravessou os céus, Jesus, o filho de Deus, fortaleçamos a fé professada. Pois não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas: foi provado em todas as coisas à nossa semelhança, excetuando o pecado. Aproximemo-nos, portanto, com liberdade do trono da graça, para que recebamos misericórdia e encontremos graça para uma ajuda em boa hora. (Hebreus, 4, 14-16). Ou ainda: Este é o sumo sacerdote que nos convinha: santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado acima dos céus, que não tem necessidade, como os outros sumos sacerdotes, de oferecer vítimas todos os dias, primeiro pelos seus próprios pecados e depois pelos do povo. Pois ele fê-lo de uma vez por todas, oferecendo-se a si mesmo. A lei institui como sumos sacerdotes homens detentores de fraqueza, mas a palavra do juramento, que veio depois da lei, constitui o filho perfeito para sempre. (Hebreus, 7, 26-28)
Chegamos aqui a um ponto de reflexão que muitos dos meus leitores poderão achar insólito, talvez despropositado: que terá a ver o sagrado com a religião cristã? Fará sentido haver, nos templos cristãos um "santo dos santos", um lugar sacro, apenas habitado pela divindade, e em que só pessoas autorizadas podem privar? Será o sacerdócio uma ordem - tal como era no judaísmo e noutras religiões - ou será, antes, próprio do povo dos fiéis, por união ao único sumo sacerdote, no corpo místico? Sou levado a refletir na hierofania (ou manifestação do sagrado), no cristianismo, como celebração de uma memória, algo, aliás, alheio a qualquer magia. Na nascente da religião cristã está a memória da encarnação, morte e ressurreição de Jesus, desse ato único da presença de Deus na história da humanidade, em que o Santíssimo (solus sanctus, hagios) vem revestir-se da nossa condição e para sempre permanecer connosco no seu Corpo Místico, e pela ação do Espírito Paráclito. O sagrado (sacer, hieros) habita entre nós, não por obra ritual, nem sacrifício, nem magia do poder de qualquer ungido - mas apenas em virtude do único sacrifício redentor que é a morte e ressurreição de Jesus Cristo, que incessantemente comemoramos na celebração da eucaristia, ceia sempre festiva da reconciliação e da partilha do pão da vida, por todos, pois por todos Jesus ofereceu o corpo e a vida, vencendo finalmente a morte.
O sagrado, em muitas religiões, como na aceção geral, tanto convoca a adoração como a interdição, o tabu. Tocar no sagrado é, então, algo que vai da blasfémia à profanação. Profanar é tornar profano, dessacralizar ou, mais correntemente, macular o inefável.
Mas também será possível alguém profanar-se, no sentido de tocar algo de interdito, porque maculador: por exemplo, um cadáver.
Não necessariamente humano, como nos conta o estatuto de pária, a que são reduzidas pessoas ostracizadas por lidarem com o abate de animais ou o aproveitamento da sua pele (caso dos curtidores), etc. No Japão futurista, por exemplo, ainda hoje há quem conserve registos de pessoas e famílias que exercem ou exerceram essas profissões, para as banirem de qualquer possível relação familiar ou laboral; a esses excluídos se chama burakumin. Casos semelhantes se encontram noutras regiões e religiões da Ásia.
Reiterando lembrança de que não pretendo fazer nem ciência nem doutrina, mas tão somente acordar ou estimular reflexões, direi que, da minha leitura dos textos neotestamentários, ressalta que o cristianismo mais próximo do ensino de Jesus Cristo, me parece o mesmo ser uma dessacralização - se assim, ainda que em termos pouco hábeis, me posso exprimir - da religião enquanto relação do humano ao divino. O Evangelho, a Boa Nova, é a do regresso do Verbo inicial, a vinda de Deus, em Jesus Cristo, para o meio de nós, simultaneamente anúncio do advento final do fim dos tempos, quando cada um será julgado, não conformemente a qualquer código de ritos ou obrigações canónicas, mas em função do seu esforço de proximidade àqueles a quem deu de comer e beber, visitou e consolou na aflição, acompanhou e fortificou na paz... O sagrado, memória e construção do Corpo de Cristo, é, afinal, obra de todos nós em comunhão com Ele, e em cumprimento do único mandamento, o tal que tudo encerra: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei, e será perfeita a vossa alegria.
Ocorre este ano o centenário da morte do arquiteto Ventura Terra (1866 – 1919). Já por diversas vezes aqui referimos o muito que se lhe deve na renovação da estrutura arquitetónica das salas de espetáculo a que esteve ligado, pela conceção original dos edifícios e também na renovação e atualização de outros teatros que histórica e cronologicamente o antecedem.
Designadamente, referimos, em artigos diversos, tanto o Teatro Politeama, como sabemos em plena atividade, ao qual voltaremos, e o Teatro Club de Esposende, este projetado em 1908 por Ventura Terra, inaugurado como teatro em 1911 e convertido em Museu Municipal em 1993, segundo projeto de adaptação do arquiteto Bernardo Ferrão.
Trata-se de um edifício de notável qualidade, na fachada estreita em arco, dominada por varanda. Em boa hora a Câmara Municipal o conservou e reconverteu, mantendo a vocação cultural.
Ora, é de assinalar desde já que Ventura Terra transcende e aplica a sua criatividade em sucessivas criações arquitetónicas de espetáculo e de convívio público. O que incluiu especificamente a reestruturação do próprio Teatro de São Carlos, exemplo incomparável em Portugal da arquitetura das salas de espetáculo.
Deve-se efetivamente a Ventura Terra obras de modernização do edifício, com destaque para a primeira grande obra de restauro do setecentista Teatro de São Carlos, inaugurado em 13 de junho de 1793 com a ópera “La Ballerina Amante” de Domenico Cimarosa: traçou diversas alterações a este teatro, modelo das casas de espetáculo da época.
Designadamente, nas obras de restauro efetuadas em 1908, alterou o grande foyer de entrada do Teatro e as pinturas do teto, que se deviam a Cyrilo Volkmar Machado. Mas mais relevante até hoje é a restruturação do interior, e designadamente do chamado Salão Nobre, belíssima sala de produção musical e de convívio.
E é de assinalar que, nesta avaliação de projetos de salas de espetáculo, encontramos Ventura Terra nas comissões que avaliaram os projetos de restauro do Teatro São João do Porto e do Teatro- Circo de Braga. Já ambos aqui referimos.
Como aliás já referimos a notável recuperação do chamado Teatrinho do Palácio da Brejoeira de Monção, onde se concilia a sala de pequenas dimensões, cerca de 50 lugares, com a magnitude do Palácio, desta forma valorizado também na dimensão cultural do espetáculo.
Voltaremos a evocar Ventura Terra, designadamente a propósito do Teatro Politeama: e esse, como bem sabemos, mantem-se em plena e pujante atividade!
LII - NÃO AO COMPLEXO DE INFERIORIDADE LINGUÍSTICO (V)
Exemplos mais recentes podem exemplificar esta indiferença ou omissão linguística que tantas vezes implementamos.
Em agosto de 2013, na National Gallery de Dublin, Irlanda, tentaram disponibilizar-me um áudio-expositivo, em castelhano, dada a minha nacionalidade e a ausência em português, com a observação: “Sir, please, but we have spanish!”[1]. Optei pelo inglês, lamentei a omissão, expus as minhas razões, reclamei por escrito, com a anuência e colaboração duma interlocutora irlandesa.
No dia anterior, no início da visita à “Guiness Storehouse”, foi o “espanhol”, uma vez mais, o idioma aconselhado, num opcional roteiro em grupo, por falta de guias em português, o que educadamente (eu e família) recusámos, não deixando de argumentar que a omissão da nossa língua não é suprida pela sugerida, nem dela dependente ou seu dialeto, por muito respeito que nos mereça. Fizemos a visita com a vantagem de nos ter sido dado na bilheteira um mapa informativo do percurso em português. Versões em português existiam ainda na Catedral da Igreja de Cristo (Christ Church Cathedral) e de São Patrício (St Patrick`s Cathedral).
Todavia, em Abril de 2014, em Copenhaga, Dinamarca, nos passeios turísticos de autocarro e barco, as informações eram em dinamarquês, inglês, alemão, castelhano, italiano, polaco, sueco, russo, japonês e chinês. Nunca em português.
Observam-se progressos, como na gala da Fifa, em Zurique, Suiça, em Janeiro de 2014, onde Cristiano Ronaldo falou e agradeceu em português, ao ser tido como o melhor futebolista do mundo de 2013 recebendo, pela segunda vez, a Bola de Ouro (Pelé, ao receber a Bola de Ouro de Honra, pela sua carreira, falou inglês), ao invés de 2008, em Paris, onde se expressou em inglês, ao receber, pela primeira vez, o mesmo troféu. Acrescente-se a abertura em português de um sítio na net pela Fifa e o acesso à biblioteca digital mundial, em sete línguas (árabe, chinês, inglês, francês, castelhano, russo e português), usando o critério do número global de falantes à escala planetária. Para quando esclarecimentos e legendas em português em CD e DVD de música clássica e ópera?
Merece referência o testemunho de Carlos do Carmo quando recebeu um Grammy Latino de Carreira, em 19.11.2014, em Las Vegas, onde decidiu falar em português, após observar algo que era embaraçoso para ele: todos falavam em espanhol. E acrescenta: “Fiquei até dececionado com um artista que admiro muito, o Ney Matogrosso, que de repente pega num papel, começa a ler e… fala em espanhol. Porquê, se ele vem de um país onde 200 milhões de pessoas falam português? O português é uma das quatro ou cinco línguas mais faladas no mundo, porque é que vou estar aqui encolhido a falar uma língua que não é minha, mesmo que a consiga dominar?”.
Progressos pontuais que não justificam o conformismo e indiferença de muitos portugueses e outros lusófonos, sejam emigrantes ou turistas, menos ainda quando no nosso próprio país.
Respondo-te, surpresa pelo teu contacto, como quem ante o teu rosto, regressasse da tua própria ausência. E sim, sabemos todos uns dos outros. Escrevemo-nos e vamos falando e quando possível estamos juntos. Nunca todos, a Leonor, o Miguel, nem sequer moram cá, contudo, quando falamos, a memória ajuda-nos a adquirir meios de conhecermos a razão de hoje sermos do modo que cada um é; de nos aceitarmos, ou não, dos outros nos quererem, ou não, com o que temos dentro. Falamos mais de vidas e ideias concretas e já não tanto de ângulos ideais, presença protetora ao desejo do acontecer do então. Como bem sabes, em seu tempo, quisemos crer que o mundo era aquele, aquele das transgressões e das batalhas decisivas onde tudo se passava nas estradas dos astros e das esferas por decifrar - a tua jovem mulher bem o intuiu, e, por ti, desconexa, adoeceu do teu viver.
Hoje, curiosamente, entre o nosso grupo, teve lugar uma religação, se assim lhe posso chamar, como se todos soubéssemos bem que desde a adolescência conjunta, o caminho de cada um se fez daquele modo que habitou todos, tecendo desgostos, alegrias, doenças, separações, mortes, profissões, verdades, furiosas mentiras, filhos a chegar e a partir, paixões, sensualidades, amores, e, afinal, a nossa pertença ainda é hoje nua à mercê do deslumbrar-se. Esta a tal religação ao passado que se despertou ao nosso peito de agora e que te queria referir. Enfim, tudo quanto me dizes Pedro L., não altera em nada o desejo de todos pela oficina secreta que consertasse os mistérios que se nos abrissem rotos de futuro; não altera em nada a força do teu encanto - só frágil de aparência - com que amavas a Leonor, não desconhecendo tu os teus sentires cheios de angústias, que, necessariamente, nela encontrariam tão inocente colo. Disse-me um dia a Leonor, que tinha sido preciso amar-te muito para entender que a tua fantástica modernidade estava refém de uma espécie de seita religiosa que vos levaria a nenhuma vida em vós poder perdurar, e mais, tudo terias feito para que a dor que lhe causaste expressasse bem a tua clara definitividade de a afastar.
Pedro L., bem sabes que do passado te falo pois me questionas como se acaso não me fosse claro que bem dominavas o esfriar e por essa razão vencerias sempre. Também hoje sei que a tua permanente depressão era tão forte quanto a tua sedução, ambas, juntas, fariam muito mal a quem acreditasse nos teus beijos. Na realidade, afastaste brutalmente a Leonor da tua vida, não vejo pois razão para ser eu a dar-te o seu contacto.
Queria ainda dizer-te que o Miguel nunca se considerou teu amigo. Achava-te demasiado polido na tua profissão para ser verdade a tua devoção a ela. Já o Nuno sempre gostou de ti, sempre te admirou, e tanto mas tanto que te seguiu as pisadas, na mesma universidade, dois anos mais tarde. Saberás porquê? Creio que sim. Ele diz que sim. A Beatriz adorava-te e ele copiando o teu estar haveria de a conquistar.
Pedro L., esta, uma carta de época, adequada à que me enviaste. De dizer-te ainda que de ti não tenho uma nova noção, sei apenas que no limiar estamos todos, e, ainda que perigosamente me deixe surpreender, aceito o café que me sugeres no nosso velho refúgio de Óbidos.
Termino a longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Temas importantes de hoje: a reforma da Igreja, erros cometidos e a confissão, acusação de heresia, o diálogo com o islão, o desejo de ir à China, quanto tempo ainda de pontificado?
2.15. Francisco e a reforma da Igreja. A jornalista: “Qual é a coisa mais bonita que julga ter feito?” “O mais bonito para mim é, foi e é sempre estar com as pessoas, que queres que te diga? Eu renasço quando vou à praça (Praça de São Pedro), quando vou a uma paróquia. Às prisões..., estar com as pessoas. Sim, sou Papa, sou bispo, fui cardeal..., isto tudo pode cair, mas, por favor, não me tirem o ser padre, cura.”
Erros? “Erros há sempre. Confesso-me todos os 15 dias, o que significa que cometo erros.” A jornalista: “E são confissões longas ou curtas?”. Francisco: “A curiosidade feminina!, ‘the human touch’! “Como reagiu a essa de o acusarem de herege?” “Com sentido de humor, filha”. A jornalista: “Não lhe dá muita importância?” Resposta: “Não, não, rezo por eles porque estão equivocados, por vezes, pobre gente, alguns são manipulados. Vi quem eram os que assinavam... Não, a sério, sentido de humor e eu diria, ternura, ternura paternal. Quer dizer, isso não me fere minimamente. A mim o que me fere é a hipocrisia, a mentira.”
A jornalista: “E com a sua reforma tem a sensação de que estamos...” Resposta: “A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram. Isto é assim, tal qual. As pessoas têm vontade de reformar. O esquema de corte tem de desaparecer. Foram os cardeais que o pediram. Bem, a maioria, graças a Deus.” A jornalista, referindo o caso de Maciel, fundador da Legião de Cristo, observou que o Papa João Paulo II tinha “obstaculizado essas reformas...”. Resposta: “Por vezes, enganaram João Paulo II.” No caso de Maciel e dos Legionários, “Bento XVI foi corajoso. E João Paulo II também. Quanto a João Paulo II, é preciso entender certas atitudes, porque vinha de um mundo fechado, a cortina de ferro, ainda estava vigente o comunismo lá... E havia uma mentalidade defensiva. Temos que compreender bem, ninguém pode duvidar da santidade desse homem e da sua boa vontade. Foi um grande.”
2.16. Geopolítica e islão. Pergunta a jornalista: “Qual é a sua estratégia face ao islão? Sente-o como uma prioridade neste momento?” Francisco: “Penso que sim. De facto, vou aos bairros em Roma, às paróquias e vêm, dizendo: ‘sou muçulmano’, ‘sou muçulmana’. Vêm saudar-me ou estão com o véu. Ou seja, o islão entrou na Europa outra vez, sejamos realistas, o islão é uma realidade que não podemos ignorar.” Também na África, há bispos que contam que há muçulmanos que vão rezar ao altar de Nossa Senhora. “Creio que somos irmãos, vimos todos de Abraão e nesse aspecto sigo as linhas do Concílio: estender as mãos aos judeus, aos islâmicos, estender as mãos o mais possível.”
Francisco reconhece a evidência de que “o islão está de modo muito forte ferido por grupos extremistas, por grupos intransigentes, fundamentalistas. Também nós, os cristãos, temos grupos fundamentalistas, pequenos grupos fundamentalistas, que obviamente não são guerrilheiros. Conclusão: é preciso ajudar os muçulmanos com a proximidade para que mostrem o melhor que têm, e esse melhor não é precisamente o terrorismo.” Está aí “o grande tema dos mártires cristãos...”, observa a jornalista. E Francisco: “Sim, e bastam pequenos grupos para causar desastres”.
Neste contexto da cristianofobia e da paz, chega a notícia do convite oficial para que o Papa visite o Iraque, o que poderá acontecer já em 2020: “Tenho a honra de convidar oficialmente Sua Santidade a visitar o Iraque, berço da civilização e lugar de nascimento de Abraão”, escreveu o presidente iraquiano, Barham Salih, numa missiva ao Papa. É sabido que aí, ao longo dos últimos anos, o número de cristãos passou de 1.5 milhões para uns 500 mil.
Ainda neste domínio, é necessário relembrar o que Francisco também tem sublinhado em ordem a este diálogo e à paz. Em primeiro lugar, também o islão tem de aprender o que custou à Igreja Católica, mas aprendeu: a leitura dos textos sagrados, no caso dos muçulmanos, do Alcorão, não pode ser literal, mas histórico-crítica. Por outro lado, é essencial salvaguardar a laicidade do Estado, isto é, a separação da religião e da política; por outras palavras: o Estado deve ser laico, não pode ter uma religião oficial; o Estado tem de ser confessionalmente neutro, para garantir a liberdade de todos. Sem a laicidade, não se supera a chamada capitis diminutio, isto é, a diminuição de cidadania dos cidadãos que não seguem a religião oficial. Dois princípios fundamentais.
E, evidentemente, Ahmed al Taleb, o Grande Imã da Mesquita e Universidade Al Azhar, no Cairo, com quem o Papa Francisco assinou, em Abu Dhabi, a histórica Declaração “A Fraternidade Humana”, a que aqui fiz longa referência, não pode continuar a aprovar que se bata na mulher “sem lhe partir um osso”: “Não deve partir-lhe um osso nem provocar danos num órgão ou membro do seu corpo nem tocar-lhe com a mão na cara nem provocar-lhe feridas nem causar danos psicológicos.”
Ainda no quadro da geoestratégia, Francisco confessa que o seu sonho é a China: “o meu sonho é a China. Gosto muito dos chineses.” Apesar das críticas, já que a perseguição não acabou, saúda o acordo com a China, para superar a dualidade da Igreja unida a Roma e a patriótica. “Agora, os católicos fruem o estar juntos. Com toda a política exterior dos pequenos passos, alguns sentem-se fora, isso é verdade, mas é a minoria. De facto, celebraram a Páscoa todos juntos, todos juntos e em todas as igrejas, este ano não houve problemas.” “Leva-nos à China?”, perguntou a jornalista. “Ficaria encantado. Para si vai ser a viagem número...”.
2.17. Quanto mais tempo ainda como Papa? A jornalista: “Lembra-se de que há quatro anos me dizia: ‘é que eu tenho a sensação de que o meu pontificado vai ser breve, dois, três, quatro anos...’, e já estamos, felizmente, no sexto.” Francisco: “E eu tenho a mesma sensação.” A jornalista: “Já passaram seis anos, já não é tão curto.” Francisco: “Mas também não pensemos em 20.” A jornalista: “Bom, em 20 talvez não, porque tem 82. Mas nos 100 anos...”. Resposta: “Está bem.”
A jornalista: “Recordo que também me disse que o que mais estranhava era como Papa não poder sair às escondidas para comer uma pizza, lembra-se? Já conseguiu fazer isso?” Francisco: “Não. Em Roma do que mais tenho saudades é de sair para comer uma pizza... Não, não o fiz. É uma coisa a que tenho de renunciar. Porque em Buenos Aires ia. A mim a rua diz-me muito, aprendo muito na rua.”
3. E a gente fica com a sensação de que Francisco, no meio de todas as crises por que passam a Igreja e o nosso mundo, é uma bênção para a Igreja e para o mundo. E compreendemos também o diálogo, no seu breve encontro com o Padre Ángel, o profeta dos pobres, presidente da ONG “Mensageiros pela Paz”, no Panamá, aquando do encontro da juventude: “Como estás?”, perguntou-lhe o Papa. Resposta: “Vou bem, apesar dos problemas. E tu, Francisco?” E Francisco: “Sobre os meus problemas, nem te falo.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 14 JUL 2019
FOLHEANDO REVISTAS ANTIGAS DE QUADRADINHOS (IV)… 16 de julho de 2019
Falámos talvez pouco de Hergé (1907-1983). Ele é o herói. A revista que hoje vos trago é de 1966. O fenómeno de sucesso ocorre essencialmente depois dos anos quarenta e cinquenta, graças aos continuados do journal Tintin e à nova apresentação das aventuras do jovem repórter em álbuns muito cuidados quer no tocante à qualidade do argumento, das ilustrações e do colorido. Hergé teve a intuição e a sabedoria, o talento e a arte, de compreender que era necessário criar um estúdio profissional servido de uma equipa de elevadíssima qualidade. Já referimos o papel desempenhado por E. P. Jacobs e por Jacques Martin, entre outros, o que permite verificar não haver comparação entre as versões originais do “Petit Vingtième” e os álbuns coloridos, que irão conhecendo aperfeiçoamentos. Mas para que tudo isso fosse possível é preciso voltar a citar Raymond Leblanc (1915-2008), o editor de visão larga que acreditou em Hergé e construiu uma máquina de grande eficácia que lançou o herói da BD… A chegada à Lua de Tintin é reconhecida hoje como dos exercícios mais rigorosos de ficção científica, uma pérola de antecipação… De Gaulle afirmou que só tinha um concorrente internacional, que se chamava Tintin. A literatura francesa e mundial incorporam a figura de Tintin. François Mauriac lamentou, porém, os gostos da geração Tintin, mas enganou-se redondamente, uma vez que não só líamos Tintin, mas também nos preparávamos para ler Thérèse Desqueyroux… O tema da imagem entrava na ordem do dia – no cinema, na fotografia, na banda desenhada – e não largava a importância da narrativa… E Edgar Morin disse em 1958: “Tintin sauvegarde la liberté illimitée du rêve de l’enfance, mais en orientant vers les rêves déjà socialisés du cinéma d’aventure pour adolescents et adultes (…) dans les rapports imaginaires de Tintin, le petit super-boy est roi »… Mas havia mais : Blake e Mortimer eram a melhor introdução aos melhores policiais. Alix Graccus na companhia do jovem egípcio Enak levava-nos para os clássicos da República Romana. Albert Weinberg (1922-2011) fazia-nos entrar no mundo da aviação de vanguarda com Dan Cooper, antecâmara da ficção científica, Jean Graton levava-nos para o automobilismo, e a lista é muito longa: Modeste e Pompon (Franquin), Oumpah-Pah (Uderzo e Goscinny), Corentin (Cuvelier), Bob e Bobette (Vandersteen), Chick Bill (Tibet), Pom e Teddy (Craenhals), Jari (R. Reding), Ric Hochet (Tibet e Duchâteau), Guy Lefranc (com a marca indelével de J. Martin), Le Chevalier Blanc (L. e F. Funcken), Spaghetti (Dino Attanasio), Clifton (Macherot), Taka Takata (Jo-el Azara), Bernard Prince (Hermann), Bruno Brazil W. Vance), Cubitus (Dupa), Olivier Rameau (Dany), Luc Orient (Eddy Paape)… Mas nesta imensa lista, não podemos esquecer Greg o argumentista inesgotável, a aparecer em toda a parte, com uma prodigiosa imaginação.
Eis o ponto onde ficamos. Mas não esquecemos os nossos grandes como Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), Fernando Bento (1910.1996), Vítor Péon (1923-1991), José Garcês (1928) ou José Ruy (1930)…, mas esses contos serão outros aos quais regressaremos…
Para terminar hoje, cito um belo poema do meu Amigo Ruy Belo – «Portugal Futuro»…
O portugal futuro é um país aonde o puro pássaro é possível e sobre o leito negro do asfalto da estrada as profundas crianças desenharão a giz esse peixe da infância que vem na enxurrada e me parece que se chama sável Mas desenhem elas o que desenharem é essa a forma do meu país e chamem elas o que lhe chamarem portugal será e lá serei feliz Poderá ser pequeno como este ter a oeste o mar e a espanha a leste tudo nele será novo desde os ramos à raiz À sombra dos plátanos as crianças dançarão e na avenida que houver à beira-mar pode o tempo mudar será verão Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz mas isso era o passado e podia ser duro edificar sobre ele o portugal futuro
“Terra de Ninguém 1981-1995” é o catálogo da Exposição individual realizada em 1996 na Fundação C. Gulbenkian, dedicada a Gaëtan, com textos de Jorge Molder e Manuel de Castro Caldas, além da biografia e de bibliografia – onde se reconhece a originalidade e a força da obra do autor que agora nos deixou.
UM TEMPO QUE EVOLUI DEPRESSA Quando traduziu “O Tempo Envelhece Depressa” de António Tabucchi, Gaëtan deixou a expressão exata de um percurso rico e multifacetado, no qual sempre foi um interrogador: o tempo dos acontecimentos que cada um vive ou está a viver confronta-se permanentemente com o tempo da memória ou da consciência. E, de algum modo, a atitude que o artista assume na sua criação pressupõe este confronto. Não se pense, pois, que a autorrepresentação repetida ao longo de uma obra muito rica significou uma preocupação consigo próprio. Não. A cada passo encontramos o seu rosto como espelho de outros rostos e modo de compreender plenamente que é na relação com os outros que se manifesta plenamente a dignidade humana. Há, pois, a presença do rosto como espelho das almas. Os outros são sempre o princípio e a continuação de nós mesmos, a outra metade… Como disse João Pinharanda: estamos perante “máscaras que Gaëtan coloca, não sobre o seu rosto, mas em frente do seu rosto? De qualquer maneira, são um Outro”. E quando lemos Emmanuel Lévinas sobre a importância do rosto, compreendemos melhor o significado da obra de Gaëtan. De facto, é a responsabilidade para com os outros, tão importante para o filósofo francês, que se manifesta. E a ligação entre o pensamento, a literatura e a representação gráfica e artística é decisiva para Gaëtan já que aí encontramos referências desde o Padre António Vieira até Truffaut ou Jacques Demy, nos vários domínios em que trabalhou, em especial o da edição, uma vez que trabalhou na extinta Ulisseia e assinara traduções de autores, além de Tabbuchi, como Marguerite Yourcenar, Italo Calvino ou Bruno Zevi.
UM MARCO DECISIVO… Não podemos, de facto, esquecer a exposição antológica "Terra de Ninguém", que a Fundação C. Gulbenkian dedicou a Gaëtan, em 1996, assim como o facto de ter incluído o seu trabalho, "inúmeras vezes", em mostras permanentes da coleção e em exposições coletivas, "tornando assídua a força inquieta da personalidade culta e delicada" do artista. Uma força que deve destacar-se na sua obra, mas também quando “dirigia um sorriso, uma observação, uma vontade genuína de empatia". Em 1981, Gaëtan centrou-se no desenho, que passou a tratar de modo continuado, aprofundando as variações sobre o mesmo tema, que era o seu rosto, como pretexto de trabalho. Olhando a obra multifacetada, refira-se que participou na XXI Bienal de Paris (1980), na mostra "Depois do Modernismo", na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa (1983), em "Tríptico", no Museum van het Hedendaagse Kunst, em Gent (1991), na Bélgica, em "Drawing Towards a Distant Shore: Selections from Portugal", no The Drawing Center, em Nova Iorque (1994). Expôs ainda no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, em Lisboa, em 2004, sendo reconhecido como “um dos artistas portugueses que mais recorreram ao desenho, praticando-o de forma quase exclusiva", lê-se na apresentação do Museu de Serralves. "Apostado em expulsar da sua prática quaisquer tiques de academismo, cedo decidiu que, sendo destro, passaria a desenhar apenas com a mão esquerda. "Esta recorrência ao seu rosto", como material de base, foi já descrita como "uma arte da fuga, composta de variações sobre o mesmo tema". "Os desenhos em que Gaëtan se retrata, e onde surgem pequenas mudanças mais ou menos percetíveis da sua face e do seu corpo (...) têm servido para eleger o tempo e a memória como os verdadeiros temas do seu trabalho". Daí a ligação com a reflexão de António Tabbuchi em “O Tempo Envelhece Depressa”. Saliente-se ainda que a Fundação Calouste Gulbenkian disponibiliza 'online' a reprodução de "Agnus Dei (olhos castanhos, camisa aberta)", uma das obras de Gaëtan, da sua coleção, assim como a série "Arte de Fuga”. Gaëtan está representado em coleções públicas e privadas, nomeadamente da Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação Luso-Americana, Caixa Geral de Depósitos, do Ministério da Cultura, da Fundação Carmona e Costa, do Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa, bem como no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto ou no Museu de Arte Contemporânea, no Funchal, entre outras instituições. Gaëtan estava a preparar uma exposição individual para a Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, que esperamos poder ver realizada.
UM CASO ESPECIAL Ao lado de Helena Almeida e Jorge Molder, Gaëtan apresenta a especificidade da representação de si mesmo como interpretação do mundo e como projeção do mesmo. Segundo a socióloga Anabela da Conceição Pereira, em “O Rosto da Máscara” (2013): “A singularidade, como observado, pode ser autoral ou biográfica. Embora, a singularidade exceda a autoria em muitos aspetos, dificilmente, um autor pode ser separado da sua corporalidade/identidade. Não há, por exemplo, autor sem um corpo que lhe corresponda. Contudo este (autor) continua a ser apenas um dos papéis desempenhados pelo ator (artista), ou na formulação de Foucault (1971) uma das funções sujeito. E, o reconhecimento é ao mesmo tempo singular (casos típicos) e social/artístico ou simbólico (representativos). As duas dimensões requerem formas de exercer o poder, como a criatividade e de o manter (durabilidade) como a legitimação, que pode ser intrínseca (qualidade da obra, originalidade, agência) ou atribuída (redes de reconhecimento, mediadores, mercado, etc.)”. De facto, olhando as diferenças e as aproximações entre Helena Almeida, Jorge Molder e Gaëtan percebemos a importância da perspetiva assumida pelos artistas, na qual é o diálogo com o mundo e a vida que está em causa – percebendo-se que a tensão especial assumida por Gaëtan “contra mundum” constitui um modo próprio de afirmação da humanidade como ato de sobrevivência.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Nicole Lemaître é professora de História Moderna na Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne e, ainda, docente no Institut Catholique de Paris. Como comentário e aditamento ao meu texto anterior - cujo título e tema este agora presente retoma - traduzo passos do que ela escreveu sobre o tema do Padre. Será longa a citação, mas os trechos seguintes certamente nos ajudarão a ter uma visão mais abrangente da temática e problemática do sacerdócio na Igreja:
O padre torna-se celibatário e modelo de cristão a partir do século XI. Toda uma defesa ideológica da sua perfeição pessoal acompanha periodicamente tal ser posto à parte, particularmente nos séculos XVI e XVII, quando a figura do padre se constrói por oposição aos pastores cismáticos e, posteriormente, entre 1800 e 1950, na peomoção eclesial duma sociedade perfeita. Mas no primeiro milénio as coisas não eram assim tão claras. Na origem, o enquadramento das comunidades era assegurado por ministros diversos, e o ministro encarregado dos serviços materiais e da assistência (diácono), servidor de todos, exercia um verdadeiro apostolado, e em caso algum era um «separado». Mas as primeiras comunidades também são hierárquicas: têm anciãos (presbíteros) à cabeça. São eles que guardam cada igreja e têm por missão apascentar o rebanho de Deus. Passadas as primeiras gerações, uma hierarquia a três filas é instalada: um bispo (epíscopo), pastor e presidente da comunidade, rodeado de presbíteros que os diáconos assistem. Mas não é necessário passar por todas essas etapas - São Cipriano tornou-se bispo sem nunca ter sido padre nem diácono: na verdade, o ministério põe-nos a todos ao serviço do sacerdócio de Cristo e, enquanto sucessores dos apóstolos, a todos qualifica para serem intendentes de Deus. Embora recebam a imposição das mãos, prosseguem todavia a sua vida normal, casam-se e exercem um ofício.
Não é meu propósito comentar sequer aquela instituição de "separado" ou "posto à parte" que, por outras palavras, se pode dizer "sectário". Ou ainda, no seio da mesma sociedade, "pertencente a uma casta". Todos poderemos entender como, em sociedades maioritária ou crescentemente cristãs, que procuram reorganizar-se depois da queda do Império Romano, e no advento de um mundo de senhores feudais, se pretendesse assegurar a independência das comunidades e autoridades religiosas pela invocação de inspirações, princípios e normas que acentuassem o carácter eminentemente religioso e divino dos mandatos das autoridades eclesiásticas em circunstâncias fás ou nefas, como, em contextos bem diferentes, diria o Embaixador Franco Nogueira. Na preocupação com o reforço do poder espiritual ou eclesial face ao político, numa cristandade que evolui em tempos e modos novos, a maior legitimidade divina do primeiro é princípio que conveniente e evidentemente se impõe, até como justificação da sua independência própria. Assim, a afirmação de um estatuto sacerdotal distinto e marcado será fator de existência política. A par dos ritos de iniciação e ordenação, dos sinais sacramentais e paramentais desenvolvidos, a exigência do celibato (não simplesmente da castidade, que é coisa também própria das relações matrimoniais) torna-se constitutiva da pessoa e da classe sacerdotal.
Paralelamente se irá desenvolvendo uma espiritualidade condizente, acentuadamente induzida pela ideia de vida consagrada ao serviço exclusivo das coisas de Deus. Tal sentido de serviço da caridade, incarnada em vidas como as do santo cura d’Ars - e tantas outras, ao longo de séculos e hoje ainda - ou em ficções tão profundamente inspiradas e tocantes, como Le Journal d´un Curé de Campagne, do Georges Bernanos, para falarmos só de casos de padres inseridos no drama das vidas quotidianas da gente comum (que todos nós somos), tal sentido do serviço evangélico e fraterno foi sendo a boia de salvação de uma Igreja que o clericalismo teimou entregar nas mãos da vaidade temporal e do autoritarismo soez. Recentemente, a canonização de frei Bartolomeu dos Mártires, o arcebispo peregrino das serranias nortenhas e suas gentes perdidas num Portugal esquecido, aviva-nos a memória da consciência cristã.
Mas todas essas espirituais exceções também nos convidam a repensar as regras de que se distinguiram. Fica para outra conversa.
Em Serralves, foi recentemente inaugurada a Casa de Cinema Manoel de Oliveira. Merece referência esta sala de espetáculos, a partir da homenagem que a designação contem. Pela vida, excecionalmente longa, pela obra, excecionalmente qualificada e como tal reconhecida, e pela projeção internacional que com toda a justiça alcançou.
Evoca-se pois a obra e a atuação de Manoel de Oliveira na adaptação e realização cinematográfica de peças e demais expressões de teatro. E há que atender à cronologia, não só do realizador/encenador (absolutamente excecional: 1908-2015!...) como também do conjunto de peças que transpôs, seja permitida a expressão, para a potencialidade cénica e cinematográfica.
E isto porque em rigor, a dramaturgia filmada e adaptada por Manoel de Oliveira assenta numa capacidade de espetáculo que tanto se molda à cena como à projeção: sendo certo que Manoel de Oliveira é sobretudo um criador de cinema.
E se considerarmos a cronologia, não tanto dos filmes como das peças subjacentes, encontramos desde logo um texto clássico: o “Auto da Muito Dolorosa Morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo” da autoria do Padre Francisco Vaz. Datado de 1559, portanto há exatos 460 anos, mas, ainda há relativamente pouco tempo representado em Trás-os-Montes, foi filmado por Manoel de Oliveira em 1963 no filme que denominou “Ato de Primavera”.
E é interessante constatar que a expressão dramática em si mesma é como que transposta para a expressão e criação cinematográfica, não obstante, note-se ainda por cima, a difícil dramaticidade deste longo texto.
Mas há mais textos de teatro adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira.
Desde logo, José Régio. “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça datada de 1947, e “Mário Ou Eu Próprio – O Outro”, esta datada de 1957, foram ambas filmadas por Oliveira: e quando escrevemos “filmadas” temos bem presente a recriação cinematográfica, digamos assim. E não é fácil transpor para a estética e sobretudo para a técnica cinematográfica um texto criado e vocacionado para a expressão teatral...
O que mostra a globalidade do sentido estético de Manoel de Oliveira no que se refere a espetáculo: com o circunstancialismo de que no cinema, a estética envolve e exige a técnica respetiva!
A sua excecionalmente longa vida permitiu portanto uma excecionalmente longa atividade: e merece referência especial a sucessiva adaptação de obras ligadas à criação literária. Já citamos Régio, mas também Camilo Castelo Branco, Agustina Bessa Luís, António Patrício, e sobretudo, o próprio Manoel de Oliveira, que tantas vezes se assume como escritor, ao criar textos que filmou...
Saúda-se pois esta iniciativa que consagra, num edifício do Arquiteto Álvaro Siza, a obra ímpar de um cineasta português, internacionalmente reconhecido e consagrado.