Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
LI - NÃO AO COMPLEXO DE INFERIORIDADE LINGUÍSTICO (IV)
Além da desautorização a que é votado o português em várias organizações, congressos, fóruns, encontros, eventos artísticos e desportivos internacionais começando, muitas vezes, pela omissão dos próprios lusófonos nos seus países, citaremos mais exemplos da inferiorização, tendo como referência o nosso país e algumas viagens ao estrangeiro.
Com alguma frequência nos deparamos com situações em que produtos importados, comercializados e distribuídos em Portugal são omissos quanto a instruções escritas em português, o que nunca deveria suceder, apesar do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 238/86, de 19/08, reconhecer “(…)que o crescente alargamento do mercado nacional a produtos ou serviços de origem estrangeira, quando não acompanhado pelo uso da língua portuguesa, inviabiliza na prática o exercício do direito à informação”, o que não impede que as omissões continuem, incluindo novas tecnologias de ponta, sem que nada aconteça, que se saiba, dada a sua repetibilidade, embora puníveis por coima.
Não obstante a indiferença do cidadão comum, no geral, não denunciando nem reclamando, por maioria de razão se censura a omissão dos entes fiscalizadores, já que deveria ser um dado adquirido que, sendo nós portugueses e residindo em Portugal, o direito à informação no nosso idioma é um direito fundamental. Direito (à informação) que também não funciona quando, por tudo e por nada, se usam expressões ou termos anglófilos, por vezes em exclusivo, eventualmente tidos como mais abrangentes e civilizados, apesar do provincianismo.
Se antigamente a regra era ter como melhor língua a do vendedor, por uma questão de prestígio, penso que atualmente não chega, pois apesar de dar prestígio, não dá negócio, havendo que inverter o padrão e defender que a melhor língua é a do comprador.
É incompreensível, por outro lado, que pelo menos até 2006, o nosso idioma estivesse ausente no Estado do Vaticano (desconheço se ainda em 2019), o que testemunhei em visita familiar, em julho/agosto, apesar de mais falado que o francês e alemão (aí presentes, a par do inglês e castelhano), tanto mais surpreendente quando o Brasil é o maior e mais populoso país católico. Em 3 de Agosto, em visita à igreja de Santa Maria Maggiore, em Roma, havia confessionários em italiano, espanhol, francês, inglês, alemão, polaco, checo, holandês, húngaro, latim, svensk (presumo que sueco), norsk (presumo que norueguês), slovensky (esloveno), ttiêng viêt (?), ttio (?)… Procurei o português e notei a ausência, confirmada por uma segunda procura. Sem duvidar que, por princípio, todas as línguas têm a mesma dignidade, porquê tal omissão, sendo os lusófonos em maior número e maioritariamente católicos, por confronto com os falantes da maioria das línguas aí representadas? Qual a influência e o protagonismo das instituições católicas, entes diplomáticos, governamentais, outras entidades e associações lusófonas, inclusive via CPLP, para alterar tais incongruências!?
Dia 31 de Julho de 2006. Visita não programada a Nápoles e Pompeia. A guia, italiana, falava inglês, francês, castelhano, holandês e, ao que suponho, japonês, mas não português. Manifestei o meu desagrado. Já o tinha feito quando interpelado a ter de escolher entre o inglês e preferencialmente o “espanhol”, dada a parecença deste com o português, atento o argumento usado. Optei pelo inglês, sugerindo-se a mais-valia em falar português, mais falado que o francês, italiano e alemão, para além do holandês e japonês, enumerando-lhe os países falantes, o que disse saber, acabando, no final, por pronunciar bom dia e obrigado. Sugeriu-se, por escrito, para a necessidade crescente dos guias falarem o nosso idioma, o que foi subscrito por quatro portugueses.
Em 21 de Agosto de 2006, numa breve estadia em Maiorca (Baleares), deixei uma reclamação/sugestão escrita no hotel, com o seguinte teor (em português): “Este hotel tem muitos portugueses. Mas esquece Portugal e a língua portuguesa. Fala-se italiano, francês, alemão, inglês, há livros em holandês, informações em polaco… Em português, há um canal de televisão. É pouco para um país vizinho de Espanha, a quem dá muitos turistas. Portugal não tem direito a uma bandeira na entrada do vosso hotel!... Incompreensível. Além disso, o português é mais falado que o francês, alemão, italiano, holandês e polaco. Espanha é mais bem tratada em Portugal. Pelo que vejo merece tratamento diferente. Não admira que muitas pessoas digam (e pensem) que Espanha tem uma mentalidade imperial e arrogante. Obrigado”.
Entreguei-a ao diretor, a quem observei ser gratificante para nós, portugueses, ouvir pronunciar um mero bom dia, boas férias, obrigado, muito obrigado, ou expressões equivalentes, em espetáculos ou eventos sociais, à semelhança de agradecimentos e cumprimentos noutras línguas, mas em que está ausente o português, quando era significativa a presença de turistas lusos.
Sensibilizei-o não fazer sentido tudo isto e a ausência da bandeira portuguesa, não só pela clientela lusa, mas também por sermos um país vizinho, sendo suficiente este último argumento por uma questão de boa vizinhança e proximidade. Ser uma mais-valia apostar no português, um idioma com futuro, havendo também que pensar no Brasil e demais países lusófonos.
Deu-me razão, que ia colocar a questão superiormente, ficando a promessa que a nossa bandeira iria ter presença num dos mastros do hotel, que iriam ser impressos livros com informação em português, além de entender os qualificativos da mentalidade espanhola (castelhana), por ser catalão, pedindo-me desculpa. No Natal desse ano, recebi em Portugal um postal de boas festas, onde me era comunicado, após reincidentes desculpas, que a nossa bandeira flutuava à entrada do hotel, havendo folhetos e livros informativos em português na receção e áreas comuns do interior.
Em julho de 2005, de visita à Catedral de São Paulo, em Londres, reclamei oralmente para a omissão de prospetos gratuitos e informativos para os visitantes em português, não o tendo feito por escrito, dada a ausência de recetor, segundo informação obtida.
Em agosto de 2010, na Turquia, num resort muito frequentado por portugueses, sugeri dever haver um canal de tv na nossa língua, algumas palavras em português em locais públicos de passagem comum e objetos de mesa, em paralelo com as de outros idiomas, o que ficou de ser estudado, dada a crescente procura de turistas nacionais.
A UNESCO considerou, que a morte de João Gilberto "é uma perda para o património cultural”
Não chega de saudade não! Não chegará nunca! João Gilberto e seu Violão ou o azul num frente a frente.
Vai minha tristeza E diz a ela Que sem ela não pode ser Diz-lhe numa prece que ela regresse Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade A realidade é que sem ela não há paz Não há beleza, é só tristeza e melancolia Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
(…)
“Chega de Saudade”, escrita por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, foi gravada por João Gilberto, em 1958.
O cantor e compositor, considerado o precursor do género musical Bossa Nova e grande responsável pela sua disseminação pelo mundo, vivia arruinado em miserabilidade e solidão no Rio de Janeiro. Assim li hoje.
E diz-se que os seus olhos nunca choraram pois apenas olhavam um para o outro.
Caetano afirmou sempre quequalquer músico brasileiro pós-1959 (há quem chegue até nos Beatles) foi reinventado por João Gilberto. A sua experiência alterou de forma irreversível nosso DNA musical.
Creio João Gilberto, que viveste sempre por um projeto de primavera com as horas absolutamente soltas pelas notas que teus dedos imprimiram nas cordas do teu violão: esse que tão bem conhecia teu saber antigo de fogo duplo. E tu, tempo que nunca se deteve, imortalizaste em nós as canções que nos fotografaram o coração. Tu, testemunha da condição natural do poeta: consciência de que o rio vital era por ali.
Álbum completo 2019 - João Gilberto Melhores canções de todos os tempos.
Dou sequência à longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Porque, se é verdade que é sempre espontâneo no contacto com os jornalistas, raramente o terá sido tanto. Cordial, tratando a jornalista por “filha”, a quem revela que é “um conservador”, mas que mudou.
2.7. Os de fora e os de dentro. A jornalista observa: “Há quem diga que o Papa parece gostar mais dos que estão longe do que dos seus”. Francisco: “É um piropo para mim. É um piropo, pois é o que Jesus fazia, acusavam-no disso. E Jesus diz: ‘Não são os sãos que precisam de médico, mas sim os doentes’. Eu não prefiro os de fora aos de dentro. Cuido dos de dentro, mas dou prioridade aos outros, isso sim.” É como numa família.
Acrescentou: “Alguns jornalistas acusam-me de que sou demasiado tolerante com a corrupção na Igreja; por outro, se carrego em cima dos corruptos, dizem que ‘lhes carrego demais’. Bonito. Assim, sinto-me pastor. Obrigado.”
2.8. E volta aos migrantes e refugiados, observando a jornalista que há quem o acuse de “falar muito mais deste tema do que dos temas, dos valores que antes se dizia serem valores irrenunciáveis do catolicismo como a defesa da vida.”
Francisco: “Porque é uma prioridade hoje no mundo. Todos os dias recebemos notícias de que o Mediterrâneo é cada vez mais cemitério, para dar um exemplo.”
Mas reconhece as tremendas dificuldades do problema. “Sobre migrantes, eu digo, em primeiro lugar, que é preciso ter coração para acolher; depois, é preciso acompanhar, promover e integrar. Todo um processo. Aos governantes digo: Vejam até onde podem ir. Nem todos os países podem, sem mais. E para isso é necessário o diálogo e que se ponham de acordo. É preciso integrar isto tudo, não é fácil tratar o problema migrantes, não é fácil.”
A mesma dificuldade quanto aos repatriados. “Não sei se viu as filmagens clandestinas que há quando os apanham outra vez. Às mulheres e aos miúdos vendem-nos, e os homens são feitos escravos, torturam-nos... Por isso, digo: cuidado também para repatriar com segurança.”
2.9. Sobre o aborto. “O aborto não é um problema religioso no sentido de: porque sou católico não posso abortar. É um problema humano. É o problema de eliminar uma vida humana. Ponto final. E por aqui me fico.”
2.10. E com os governantes? “Não gosto de responder: ‘gosto mais, gosto menos’. Quero ser honesto. Frente a um governante, procuro dialogar com o melhor que tem. Porque a partir do melhor que tem vai fazer bem ao seu povo.”
2.11. É sabido que Francisco não se cansa de atacar a bisbilhotice na Igreja, na Cúria, na vida de todos. Acaba de distribuir um folheto na Cúria sobre isso, porque “somos inclinados a falar mal das pessoas”. A jornalista: “Como se chama o folheto?” Resposta: “Não falar mal dos outros”. “É um defeito que temos todos: ver o mal do outro e não o bem. Isso vale para todos: a bisbilhotice, os mexericos. Dizem que as mulheres são mais bisbilhoteiras, mas é falso. Os homens também o são.” O que é mau deve-se dizer ao próprio, “em privado, para que se corrija. Não o digas aos outros.”
2.12. Situações “irregulares”, recasados e homossexuais. Francisco lamenta que por vezes abusem das suas palavras e o interpretem mal: “Por vezes as pessoas, com o entusiasmo de serem recebidas pelo Papa, dizem mais do que o Papa lhes disse, é preciso ter isso em conta.” A jornalista: “É um risco que corre...”. Resposta: “Claro, um risco. Mas todos são filhos de Deus. Todos. Eu não posso descartar ninguém. Preciso de ter cuidado, tomar precauções, mas descartar, não. Também não posso dizer a uma pessoa que o seu comportamento está de acordo com o que a Igreja quer, quando não está. Mas tenho de dizer a verdade: ‘És filho, filha de Deus. A ninguém tenho o direito de dizer que não é filho, filha de Deus, porque estaria a faltar à verdade. Ou que Deus não gosta dele, dela. De facto, Deus gosta de todos, até de Judas.” As pessoas têm é de ser responsáveis.
Mas há más interpretações. “Perguntaram-me sobre a integração familiar das pessoas com orientação homossexual e eu disse: as pessoas homossexuais, as pessoas com uma orientação homossexual têm direito a estar na família e os pais têm direito a reconhecer esse filho como homossexual, essa filha como homossexual. Não se pode pôr fora da família ninguém nem tornar a vida impossível a ninguém.” “Outra coisa é, quando se vêem alguns sinais nos miúdos que estão a crescer, mandá-los a um ‘especialista’ (na altura, saiu-me ‘psiquiatra’, mas queria dizer especialista, foi um lapsus linguae). Ora, um diário colocou em título: ‘O Papa manda os homossexuais ao psiquiatra’. Não é verdade. Não disse isso.”
Quanto aos divorciados recasados, “a doutrina foi reajustada, o que significa recuperar a doutrina de São Tomás.” O princípio continua claro: casamento para toda a vida; do que se trata é de aplicar, dentro de certas regras, o princípio às circunstâncias. Neste quadro, abre-se a porta à possibilidade da comunhão em casos concretos.
2.13. A jornalista observou: “Conhecidos seus dizem que, na Argentina, era conservador na doutrina.” Francisco: “Sou conservador.” A jornalista: Mas “tornou-se muito mais liberal do que era na Argentina. Foi o Espírito Santo?” Resposta: “A graça do Espírito Santo existe certamente. Eu sempre defendi a doutrina. E é curioso, uma vez que chama a atenção para isso, na lei do casamento homossexual... é uma incongruência falar de casamento homossexual.” A jornalista: “Então, antes era uma coisa e agora é outra?” “É verdade. Confio em que cresci um pouco, que me santifiquei um pouco mais. A gente muda na vida. Ampliei os meus critérios, isso pode ser; vendo os problemas mundiais, tomei mais consciência de algumas coisas que antes não tinha. Julgo que nesse sentido há mudanças, sim. Mas sou conservador e... sou as duas coisas.”
2.14. Francisco e a imprensa. A jornalista: “Atendendo a esta evolução, pode dizer-nos o melhor nestes seis anos?” Francisco: “Bom, escutar-vos a vós jornalistas, creio que para mim foi uma coisa... não digo a melhor, mas uma coisa linda.”
“Na Argentina, nunca contactava com a imprensa, não éramos santos da sua devoção”, observa a jornalista. “Não, não. Também agora não muito (risos). Não, mas realmente o diálogo convosco — isto é um pouco piada, mas quero dizê-lo —, eu tenho boa relação convosco e sinto-me bem convosco, que fique claro. É uma das coisas lindas.” “Mesmo que o critiquemos”. Francisco: “Claro que sim. Se criticarem bem, bendito seja Deus; se criticarem mal, saio a dizer-vo-lo. Porque o papel da imprensa não é só criticar, é construir. Mas também tenho consciência de uma coisa: Nem sempre sois livres, lamentavelmente muitos, para viver..., nem sempre podem dizer tudo o que querem.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 7 JUL 2019
FOLHEANDO REVISTAS ANTIGAS DE QUADRADINHOS (III)… 9 de julho de 2019
Prossigo, à medida que a temperatura ambiente vai aumentando, a sistemática análise da minha coleção de revistas "Tintin" (e agora também “Cavaleiro Andante”) com grande prazer. Se vou agora ao “Cavaleiro Andante” é para confirmar a projeção da Escola de Bruxelas em Portugal. Depois de Edgar P. Jacobs (1904-1987) e de Blake e Mortimer, bem como de Jacques Martin, agradecendo as muitas mensagens recebidas de apoio e de recordação – até porque ambos estiveram sucessivamente nos estúdios da produção de Tintin com Hergé - falar-vos-ei hoje de Jean Graton (1923) e de Tibet e A. P. Duchâteau. Já referi aqui, em tempos, “O Piloto sem Rosto”, que se estreou na revista “Tintin” em janeiro de 1959. Tudo se passa por causa do mistério de um condutor incógnito que treina em Francorchamps numa viatura excecionalmente rápida que ameaça o domínio de Michel Vaillant (em português, na altura, Miguel Gusmão) no Grande Prémio do Mónaco. E a descoberta da identidade do misterioso piloto sem rosto é surpreendente… Trata-se de um dos álbuns da autoria de Jean Graton que é reconhecido como de maior qualidade e com uma narrativa muito intensa. Esta aventura foi publicada pelo “Cavaleiro Andante” a partir de 2 de janeiro de 1960 nos números 418 a 462, sendo a capa que hoje reproduzimos do dia 16 de janeiro. Desde cedo a presença entre nós deste autor foi sinal de grande interesse e de rápido sucesso alcançado. Em 1957, “Tintin” publicou histórias curtas de quatro páginas dos Vaillant – que em Portugal foram divulgadas no “Falcão”. Em 1959 foi dado à estampa o primeiro álbum “Le Grand Défi”, que o “Tintin” publicou em continuados em 1958 e o “Cavaleiro Andante” publicara dos números 357 ao 406 em 1958-1959. Graton vai criar um conjunto interessante de personagens – o clã Vaillant, Steve Warson e Leader, o adversário maior da marca francesa etc. – e vai mesmo incluir corredores verídicos como Jacky Ickx ou Alain Prost. Michel Vaillant participou no Rali de Portugal (“Cinq Filles dans la Course”, 1971) e voltou à capital portuguesa em “O Homem de Lisboa” (1984), tendo ainda estado em Macau (“Rendez-vous à Macao”, 1983). Alfredo César Torres será uma personagem da narrativa, e Pedro Lamy surgirá em “A Febre de Bercy” de 1998. Em 2007 saiu o Álbum número setenta e Philippe Graton filho do criador vai transformar profundamente a produção editorial, que passa para a esfera da Dupuis. Pode dizer-se que na escola da “linha clara”, Jean Graton é um caso especial, uma vez que escolhe uma temática específica de grande impacto, contribuindo para a divulgação do desporto automóvel e da produção europeia. No campo desportivo, há outro caso: o de Raymond Reding (1920-1999) autor das aventuras de Jimmy Torrent e seu discípulo Jari, no campo do ténis, e Vincent Larcher bem como Éric Castel no domínio do futebol. No âmbito da literatura policial, refiram-se o escritor André-Paul Duchâteau (1925) e o desenhador Tibet (1931-2010), de nome Gilbert Gascard. Ambos são referências fundamentais na Banda Desenhada. Ric Hochet, como jornalista e detetive (ao lado do impagável Sigismond Bourdon), e Chick Bill, herói de humor no Far-West, são referências bem marcantes do traço inconfundível de Tibet. Ric Hochet estreia-se em Portugal, sob o nome de João Nuno, em 2 de julho de 1955, no “Cavaleiro Andante”. O “Zorro” chamar-lhe-á Mário João… De notar que no caso de Ric Hochet temos não só as aventuras, mas também os enigmas policiais, de que serão referência os textos publicados no jornal “Foguetão”, como apelo à perspicácia dos jovens leitores. Esta diversidade faz desta dupla de autores uma referência muito relevante e um exemplo de poder atrair o público para divertimentos de ficção policial, que tem sempre assinalável popularidade. E não termino aqui esta série de crónicas… Há ainda alguma coisa mais a acrescentar?
Mas na tradição antiga desta crónica, deixo-vos hoje com o muito célebre e sério Romance de Tomasinho Cara-Feia de Daniel Filipe (1925-1964)
«Farto de sol e de areia Que é o mais que a terra dá, Tomasinho Cara-Feia vai prá pesca da baleia. Quem sabe se tornará?
Torne ou não torne, que tem? Vai cumprir o seu destino. Só nha Fortunata, a mãe, Que é velha e não tem ninguém, Chora pelo seu menino.
Torne ou não torne, que importa? Vai ser igual ao avô. Não volta a bater-me à porta; Deixou para sempre a horta, que a longa seca matou.
Tomasinho Cara-Feia (outro nome, quem lho dá?), farto de sol e de areia, foi prá pesca da baleia.
Quando se inaugura uma exposição em que Sarah Affonso (1899-1983) dialoga com o artesanato do Minho (Gulbenkian) e quando no Dia de Portugal se falou da necessidade de haver valores mobilizadores, recordamos hoje algumas pistas de reflexão.
NÃO TE PERCAS BUSCANDO… “Porque tiveste o mar nada tiveste. / Não te percas buscando o que perdeste; / Procura Portugal em Portugal”, foi Manuel Alegre quem disse em “O Canto e as Armas” onde nos devemos encontrar. E não há mistério nesta ideia fundamental. É encontrando quem somos, o que nos une, o que queremos – e percebendo donde vimos – que poderemos continuar a singrar. Uma cultura antiga tem, no seu caminho, múltiplas e contraditórias razões. É conhecida a ciclotimia em que oscilamos entre o considerarmo-nos melhores e piores, o que levou José Mattoso a entender a identidade como uma realidade aberta e multifacetada, de múltiplas trocas, do mesmo modo que Eduardo Lourenço afirma que não somos nem melhores nem piores que os outros. E Agustina, no final de “Os Meninos de Ouro”, encontra nas geresianas (“iris boissieri”) um sinal da «alma portuguesa» (de que Bernardim e Sá de Miranda não falaram), que indica a rota sólida que vai em direção ao caminho certo, num “tempo original em que a alma convive com a eternidade”. E essa planta fugaz representa a durabilidade e a capacidade de renascer sempre. É a vontade que se dispõe a construir o destino. Somos porque queremos e não porque outros nos julgam pelo que não somos. João Miguel Tavares, no discurso de Portalegre do dia de Portugal, chamou, e bem, a atenção para a necessidade da procura de um ponto de encontro mobilizador. A interpretação que faço das suas palavras não tem, no entanto, a ver com o apelo a qualquer realidade mítica, como se a vida pública fosse externa à vida quotidiana, do que se trata é da procura de uma vontade partilhada e emancipadora. E se invoquei no início o poema de Manuel Alegre, foi para afirmar que temos de ligar a memória e a compreensão das diferenças como fatores de enriquecimento mútuo. “Não é fácil saber por que é que estamos a lutar hoje em dia”. Quantas vezes ouvimos esse lamento ao longo dos séculos. Mas é bom que estejamos conscientes dele e dos seus riscos. Não podemos tolerar que “o sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje” se vá desvanecendo, “porque cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se que o jogo está viciado”. E não pode estar! O talento, o trabalho, o mérito têm de valer. Não devem bastar uns conhecimentos de certas pessoas ou de certos amigos ou nascer-se na “família certa”, temos de cuidar da justiça.
APERFEIÇOAR A DEMOCRACIA O aperfeiçoamento da democracia tem a ver com a resposta a essas incertezas. Não tenhamos medo de dizer as palavras necessárias. As instituições têm de fazer participar e de saber representar os cidadãos, têm de ser mediadoras e têm de dar as respostas justas aos legítimos anseios de todos. A metáfora de Agustina das geresianas significa, assim, perceber que a durabilidade e a capacidade de renascer sempre têm de se traduzir em atos concretos. Eu sei que persistir ou remar contra a maré não é fácil, que usar o método do “antes quebrar que torcer”, perante as dificuldades, contém o risco de se pensar que a facilidade ou o improviso, que o favor ou a ilusão constituem uma inexorável fatalidade. Não basta, porém, gritar ao lobo, sem prevenir seriamente a sua chegada. Quem corre atrás de tudo o que mexe estará desprevenido quando o perigo realmente chegar. E que perigo é esse? É tanto o da indiferença quanto o dos bodes expiatórios e da cega acusação por tudo e por nada… E sabemos que a mistura das acusações supostamente graves com as meras vinganças pessoais tem como resultado a impunidade. Sim, devemos dar prioridade à verdade dos factos, às provas concretas, à educação, à cidadania, à justiça e à ética, demonstrando que a recompensa deve corresponder ao esforço. “O desespero não nasce do erro, mas do sentimento de que não vale a pena esforçarmo-nos para que as coisas sejam de outra forma – porque nunca serão”. Repita-se que é falsa a ideia de que somos bons no improviso. Olhe-se a nossa História: apenas fomos além das dificuldades com persistência, planeamento, experiência e cuidadoso trabalho. Alguém recordava, há pouco tempo, que o grande feito de Magalhães foi a passagem do estreito, a saída do Oceano Atlântico e a difícil navegação de todo o Pacífico – só possível com muito saber de experiências feito. De facto, deve ser dito e ouvido que nos cabe cultivar uma sã consciência crítica, de modo que a “perda de esperança” não apareça “travestida de lucidez”, que “rapidamente se transforma numa forma de cinismo”. Tudo isto foi afirmado por João Miguel Tavares. Para sermos lúcidos, devemos ser determinados. A desesperança não pode ser confundível com realismo… E como estabelecer pontes entre a cidadania e a coisa pública? Eis o que tem de ser claramente assumido. Não se pense, porém, que a situação presente é singular. Daí que o Presidente da República tenha dito, com oportunidade: “Não podemos nem devemos esquecer ou minimizar insatisfações, cansaços, indignações, impaciências, corrupções, falências da Justiça, exigências constantes de maior seriedade ou ética na vida política”. Há portugueses a merecerem destaque, afirmam-se um pouco por toda a parte – “são todos os dias, cá dentro e lá fora, líderes sociais, científicos, académicos, culturais ou empresariais, muitos dos quais nós nem sabemos quem são, até que chega a notícia de que um português ganhou um prémio de melhor investigador ou, ainda, que uma portuguesa foi considerada a melhor enfermeira num país estrangeiro ou um artista foi celebrado noutro continente”…
RECORDANDO JORGE DE SENA Em 1977, Jorge de Sena falou de Camões como símbolo dos portugueses: “Ninguém, como ele desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exatamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares”. Eis o que urge compreender: devemos prosseguir a aprendizagem, a procura, a inovação, a dignidade. O épico foi “o homem que viajou, viu e aprendeu”. O homem com sentido crítico que se sentiu moralmente “no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa”. O exilado físico também era exilado moral, “clamando por justiça, por tolerância, por dedicação à pátria, por espírito de sacrifício, por unidade nacional e universal, lá onde via que o homem é, como ele disse mais que uma vez, o ‘bicho da terra tão pequeno’ contra o qual se encarniçam os poderes do mal”. A cada passo continuamos a ter de lutar contra o fatalismo, contra o atraso, contra a má-língua, a inveja e o oportunismo. Importa garantir que sejamos nós mesmos a afirmar perante outros que podemos lutar de igual para igual. Não precisamos de ser os melhores, mas temos de saber ser cada vez melhores.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
O título deste texto é a tradução literal do que a professora da Sorbonne Marie-Françoise Baslez deu ao seu último livro, editado este ano pela Tallandier: Comment les Chrétiens sont devenus Catholiques (1er-5ème siècle), obra cuja leitura recomendo a quem se disponha a refletir, em tempos interrogadores, sobre o nascimento e o(s) desenvolvimento(s) da Igreja Católica e a consciência da sua identidade própria. A história, isto é, a vivência do cristianismo inicial descobre-se fundamentalmente nos escritos do Novo Testamento que constituem os textos das epístolas apostólicas e dessa crónica coeva a que chamamos Atos dos Apóstolos, existindo ainda outros testemunhos na correspondência trocada e conservada pelas várias igrejas ou assembleias daquele tempo, bem como nos registos de documentos administrativos e cronistas exteriores às comunidades cristãs. Muito de todo este acervo foi redigido em cima dos acontecimentos e em virtude deles, sendo, aliás, anterior à redação dos Evangelhos (canónicos e apócrifos) que são sobretudo memórias da vida e dos ensinamentos de Jesus, guardadas e transmitidas pelas tradições de diferentes pregões e movimentos do apostolado e das igrejas consequentes à mobilização do Pentecostes.
Por mim, entusiasmo-me sempre com essas narrativas de uma vida espiritual e religiosa que é essencialmente social, comunitária, contos velhinhos da juventude do abraço de Deus à reunião dos homens no amor, pela intercessão redentora de Jesus e o sopro incessante e livre do Espírito Santo. Aí encontro uma porta aberta sobre o mistério criador do cristianismo - que não é uma doutrina, nem ideologia, nem qualquer código, mas uma mensagem apenas: amai-vos uns aos outros como Deus vos amou e ama, para que seja completa a vossa alegria. Na verdade, peça-se à volta deste mundo, seja onde for, uma definição do amor e tal terá sempre um denominador comum: Amor é o que dá sentido à vida. Nada mais. É edificante observarmos como a Igreja cristã não surge como instituição divina, pré formada e organizada por Cristo, como tantas vezes alguns pretendem fazer-nos crer. E é lapidar a análise da Prof.ª Baslez:
Os textos fundadores do Novo Testamento não puderam servir sozinhos para fundamentos teológicos de qualquer modelo organizacional que seria suficiente repetir, pois de modo algum se interessam pela questão das estruturas eclesiais. No princípio, não há doutrina, mas uma mensagem, um «evangelho» que comunidades recebem e meditam desenvolvendo uma consciência eclesial prévia a qualquer institucionalização. A primeira Igreja de Jerusalém, figuradora da Igreja Universal e projetora da Jerusalém celeste está definida nos Actos dos Apóstolos como «comunidade do múltiplo» (plethos), sem mais nenhuma referência estruturante além da lei da maioria.
Foram as assembleias das Igrejas o berço das Escrituras. Os relatos de batismos e de refeições circulavam, como demonstra Paulo quanto à «refeição do Senhor», em texto bem anterior aos evangelhos. [Cf. Coríntios I, 11, 23-25: Pois eu recebi do Senhor o que também vos ofereci: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou pão e, tendo dado graças partiu-o e disse : «Isto é o meu corpo que é para vós; isto fazei para a minha memória.» Do mesmo modo, também o cálice tomou depois da ceia, dizendo: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue; isto fazei - quantas vezes o beberdes - para a minha memória.» Pois quantas vezes comerdes este pão e beberdes este cálice, a morte do Senhor anunciais, até que ele venha. Tradução do trecho paulino por Frederico Lourenço.]
Naquele tempo, era comum, na diáspora judaica, as comunidades ou sinagogas reunirem-se, para a celebração de festas ou em dias de preceito, numa casa escolhida para o efeito, e juntarem aos ritos religiosos a participação dos fiéis num repasto comum. Tal prática, aliás, também se realizava entre outras assembleias, designadamente nas cristãs, onde a ação de graças, ou eucaristia, se fazia como memória da Ceia do Senhor, atualização sacramental da Nova Aliança, isto é, da reconciliação de Deus com a humanidade inteira, com Cristo, por Cristo, em Cristo. A partilha do pão e do vinho entre todos e por todos significava assim substancialmente o sacrifício redentor de Jesus e a presença contínua do Senhor Ressuscitado entre nós: "Sempre que estiverdes reunidos em meu nome, eu estarei no meio de vós". A comunhão eucarística surge assim como união dos batizados no Corpo de Cristo, em ação de graças e como resposta efetiva à vocação da humanidade para a construção da nova terra e dos novos céus.
Pela propensão obsessiva a defender o "Santíssimo Sacramento" como presença real do Corpo de Jesus, no sentido de um gesto de magia sagrada ter fisicamente transformado pão e vinho em carne e sangue, muita pregação eclesial e devota também vai encobrindo a realidade mística - realidade, sim, em sentido pleno - do Corpo de Deus como sacramento do sublime sacrifício de Cristo, pelo qual toda a humanidade se encontra reconciliada em Deus e com Deus. Os primeiros cristãos, aqueles que testemunhavam a Palavra e reproduziam os gestos do Senhor, celebravam a eucaristia como momento comunitário, não dispunham de sacerdote algum para consagrar o pão e o vinho, essa consagração fazia-se pela união dos batizados em torno da memória de Jesus Cristo. Aliás, por alguma razão, nos escritos neotestamentários, "sacerdote" é termo exclusivamente referido apenas ao Povo de Deus, jamais a alguém em particular. O conceito atualmente corrente de "sacerdote" data apenas do 2º milénio do cristianismo, surge na Idade Média e fixa-se, com o direito canónico, no século XII, quando se regulamenta que sacerdote é quem recebeu o sacramento da ordem e, por este, o poder divino, transmitido pela Igreja hierárquica, de batizar, abençoar, celebrar a eucaristia e perdoar os pecados. Tal estatuto foi gerando muitos e vários privilégios, desde as imunidades do foro eclesiástico à atribuição de funções e competências para as quais nem todo clero estava evidentemente preparado. Está aí a raiz histórica do clericalismo - mal ainda hoje viral na Igreja - que, todavia, não tem qualquer fundamentação teológica aceitável mas, muito pelo contrário, encontra nos próprios textos evangélicos palavras de repúdio e condenação por parte de Jesus.
Não sei se estamos hoje no limiar de um novo período de avanço das comunidades cristãs para a catolicidade, mas o dinamismo atual dos movimentos ecuménicos, bem como sinais de abertura e progresso por parte de vários sectores da hierarquia eclesial, deixam-me esperar que sim. Vejamos a notícia da eleição do novo superior provincial dos frades capuchinhos de Mid America (EUA), um irmão leigo (isto é, sem ordens sacras, mas professo, ou seja, tendo já pronunciado os votos de obediência, pobreza e castidade exigidos pelo regulamento da Ordem dos Frades Menores). Eleito pela maioria absoluta dos seus irmãos em São Francisco de Assis (que tampouco era "sacerdote") viu a validação desse ato rejeitada pela Congregação da Santa Sé para os Religiosos, no Vaticano, com o fundamento de não ser ordenado, conforme exigido pelo artº 129-1 do Código de Direito Canónico: "Quem recebeu a ordem sagrada é capaz, segundo as normas do direito, do poder de governo que, por instituição divina, existe na Igreja, e que também é chamado poder de jurisdição". Mesmo que o pretensiosismo soez e desajeitado deste preceito canónico, nos faça sorrir, não deixa o mesmo de ser revelador da pobreza intelectual do clericalismo e seus defensores, com alguma confusão entre disposições canónicas e instituições divinas... Mas os capuchinhos americanos recorreram para o Papa, que anulou o veto e promulgou a eleição. É bom que se vá lembrando à Igreja como todos somos filhos de Deus através da fé em Jesus Cristo. Todos os que fomos batizados para Cristo estamos vestidos de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea: todos nós somos um em Cristo Jesus. Se nós somos de Cristo, então somos semente de Abraão e herdeiros segundo uma promessa (S. Paulo aos Gálatas, 3, 26-29). Assim, já não somos estrangeiros nem estranhos, mas concidadãos dos santos e pessoas da casa de Deus, edificados sobre a fundação dos apóstolos e profetas, sendo o próprio Jesus Cristo a pedra angular, na qual todo o edifício, bem ajustado, aumenta de modo a tornar-se templo sagrado no Senhor, no qual também nós somos edificados para habitação de Deus em espírito (aos Efésios, 2, 19-22). A instituição eclesial é a comunhão de todos em Cristo, os ministérios eclesiais são desempenhos de serviços dessa comunhão e não conferem a quem os exerce qualquer estatuto distinto ou acima dos outros comungantes. E porque Cristo é tudo em todos, chamamos católica à sua Igreja.
Temos aqui referido o património histórico dos teatros-edifícios construídos e/ou adaptados ao longo do país, em sucessivas fases da História do Espetáculo, e aí cobrindo, desde as realizações iniciais, aos tempos atuais: e sempre tendo em vista a própria realidade do teatro como expressão de um texto que é apresentado ao publico de acordo com os hábitos culturais e as técnicas de cada época.
E de tal forma assim é, que não nos podemos vincular à arquitetura específica e à técnica correspondente de cada expressão de espetáculo cénico.
Por isso aqui temos evocado sucessivos espaços de espetáculo teatral, desde as primeiras manifestações até à geração mais recente, e isto no ponto de vista dos autores, dos arquitetos e do público: pois teatro é espetáculo e sem público – nem que seja um único espetador – não há espetáculo!...
E isto vem a propósito, precisamente, de uma efeméride teatral que neste ano de 2019 completa exatos 5 séculos: a saber, a estreia em 1619 de um espaço teatral, o chamado Pátio das Fangas da Farinha, no que é hoje a Baixa lisboeta.
Vejamos então.
A partir de 1590, o empresário, diríamos hoje, Fernão Dias de la Torre, castelhano de origem e de cultura, organiza em Lisboa o que se pode considerar o primeiro espaço público de espetáculos, o chamado Pátio das Arcas, situado na zona que hoje corresponde mais ou menos à Rua Augusta. Para tal, obtém autorização do Hospital de Todos os Santos. E assim prossegue uma atividade de produção de espetáculos.
Ora o que é mais curioso é que a zona consagra pelo menos desde aí uma vocação, digamos assim, para a realização de espetáculos e de espaços musicais e teatrais. E assim, em 1619, portanto há exatos 400 anos, inicia atividade o chamado Pátio das Fangas da Farinha, próximo do que viria a ser o Tribunal da Boa Hora.
Em 21 de novembro de 1622 o Município de Lisboa emite um documento divulgado por Eduardo Freire de Oliveira em 1888 (in “Elementos para a História do Município de Lisboa”) que citamos na nossa “História do Teatro Português” e que aqui se evoca.
Transcreve então Freire de Oliveira:
“A Relação se meteu em perturbar a jurisdição da cidade, mandando derrubar o Pátio das Fangas da Farinha (...) e ora chegando à nossa notícia que o Pátio da Rua das Arcas estava em notável perigo de arruinar e cair com o peso da gente se ordenou ao vereador do pelouro das obras que com o arquiteto da cidade e mais ministros dela fosse ver a fábrica do dito Pátio da Rua das Arcas e por todos, debaixo de juramento, foi dito que a obra estava fraca e notável risco de vira abaixo com o peso da gente, o que acontecendo, o que Deus não permita, mataria e estropiaria muita gente (...) deem licença a este Senado que mande concertar o das Fangas da Farinha”...!
Quer dizer: já nessa altura os poderes públicos se envolviam em problemas de gestão da infraestrutura de espetáculos!...
L - NÃO AO COMPLEXO DE INFERIORIDADE LINGUÍSTICO (III)
Há outros exemplos, por confronto com outros idiomas.
Em dezembro de 2003 realizou-se na Tunísia a primeira cimeira dos chefes de Estado e de Governo do Mediterrâneo Ocidental (Diálogo 5 + 5), integrando cinco países do sul da Europa, entre estes Portugal e cinco Estados do Norte de África. No início dos trabalhos Chirac falou em francês, Aznar em castelhano, Berlusconi em italiano, os governantes árabes em árabe e o primeiro-ministro português em …francês! Ao que consta, a audiência, maioritariamente francófona, aplaudiu emocionada. Sensivelmente, pela mesma data, também o nosso Presidente da República se expressou, em Madrid, num castelhano tipo “portunhol”, num fórum promovido pelo jornal “ABC”, o mesmo tendo feito, ao que lemos, na XIII cimeira Ibero-Americana, na Bolívia.
David Borges dá sugestivos exemplos, em texto publicado no livro A Língua Portuguesa: presente e futuro”[1] onde, em dado passo, refere a estupefação do escritor angolano Agualusa quando se apercebeu que num encontro em França, para divulgação da literatura e música dos países de língua portuguesa, em que estavam presentes cinco escritores portugueses, cinco africanos e um brasileiro, “(…) os portugueses falaram todos em francês, sempre em francês, num francês esplêndido, expurgado do mais remoto rumor do idioma pátrio. Os africanos falaram em português, e o brasileiro hesitou, entre uma língua e outra”. Tendo feito uma alusão crítica ao discurso francófono dos portugueses, obteve como resposta, de um deles “(…) que os escritores portugueses falam sempre em francês, porque sabem falar francês”, ao que Agualusa se calou mas, como diria, sem conseguir imaginar “(…) um congresso sobre literatura francófona, em Lisboa, durante o qual toda a gente fale português”.
Indigna-se também, e a propósito, por um número significativo de dirigentes portugueses dispensarem “(…) o nosso obscuro idioma em reuniões internacionais. Os portugueses choram de orgulho, muitíssimo deslumbrados. Lusófonos, sim, lusófonos sempre. De preferência em francês, que é uma língua mais civilizada, mas lusófonos”.
Recentemente, em Dezembro de 2011, aquando da cerimónia oficial, em Lisboa, para formalização do acordo para a compra da EDP, o português e presidente desta empresa portuguesa, bem como o português e ministro das finanças, falaram num inglês fluente, com o seu quê de chique, chiquíssimo e chiquérrimo, de elites vendedoras para elites compradoras, e não no idioma do país de origem, onde decorria a sessão, tendo como público destinatário os portugueses, o que seria impensável em eventos paralelos ou similares de países que não esquecem a sua língua (mesmo se menos universalizada que a nossa), como França, Alemanha, Itália, Rússia, Japão, Espanha e Reino Unido.
Usualíssimo que em eventos internacionais organizados e realizados entre nós, todos ou quase todos os participantes portugueses falem em inglês, sem qualquer preocupação de tradução para a língua pátria, mesmo havendo intérpretes disponíveis, o que por certo reduzirá custos e tornará o país mais competitivo, segundo eles, quando se reconhece que o poder linguístico e cultural comporta um poder económico forte e essencial nas relações entre os vários países.
Infelizmente, esta inferiorização de que grande parte das nossas elites faz culto, tem tendência a ser seguida pelo cidadão comum, atentos alguns exemplos já referidos, a que acresce a negligência na feitura de viagens ao aceitar guias ou intérpretes em línguas estrangeiras, quando há alternativas no uso da nossa, não dando azo a que se valorize e projete mais pelo mundo, inclusive dando emprego a intérpretes não maternos que a têm como língua de exportação.
02.07.2016 Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2005, pp. 167/68.
Oriundos de El Salvador! Oscar e Valéria unidos Pelo corpo e pela alma e por uma camisola Que a ambos abraçava
Assim chegaram às correntes bravas do rio Que lhes permitiria a aproximação ao justo sonho À vida que seria sorriso, ouro, prata e verde
El Salvador? Que escuridão?! Deixa-nos Que vamos voar!
Então as flores deram-se as mãos em perfeita robustez Pois o voo estava a ser um pássaro que não parte
E chamou-se nomes à dor, ao branco, ao amarelo-torrado das águas E em pranto desesperado, encalhado, no acesso ao salvador Mordido, sangrado, não asa, desfizeram-se as forças
Pai e filha Doces ramos, definitivamente partidos, destruídos Por um mundo todo que está morto Enquanto o sol tomba Em espanto ilimitado
Por nos ver, a nós, tão instantâneos, tão sem destino, tão sem memória
1. “O que está em crise são estruturas que formam a Igreja, que têm de cair. Sejamos conscientes. O Estado da Cidade do Vaticano como forma de governo, a Cúria, seja o que for, é a última corte europeia de uma monarquia absoluta. A última. As outras já são monarquias constitucionais, a corte dilui-se, mas aqui há estruturas de corte que são o que tem de cair.” “A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram”, quando se debatia a sucessão de Bento XVI.
Quem disse isto foi o Papa Francisco numa extensa entrevista à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Os temas debatidos, num imenso à-vontade, mesmo quando difíceis e até escaldantes, foram muitos.
2. O que aí fica quer ser um brevíssimo resumo desse longo diálogo leal, onde não faltou o bom humor.
2.1. Um tema constante nas preocupações de Francisco: os migrantes e refugiados. Não se pode pretender resolver os problemas erguendo muros, como se “essa fosse a defesa. A defesa é o diálogo, o crescimento, o acolhimento e a educação, a integração ou o limite saudável do ‘não é possível acolher mais’, saudável e humano.” Referindo-se a Trump, disse: “Pode-se defender o território com uma ponte, não com um muro.”
2.2. Algo não funciona em relação à economia, que se tornou sobretudo economia da especulação financeira: “Já saímos do mundo da economia, estamos no mundo das finanças. Onde as finanças são gasosas. O concreto da riqueza num mundo de finanças é mínimo.” Então, o mal-estar provém desta constatação: “Cada vez há menos ricos, menos ricos com a maior parte da riqueza do mundo. E cada vez há mais pobres com menos do mínimo para viver.”
Francisco pronuncia-se contra uma economia neoliberal de mercado. É favorável a “uma economia social de mercado”.
Aqui, eu acrescentaria: economia social e ecológica de mercado e chamaria a atenção para as tremendas, se não insuperáveis, dificuldades para impô-la, apesar da sua urgência em ordem à sobrevivência. Porquê? Num mundo globalizado, os mercados são globais, mas a política é nacional ou regional. Nesta situação, onde estão as instâncias de regulação dos mercados? Francisco sabe disso e, por isso, acrescenta que é necessário “procurar saídas políticas, eu não as sei dizer, porque não sou político. Não tenho esse ofício. Mas a política é criativa. Não nos esqueçamos que é uma das formas mais altas da caridade, do amor, do amor social.”
Em conexão e interdependência com este mal-estar global da economia está “o maltrato do ambiente”. Francisco tem sido incansável no apelo a uma nova política para a salvaguarda do ambiente, se quisermos ter futuro. E até pergunta: será que ainda vamos a tempo de salvar “a nossa casa comum”? Sobre a ameaça do colapso ecológico, escreveu uma encíclica, Laudato Sí, que fica para a História como decisiva, propugnando o que chamou justamente “uma ecologia integral”. Neste sentido, o Vaticano acaba de avançar com uma iniciativa ecuménica global de oração e de acção precisamente em ordem à protecção desta nossa casa comum: durante um mês, de 1 de Setembro a 4 de Outubro, chamado o mês do “Tempo da Criação”, os cristãos de todo o mundo são convocados para pôr em prática a Laudato Sí.
2.3. Sobre o narcotráfico: “É como se eu, para ajudar a evangelização de um país, fizesse um pacto com o diabo..., ou seja, há pactos que não se podem fazer.”
2.4. Os jovens? “Os jovens não estão corrompidos. Estão debilitados.” “A juventude corre o risco de, se é que o não fez já, perder as raízes.” E cita Zygmund Bauman, num livro escrito em italiano com um seu assistente italiano, com o título: Nati liquidi, nascidos líquidos, isto é, sem consistência. No alemão apareceu com o título: Die Entwurzelten, os desenraizados, os sem raízes. “Os alemães perceberam a mensagem do livro. Isso é muito importante hoje: ir às raízes”, o que nada tem a ver com “ideologia conservadora.” “Assumir as raízes normais, as raízes da tua casa, as raízes da tua pátria, da tua cidade, da tua história, do teu povo..., de ... mil coisas.” Por isso, acrescenta: “Eu aconselho sempre os jovens a falar com os velhos e os velhos a falar com os jovens, porque... uma árvore não pode crescer, se lhe cortarmos as raízes, como também não cresce, se ficarem só as raízes.”
2.5. As mulheres? Reconhece que a mulher “está ainda em segundo lugar... em segundo lugar.” Mas “sem a mulher, o mundo não funciona. Não por ser ela que gera os filhos, deixemos a procriação de lado... Uma casa sem a mulher não funciona.” Há uma palavra que está a desaparecer dos dicionários, porque “todos têm medo dela: ternura. É património da mulher. Daí ao feminicídio, à escravidão, vai um passo, não? Qual é o ódio, eu não saberia explicar. Talvez algum antropólogo o possa fazer.”
Aqui, o Papa Francisco que me desculpe, mas vou fazer um reparo. E na Igreja? Ele vai repetindo que “a Igreja é feminina” e já na viagem ao Brasil avisou: “Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão total e real, corre o risco de se tornar estéril.” Então, porquê tanta hesitação em ordenar as mulheres como diáconos? Esse seria um primeiro passo da abertura que se impõe.
Francisco insiste na Igreja sinodal e essa ordenação deverá, tudo indica, acontecer já na sequência do próximo Sínodo para a Amazónia, em Outubro.
2.6. Sobre os escândalos da pedofilia na Igreja. Aqui, Francisco reconhece que também se equivoca. Equivocou-se nomeadamente no que à questão da pedofilia no Chile se refere. E foram concretamente perguntas dos jornalistas, “feitas com muita educação” no regresso da viagem ao Chile, que o fizeram perceber que a informação que tinha não era verdadeira. Estava mal informado. E não exclui que tenha havido corrupção na informação prestada: “Nem sempre é corrupção assim... por vezes é estilo da Cúria — sim, no fundo há uma lei de corrupção —, mas é um estilo que é preciso ajudar a corrigir.”
Concretamente quanto ao cardeal McCarrick, a quem acabou por retirar o cardinalato e reduzir ao estado laical, confessa: “De Mc Carrick eu não sabia nada, obviamente, nada, nada.” “O cardeal Pell obviamente que está preso e está condenado, apelou, mas está condenado. O cardeal Errázuriz já não podia continuar, era óbvio”. Conclusão: o grupo de cardeais consultores começou por ser constituído por nove e agora são seis. Quanto às acusações que o ex-Núncio Viganò lhe fez, respondeu, explicando o seu silêncio na altura: “Eu confio na honestidade dos jornalistas e disse-vos: ‘Estudai vós a questão e tirai as conclusões.’ E o trabalho que fizestes foi genial, e três ou quatro meses depois um juiz de Milão condenou-o.”
Mas, indo ao cerne dessa chaga que é a pedofilia na Igreja, concluiu que, com as medidas concretas que estão a ser tomadas, a “tolerância zero” é mesmo para implementar, salvaguardando também o princípio da presunção de inocência: “A tarefa do padre é levar o jovem a Jesus. Com os abusos, sepulta-o. Essa é a grande monstruosidade. Que é mais grave que tudo o resto.” Mas não se pode ignorar os números aterradores de casos de pedofilia no mundo, a maior parte na família, também entre educadores, no desporto, etc., que apresentou no discurso final da Cimeira no Vaticano contra os abusos na Igreja, em Fevereiro passado. “Evidentemente, a percentagem de sacerdotes que caíram nisto faz parte do todo, uma corrupção mundial na pedofilia, é de terror... E por isso quis que todos tivessem as estatísticas da Unicef, das Nações Unidas, as mais sérias, as estatísticas sérias.” “Seria importante aqui referir os dados gerais — na minha opinião, sempre parciais — a nível global e a seguir a nível da Europa, da Ásia, das Américas, da África e da Oceânia, para dar um quadro da gravidade e profundidade deste flagelo nas nossas sociedades. A primeira verdade que resulta dos dados disponíveis é esta: quem comete os abusos, ou seja, as violências (físicas, sexuais ou emocionais) são sobretudo os pais, os parentes, os maridos de esposas-meninas, os treinadores e os educadores. Além disso, segundo os dados Unicef de 2017, relativos a 28 países no mundo, em cada 10 meninas-adolescentes que tiveram relações sexuais forçadas, 9 revelam que foram vítimas de uma pessoa conhecida ou próxima da família.” Um número aterrador, a título de exemplo, no nível global: “Em 2017, a OMS estimou em mil milhões os menores com idade entre os 2 e os 17 anos que sofreram violências ou negligências físicas, emocionais ou sexuais.” (Continua)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 JUN 2019