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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

FOLHEANDO REVISTAS ANTIGAS DE QUADRADINHOS (II)…
2 de julho de 2019

 

Continuei a folhear a minha coleção de revistas "Tintin" com grande prazer. E centrei-me, como prometido, em Edgar P. Jacobs (1904-1987) e em Blake e Mortimer. Com uma inclinação musical evidente para a ópera, Jacobs vai ingressar no estúdio de Hergé nos anos quarenta para dar cor e reforçar o rigor cenográfico das aventuras de Tintin. Assim colaborará na reedição de Tintin no Congo, Tintin na América, Cetro de Otokar e Lotus Azul, bem como na feitura de Sete Bolas de Cristal e Templo do Sol. Vindo de realizar uma versão adaptada de Flash Gordon em virtude da proibição alemã de publicação dessas aventuras e de dar à estampa na revista “Bravo” “Rayon U”, Jacobs vai abalançar-se na criação de personagens originais. Escolhe um género que caminha para a ficção científica, mas também aproveita ingredientes policiais e ligados a uma guerra dos mundos. Apesar do trabalho intenso na profunda renovação da obra de Hergé, o início da publicação da revista Tintin em 1946 permite o surgimento de "O Segredo do Espadão" com Blake e Mortimer e de "O Mistério da Grande Pirâmide" (1950). O sucesso das novas pranchas, o caráter muito  próprio do autor, dá-lhe um papel fundamental. Mas quando Herge recusou a partilha de rendimentos a propósito dos livros de Tintin, Jacobs seguirá o seu caminho próprio - mantendo porém a amizade com Herge, que o faz aparecer como Jacobini em "O Caso Tournesol". Seguem-se a obra-prima “Marca Amarela” (1956), depois “O Enigma da Atlântida” (1957), “SOS Meteoros” (1959), “Armadilha Diabólica” (1962) e “O Caso do Colar” (1967). É uma sucessão extraordinária e Adolfo Simões Müller no “Foguetão” publica em cima da hora “Armadilha Diabólica”, que permitirá abrir caminho a um grande grupo de admiradores portugueses que se tornam fans incondicionais dos heróis britânicos… O trabalho agora anunciado por uma equipa dirigida por François Schuiten, “Le Dernier Pharaon” constitui uma renovação profunda da inspiração de E. P. Jacobs, numa espécie de simbiose entre a moderna Banda Desenhada belga e a tradição dos anos cinquenta… Devo ainda referir Jacques Martin (1921-2010), que também esteve com Hergé na fantástica equipa que foi aperfeiçoando a produção de Tintin, como caso único de rigor na escolha de temas, na certeza do traço, no equilíbrio entre o imediato e a duração, na extrema qualidade na feitura dos álbuns (p. ex. Tintin au Tibet e Coke en Stock). Se nos anos quarenta e cinquenta E. P. Jacobs é um artífice indispensável, Jacques Martin, durante cerca de vinte anos representa uma capacidade especial de consolidar essas marcas de inconfundível exigência – que são bem evidentes na produção própria de Martin, através de Alix (1948) e de Lefranc (1952). Com uma marcada personalidade narrativa e artística, pode dizer-se que ao lado dos grandes nomes da “linha clara” ou da Escola de Bruxelas, enquanto E. P. Jacobs está na tradição de H. G. Wells, Jacques Martin empenha-se no relato histórico na linha da escola do romance que vai de Walter Scott até Alexandre Dumas. Alix é um modelo de herói romântico que nos permite, a um tempo, compreender a herança greco-latina com enorme sentido pedagógico (p. ex. Alix Intrépide e La Sphinx d’Or). Mas, além desta dimensão altamente meritória de pendor educativo e de culto da investigação histórica, Jacques Martin afirma-se como um excelente argumentista na conceção de Lefranc, onde se juntam o requinte dos cenários e dos pormenores da vida quotidiana à urdidura de um bom enredo policial (p. ex. Le Mystère Borg). Mas sobre a ligação ente mistério e mundo moderno da técnica falaremos na próxima crónica, sobre A. P. Duchateau, Tibet e Jean Graton…

 

Em tempo de visitas nostálgicas, não resisto a citar o meu amigo Ruy Cinatti

 

Memória Amada
Para Alain Fournier

 

Vinham de longe em bandos. Acorriam
Jubilosos. Fantasias
De parques pluviosos
E, descendo,
Os patos bravos lançados
Entre juncos, salgueiros e veados.
Tarde,
Muito tarde, uns olhos tais
Haviam de aparecer, sobressaltados
Entre enigmas e um floco de cabelos
Osculado pelo vento. Alegorias...
Do agora ou nunca e do momento
Definido. Trégua impensada,
Insuspeita, no perfume alado
Da página dobrada e abandonada
Dum livro interrompido. Sinto a dor fina,
Finamente atravessada e suave,
- Quase saudade.

 

Ruy Cinatti, in 'O Livro do Nómada Meu Amigo'   

 

Agostinho de Morais

A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de julho de 2019

 

Quando Fernando Namora (1919-1989), cujo centenário do nascimento ocorreu no dia 15 de abril, publicou «Retalhos da Vida de Um Médico» (1949) não se esperava um tão grande sucesso de um jovem autor, que ficou a dever-se essencialmente à escrita acessível, ao humanismo e ao retrato fiel do país profundo com que os leitores se identificaram.

 

 

A AUTONOMIA DE PENSAMENTO
Pode dizer-se que Fernando Namora assumiu, ao longo da sua vida, uma atitude baseada na autonomia de pensamento e na liberdade pessoal, tornando-se dificilmente classificável, ainda que com aproximações a uma visão realista do mundo. Há uma forte componente testemunhal que assenta numa escrita clara e facilmente compreensível, muito preocupada com a experiência vivida e influenciada na dimensão existencial, onde se encontram o eterno mito de Sísifo e a presença do homem inconformado… E não é apenas o eco de Camus ou de Malraux que encontramos, mas de Kierkegaard, Dostoievski, Tolstoi, Huxley ou mesmo de Sartre. Do que se trata, como bem sentimos na “Cidade Solitária” (1959) e fundamentalmente em “Domingo à Tarde” (1961), é da procura da relação entre a singularidade, o reconhecimento e a angústia com a vida que segue o seu curso nas suas múltiplas contradições. E em “Diálogo em Setembro” (1966), um longo diário de invocação memorialística, encontramos a descoberta, através do contacto com a Europa das ideias, com as suas contradições e paradoxos, e da necessidade de compromissos diversos e complexos, num mundo em profunda mudança, consciente dos limites das receitas políticas ou das explicações simplificadoras. Eduardo Lourenço refere, aliás, que esse encontro com os outros em Genebra torna-se um “verdadeiro encontro connosco”, feito à distância. Como nos veem lá fora? Como nos vemos de fora? Ao longo do percurso literário, enriquecido pela sua experiência de médico, primeiro na província e depois no Instituto de Oncologia, vamos encontrando uma aproximação humana entre a importância da liberdade individual e a consideração da sociedade e da sua organização. O filme “Domingo à Tarde” (1966) produzido por António Cunha Telles, realizado por António Macedo, projetou na tela o romance no qual Namora associa a análise da realidade social e a existência individual, através do encontro de Jorge (Ruy de Carvalho) e Clarisse (Isabel de Castro), bem como de Lúcia (Isabel Ruth), assumindo no novo cinema português uma perspetiva que abria novos horizontes, salientando João Bénard da Costa a qualidade da adaptação, da conceção estética, da novidade formal e até a sua ousadia. Por isso o filme superaria o romance, mas de facto, essas qualidades só são possíveis (dizemo-lo nós) em virtude da capacidade de Fernando Namora.

 

LITERATURA E LIBERTAÇÃO
Compreende-se, assim, a afirmação de Namora: “A literatura é um processo de libertação e, por conseguinte, aspira à liberdade. Quer dizer que o seu ponto de partida é uma recusa aos constrangimentos. Quer dizer, ainda, que os constrangimentos estão na sua génese ou no desencadear da sua explosão, como tem sido proclamado por tantos criadores. Homem livre, pois, o escritor – ou que visceralmente deseja sê-lo. Tão livre, ou tão necessitado de o ser, que nem sequer pode estar de acordo com certas situações para que ardorosamente contribuiu: seja numa sociedade burguesa, seja numa sociedade proletária, ele sempre encontrará razões para a sua insubmissão e para o seu inconformismo, mesmo se, muitas vezes, se trate de uma contestação inconsciente” (in “Jornal sem Data”, 1988). De facto, o tempo revelou que a diversidade da obra produzida e legada por Fernando Namora nos permite encontrar pistas bastante fecundas que nos levam a compreender que o encontro sobretudo no início da carreira literária com o neo-realismo, não impediu a afirmação de um percurso singular que levou Fernando Pinto do Amaral a dizer que “tendo chegado a ser por meados do século XX o prosador português mais divulgado e traduzido em todo o mundo (antes da atual difusão de Saramago e Lobo Antunes), Fernando Namora inscreve-se no quadro de um neo-realismo progressivamente temperado por aspetos menos esquemáticos, que o irão aproximar das preocupações existencialistas”. O êxito retumbante de “Retalhos da Vida de um Médico”, sobre a sua experiência clínica na Beira Baixa e Alentejo, representa, assim, algo mais do que uma receita marcada pelo “espírito do tempo”, o que, aliás, permite encontrar já alguns sinais de cunho pessoal não apenas no sentido humanista e solidário, mas também na análise existencial contemporânea, podendo encontrar-se a maturidade reflexiva em “Rio Triste” (1982).

 

A COMPLEXIDADE DO NEO-REALISMO
Eduardo Lourenço chamou a atenção, com especial ênfase, para a complexidade do Neo-realismo. Carlos de Oliveira e Fernando Namora são referidos, aliás, como exemplos de independência de espírito e de um trilhar de caminhos próprios que ilustram bem a complexidade do fenómeno. A prevalência da forma nos critérios de avaliação estética sobre orientações ideológicas torna-se especialmente importante e integradora. E Namora, até mercê da evolução da sua obra e da não subordinação a critérios instrumentais, faz parte do grupo intelectual de que Lourenço se aproxima, mostrando bem (como o fez ao descobrir Pessoa) qual era o Neo-realismo que lhe merecia solidariedade tanto geracional quanto oposicionista: aquele mais livre esteticamente falando… Como Rosa Maria Martelo afirmou em 2014, na apresentação em Coimbra do segundo volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço da Gulbenkian, o ensaísta teve uma importante e inequívoca “participação geracional ao lado dos jovens do Novo Cancioneiro quanto nas leituras coetâneas que foi fazendo do Neo-realismo, e ainda nas leituras retrospetivas que depois elaborou. Como defende, “o Neo-realismo é a expressão literária de qualquer coisa muito mais ambiciosa, muito mais importante” do que o plano literário ou artístico, ou sequer cultural”. Assim, recorre à palavra “galáxia”, dizendo «que o Neo-realismo foi “o aparecimento em Portugal da galáxia marxista, da galáxia da cultura marxista”, capaz “de se determinar em relação praticamente a todos os temas da sociedade portuguesa”. E ao recordar o papel da coleção Novo Cancioneiro nos inícios da década de 40, pergunta: “Haveria nesse utopismo um excesso de ilusão, como o tempo o provou? Sem dúvida. Mas nos melhores, a crença num futuro menos inumano era vivida e sincera”». E Fernando Namora correspondeu, com assinalável coerência, à compreensão de que a liberdade na literatura constituía um valor inestimável, que obrigou a uma especial atenção à realidade social e humana e a uma exigência crítica capaz de entender a complexidade da compreensão. Daí que o ponto de partida da liberdade do escritor seja, de facto, a recusa dos constrangimentos – que sempre assumiu, em benefício da sua obra e da sua coerência, atribuindo à arte e à autonomia individual os lugares necessários.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

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